A Arquiduquesa Aracy

Uma das mais importantes cantoras brasileiras completaria 107 anos neste agosto de 2021

Aracy de Almeida
Aracy de Almeida – Reprodução

Bruno Filippo*

A televisão foi injusta com Aracy de Almeida. Transformou-a na mulher rude, irascível e impiedosa que, como jurada do programa do Silvio Santos, humilhava os calouros desafinados e arrancava vaias da plateia. Grotescamente estereotipada, esta Aracy, morta em 1988, está na lembrança dos mais jovens. Mas a outra Aracy, a grande cantora da Era do Rádio, mulher inteligente e de fino trato, intérprete principal de Noel Rosa ao lado de Marília Batista, está retratada num livrinho de 2006 que, enfileirado na estante, não chama a atenção.

“Araca – Arquiduquesa do Encantado” (Edições Folhas Secas), de Hermínio Bello de Carvalho, tem, no entanto, a pretensão de lhe devolver a importância na história da música brasileira.

O enfoque do livro é chamar a atenção de que esse lado, que ficou ocultado, foi o principal dela. “Ela deu novos rumos à canção brasileira em certo momento”, diz Hermínio. “Por certo momento” entendem-se as décadas de 30, 40 e 50, quando Aracy grava Noel, Custódio Mesquita e Ary Barroso, autores basilares que imprimiram às suas canções sofisticação harmônica, melódica e poética. Foi Ary – conta Hermínio no livro – quem escolheu Aracy para ser a primeira cantora a gravar “Aquarela do Brasil”, mas devido a desentendimentos, a primazia coube a Francisco Alves.

Em outro trecho, Hermínio lembra o dia, isso nos idos de 1964, em que ele e Aracy foram à casa de Tom Jobim, onde também estavam Carlinhos Lira e outros músicos. Conversa vai, conversa vem, Aracy começa a cantar, à capela, “Foi tudo surpresa”, de Valsinho. A complexidade da harmonia impressionou a todos. “Foi Aracy quem, já tendo gravado Noel na década de 30, primeiro gravou Valsinho, conhecido inventor de melodias e harmonias sofisticadas e intrincadas. Isso sem falar em Custódio Mesquita e Cartola, cujas canções exigem musicalidade que nunca esteve ausente em Araca”, explica Hermínio.

HERMÍNIO NÃO QUIS ESCREVER BIOGRAFIA

As pouco mais de 80 páginas de Araca só foram possíveis porque Hermínio nutriu – e ainda nutre – por Aracy um amor fraternal. Conheceram-se quando ele se iniciava no meio musical como repórter, produtor, poeta e compositor. O subtítulo informa tratar-se de um perfil. Na verdade, são as recordações de quem conviveu intensamente com a cantora até o final de sua vida, no leito do hospital, padecendo de um derrame cerebral.

Arcy e Hermínio – Acervo HBC/Divulgação

Histórias engraçadas, pitorescas, reveladoras, algumas ilustradas com fotos – como o impagável registro, feito no bar Zicartola, de Aracy e Hermínio (foto acima) sambando no palco, episódio ao qual ele faz a seguinte referência no livro: “São muitos os uísques dessa vida”. O que torna a leitura leve e divertida.

Hermínio tem ojeriza a que o chamem de pesquisador ou musicólogo. Por isso não se propôs a escrever uma biografia, tarefa que exige método que, como amador, ele não domina; tampouco se propôs a fazer um ensaio ou um estudo sobre a obra da artista. “Perfil é trabalho de amador”, decreta. “Autoridade para escrever a biografia de Aracy tem o Sérgio Cabral, mas ele diz que só eu tenho condições de fazê-lo, por causa do meu relacionamento com Aracy”, revela Hermínio.

A Aracy de Almeida que salta das páginas de “Araca – Arquiduquesa do Encantado” amava as artes plásticas, foi íntima de Noel, ouvia Bach, Mozart, Armstrong e Ella Fitzgerald. Exibia em sua casa, no bairro do Encantado, quadros de Di Cavalcanti. Recitava versos de Augusto dos Anjos, lia as Sagradas Escrituras, enternecia-se na época do Natal. Tinha como “anjos protetores” Vinícius de Moraes e Antônio Maria, de quem mereceu, em livro, um belo texto.

Sua voz de timbre anasalado foi objeto de estudo de Mário de Andrade. A tantas qualidades contrapunha-se um jeito transgressor, iconoclasta. Sabia ser desairosa e inconveniente, como quando, ao receber o recém-casado Sérgio Cabral numa festa, perguntou-lhe, na frente de todos: “Como é, Sérgio Cabral? Tens copulado muito?” Foi esse lado de Aracy que a televisão exacerbou.

“Aos poucos, foi-se matando a grande cantora, a mais visceral das intérpretes brasileiras. Ela passou a ser ignorada como cantora. Cedeu, e foi cooptada pelo sistema. No programa do Sílvio Santos, ela guardou a amabilidade, que eu tanto conheci, e fez questão de se mostrar transgressora”, afirma Hermínio.

UMA DAS ÚLTIMAS GRAVAÇÕES FOI UM SAMBA POLÊMICO DE CAETANO VELOSO

O processo de esquecimento a que foi submetida começa quando surge a bossa nova, que Aracy detestava, mas mesmo assim gravou um disco em que fazia uma leitura bossa-novista de músicas anteriores ao gênero criado por João Gilberto. Esse disco, lançado em meados dos anos 60 pela gravadora Elenco, de Aloísio de Oliveira – produtor e compositor, parceiro de Tom Jobim -, foi remasterizado em CD no final do ano passado. Mas o “canto do cisne” de Aracy deu-se em 68, na I Bienal do Samba da TV Record, e até hoje rende polêmicas.

Ela defendeu o samba “A voz do morto”, composto por Caetano Veloso. Era uma espécie de paródia de “A voz do morro”, de Zé Ketti. A Bienal foi uma reação ao movimento tropicalista, que naquele ano explodira os alicerces da tradição na música brasileira, e proibiu-se a participação de guitarras no festival.

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No livro “Tropicalismo – A Decadência Bonita do Samba”, o jornalista Pedro Alexandre Sanches defende a tese de que a canção foi, mais do que deboche, um vaticínio de Caetano, artífice do Tropicalismo. O samba estava morto, e seus intérpretes, representados na figura de Aracy, também. Ela não teria percebido a real proposta de Caetano.

Hermínio, que não aborda o episódio no livro, discorda dessa tese: “Em geral, não creio nisso que o Sanches escreveu. Caetano, depois da Bienal, entrou no rol dos compositores preferidos de Aracy. Ela precisa voltar ao proscênio. Não da televisão – mas como uma das maiores intérpretes da nossa música em todos os tempo”.

*Bruno Filippo é jornalista e sociólogo e escreveu este artigo como convidado do Setor 1.

Romulo Tesi

Romulo Tesi Jornalista carioca, criado na Penha, residente em São Paulo desde 2009 e pai da Malu. Nasci meses antes do Bumbum Paticumbum Prugurundum imperiano de Aluisio Machado, Beto Sem Braço e Rosa Magalhães, em um dia de Vasco x Flamengo, num hospital das Cinco Bocas de Olaria, pertinho da Rua Bariri e a uma caminhada do Cacique de Ramos, do outro lado da linha do trem. Por aí virei gente. E aqui é o meu, o nosso espaço para falar de samba e Carnaval.

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