O Carnaval de um ano costuma refletir os resultados do Carnaval anterior. Essa dinâmica continua ditando os rumos dos desfiles das escolas de samba, tanto que, após o título da Mangueira de 2019, exaltando os heróis ignorados pela história oficial, a maioria dos enredo de 2020 tem como marca a crítica social e política.
Das 13 escolas, oito levarão para a Marquês de Sapucaí temas que levantam diferentes bandeiras, desde o movimento feminista até a intolerância religiosa, entre outras questões que dominam o debate atualmente no Brasil e no mundo.
Há homenagens a figuras importantes do país, mais ou menos conhecidas, como Elza Soares e o pai de santo Joãozinho da Gomeia, além de uma imaginada volta de Jesus Cristo, no caso da Verde e Rosa – todos servindo como protagonistas de desfiles que prometem botar a Sapucaí para pensar.
Mais: em um ano sem dinheiro da prefeitura, conforme o prefeito Marcelo Crivella confirmou, o tom da crítica deve subir.
Veja abaixo o que vem por aí:
Mangueira
“A verdade vos fará livre”
Carnavalesco: Leandro Vieira
Atual campeã, a Mangueira mantém a linha de enredos críticos em 2020. Para tentar o bi, o carnavalesco Leandro Vieira imagina a volta de Jesus Cristo no mundo atual, marcado pela intolerância. E o enredo (atenção) levará o título sugestivo de “A verdade vos fará livre”, em que é quase impossível não fazer uma associação imediata com o lema bíblico tornado slogan do presidente da República, Jair Bolsonaro: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Promete mais um pré-Carnaval agitado, e deve enriquecer o debate político dentro do Carnaval.
Viradouro
“Viradouro de Alma Lavada”
Carnavalescos: Tarcísio Zanon e Marcus Ferreira
A escola de Niterói perdeu Paulo Barros e apostou em uma dupla de jovens carnavalescos para tocar um enredo de forte teor feminista. Em 2020, a agremiação contará a história das ganhadeiras baianas, mulheres do século 19, escravas ou libertas, fundamentais para o sustento das famílias e decisivas para uma – ainda que incipiente – emancipação feminina. Há relatos de que as ganhadeiras chegaram a ter o monopólio no comércio de alguns gêneros no varejo, o que acabou criando uma rede de controle de preços. Essa mesma teia de contatos ajudaria no trânsito de escravos em fuga ou que viviam em quilombos.
Vila Isabel
“Gigante Pela Própria Natureza – Jaçanã e um Índio Chamado Brasil”
Carnavalesco: Edson Pereira
O carnavalesco Edson Pereira usou criou uma narrativa indígena para contar a história de Brasília, que completa 60 anos em 2020. O desfile, que conta com chancela e apoio do governo do Distrito Federal, promete ser mais uma apresentação opulenta e, portanto, a Vila deve figurar entre as favoritas ao título. O enredo se repete no Rio de Janeiro dez anos depois de a Beija-Flor mostrar a capital federal na Marquês de Sapucaí, em desfile que rendeu um 3º lugar. O desfile aconteceu em meio ao escândalo de corrupção envolvendo o então governador distrital, José Roberto Arruda, alvo da Operação Pandora, da Polícia Federal. Arruda era acusado de articular um esquema de corrupção integrantes do governo, deputados e empresas.
Portela
“Guajupiá, Terra sem males”
Carnavalescos: Renato e Márcia Lage
A Águia de Madureira vai levar para a Sapucaí a “história do Rio de Janeiro antes do Rio de Janeiro”, ou seja, a cidade antes da chegada dos portugueses (e outros europeus). Na prática, é um enredo com temática indígena que abre espaço para falar sobre genocídio dos índios a partir do descobrimento e que, em alguma medida, permanece até os tempos atuais. O Guajupiá do título é, segundo a mitologia tupi-guarani, o paraíso para onde vão os espíritos dos mortos. Lá, a “terra sem males”, os índios teriam vida eterna ao lado de seus antepassados.
Salgueiro
“O Rei negro do picadeiro”
Carnavalesco: Alex de Souza
O primeiro palhaço negro do Brasil, Benjamin de Oliveira, será o personagem homenageado pela escola tijