Com um texto recheado de referências de diferentes épocas e áreas de saber, a Beija-Flor divulgou neste domingo, 21, a sinopse do seu enredo para o Carnaval de 2021: “Empretecer o pensamento é ouvir a voz da Beija-Flor”, de temática antirracista e exaltação de pensadores negros e a própria comunidade.
A sinopse leva a assinatura do jornalista João Gustavo Melo, considerado um dos principais enredistas do Carnaval atualmente. No entanto, de acordo com o texto divulgado pela escola, tratas-se de um enredo “de autoria coletiva. Foi escrito pelas mãos, vozes e memórias de cada componente da nossa comunidade”.
“Na criação do texto, o profissional recebeu sugestões de integrantes da agremiação e as aprofundou com o apoio de referências bibliográficas que incluem obras de personalidades negras. Entre elas, estão a escritora Carolina Maria de Jesus; o jornalista e sociólogo Muniz Sodré; a filósofa e escritora Djamila Ribeiro; a jornalista e economista Flávia Oliveira e o cantor e compositor Emicida”, diz a escola, dando uma ideia da rica e diversificada fonte de referências.
O texto começa exaltando a importância da representatividade (“fazer parte de uma bandeira de arte e de luta que é exemplo para o nosso povo. É como gostamos de nos ver refletidos”) e explica o que sugere o título.
“Empretecer o pensamento do mundo é dar a toda a humanidade a oportunidade de uma visão diferente e original, com novos caminhos para o futuro, estabelecendo outras rotas possíveis”, diz a sinopse.
Há menções e citações de diversos pensadores negros, incluindo Frantz Fanon (“Produzimos jeitos diversos de pensar o sentido de um mundo plural, mesmo que máscaras brancas sejam colocadas sobre a pele negra”), um dos principais nomes sobre os processos de descolonização, morto nos anos 1960; o rapper Emicida (“No caminho da luz, todo mundo é preto”), importante voz que usa a música para combater o racismo e denunciar mazelas contemporâneas; e o compositor Cabana, que não só ajudou a fundar a Beija-Flor como foi um dos maiores responsáveis pelo desenvolvimento do Carnaval como é conhecido hoje.
Por fim, a escola se posiciona a favor de cotas raciais e “pelo cumprimento da Lei 10.639 (atualizada pela Lei 11.645), que trata da obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileira e indígena nas escolas”.
“Sei que, nessa empreitada, tenho que empretecer meu pensamento. Isso envolve me colocar numa posição de humildade e estudar a melhor maneira de trabalhar”, disse Alexandre Louzada, um dos carnavalescos da escola, em declaração divulgada pela agremiação.
A Beija-Flor também divulgou a logo do enredo, escolhida em um concurso com mais de 100 obras inscritas.
“Inspirado no movimento afrofuturista, foram usados poucos elementos para este retrato: a transição, em rostos que se completam, entre o ancestral que nos negam e o futuro que nos impedem. Os pensadores angolanos sustentam um título de forma a remeter os pôsteres de apoio a Angela Davis (filósofa) no movimento antirracista americano. Sim, empretecer o pensamento é pensar como Angola, como a África; empretecer o pensamento é enaltecer os seus, os nossos”, explicou André Rodrigues, criador da peça.
Leia a sinopse na íntegra e, logo abaixo, veja as referências:
BEIJA-FLOR DE NILÓPOLIS
“Empretecer o pensamento é ouvir a voz da Beija-Flor”
Razão de cantar feliz é poder nos reconhecer através das histórias que revelam a nossa essência. REPRESENTATIVIDADE é fazer parte de uma bandeira de arte e de luta que é exemplo para o nosso povo. É como gostamos de nos ver refletidos. Quem vê a fragilidade do voo de um beija-flor nem sequer imagina quantas vezes o coração bate e qual o tamanho do esforço para chegar à flor. É assim que se dá a ligação entre a bandeira nilopolitana e o nosso povo. É pela alegria e pelo prazer de brilhar na Avenida que superamos as dificuldades vividas durante o ano para no Carnaval sermos a referência de um Brasil mais africano.
A marca de vencer tantos carnavais já nos fez vestir muitas glórias. Porém, muito mais que isso, acreditamos que nossa sina é a afronta, o debate e a provocação artística. É cumprir todo ano a romaria, da Baixada à Avenida para fazer o povo protagonista e proporcionar o destaque que o Brasil sempre nos negou. Olha em volta, é hora de mais um acerto com a história, nosso povo de novo acordou e só está aguardando razão de cantar feliz o ressoar do som do teu tambor.
Sinopse
Este enredo é de autoria coletiva. Foi escrito pelas mãos, vozes e memórias de cada componente da nossa comunidade.
A imagem do Pensador, a bela estatueta do povo tchowkwe, que habita a região Nordeste de Angola, inspira-nos a levar para a Avenida um enredo sobre a contribuição intelectual negra para construção de um Brasil mais africano. Nossa civilização conhece e respeita os pensamentos esculpidos em mármore greco-romano. Mas por que não talhar os saberes em ébano? Empretecer o pensamento do mundo é dar a toda a humanidade a oportunidade de uma visão diferente e original, com novos caminhos para o futuro, estabelecendo outras rotas possíveis.
Ao longo do tempo, foram grafadas em pedras duras imagens estereotipadas da África como um ajuntamento de sociedades tribais destituídas de pensamentos e tecnologias. Isto nos impede de ver o legado e a diversidade dos povos e refletir sobre a possibilidade de empretecer o conhecimento humano.
Muitas vezes enquadrada no campo do primitivo e do exótico, nossa forma sofisticada de ver o mundo é desvalorizada por estruturas coloniais racistas que desprezam a riqueza intelectual que produzimos.
Por isso, mais do que nunca, é hora de inspirar mentes, trabalhar pelo “reencantamento” de tudo, e talhar em madeira forte nossos saberes, feito sementes espalhadas por soberanos pássaros de ébano.
“No caminho da luz, todo mundo é preto”
(Emicida)
A diáspora do pensamento negro é um jogo de espelhos que faz refletir por muitas e muitas terras, povos e gerações o valor da nossa gente. Um negrume multicor que construiu monumentos em eras gloriosas, e que também passou a sofrer constantes tentativas de apagamento e silenciamento. Mas o legado dos nossos ancestrais persiste nas cores e nas formas que se afirmam pujantes, assim como a saga do nosso povo. Em muitos tons de negro, erguemos totens, esculpimos imagens de adoração de muitas fés, trançamos palha e fibra, entrelaçamos referências, bordamos a geometria das coisas e dobramos o tempo. Como num colar multicor, colocamos nos fios das artes visuais as mais raras pérolas e as contas mais sagradas dos nossos antepassados.
A costura de um tecido de pensamentos sofisticados se dá a partir dos ensinamentos dos antigos para constituirmos a “afrosofia” de hoje. Em memórias transmitidas de geração a geração, somos sujeitos de poder, guiados pelos ancestrais. Produzimos jeitos diversos de pensar o sentido de um mundo plural, mesmo que máscaras brancas sejam colocadas sobre a pele negra. Falamos e escrevemos em bom “pretuguês”, para o mundo inteiro ouvir, o valor das nossas reflexões que se desdobram em ações afirmativas. A voz da intelectualidade altiva e forte se ergue contra as desigualdades, propondo novos caminhos para transformar a realidade em que vivemos. É o levante quilombista em nome de uma sociedade mais justa!
A escrita de nós sobre nós faz emergir uma literatura que não se limita à entronização de heróis coloniais. Nossos personagens são escritos nas frestas, somos filhas e filhos do cotidiano e do épico, da dor e do prazer, dos movimentos sociais e das reflexões coletivas. As fraturas do processo escravocrata se manifestam na inquietação das palavras de azeviche. Imagens “poétnicas” de potência avassaladora, original e amplificadora de sentimentos e revoltas. São faíscas literárias que encandeiam ideias retintas e permitem reescrever mais e mais Brasis.
Sob as luzes – e às vezes sob as sombras – da ribalta, encenamos a liberdade como texto primordial. Nos palcos do Teatro Experimental do Negro, invocamos a energia vital dos antepassados, espelhando a fúria e a brandura das divindades. Alegria e manifestação! Articulações engajadas fazem com que se multipliquem nomes e mais nomes entre a “grande constelação das estrelas negras”. São a essência do vigor dos nossos passos, da expressão maior dos nossos sonhos e dos nossos corpos instruídos de energia e técnica. Somos constante movimento, pois somos filhos de deuses que dançam!
Agora cessem tudo o que antiga musa canta, porque uma flor nasceu no asfalto… E será cortejada por um pássaro de ébano, mestre-sala dos ventos a lufar sementes do samba, criação preta em essência. Filosofia em tambor sincopado que se transformou no maior espetáculo do ayê. Que possamos celebrar a arte que se afirma em cada Carnaval quando uma voz canta e um corpo responde “ao ressoar do som de um tambor”.
Maravilhosa e soberana é a nação que anualmente ritualiza e espalha seus saberes ancestrais. Em Apoteose, vamos elevar nosso cantar feliz a Cabana, o pensador de ébano que, com suas composições e enredos, ajudou a esculpir o Beija-flor no terreiro sagrado do Carnaval.
A ele e todos os ancestrais do samba, dedicamos nosso desfile, exaltando a memória e o trabalho intelectual do povo preto, e evocando o símbolo adinkra do pássaro que, com os pés fincados no chão, olha para trás para poder agir no presente e seguir rumo ao futuro.
Epílogo
A Beija-Flor de Nilópolis, como referência cultural formada essencialmente pelo povo negro da Baixada Fluminense, ao voltar a propor um enredo tendo foco central a intelectualidade negra, reafirma as pautas sociais cujas demandas passam pela defesa do sistema de cotas raciais e pelo cumprimento da Lei 10.639 (atualizada pela Lei 11.645), que trata da obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileira e indígena nas escolas. Repudia ainda qualquer discriminação religiosa contra o nosso povo, reafirmando a laicidade do Estado brasileiro. E, por fim, torna-se mais uma voz a se levantar contra a violência no país, que tem atingido especialmente corpos negros, vítimas do racismo estrutural que vigora no país. Basta! Seus filhos já não aguentam mais!
Referências: vozes e escritas
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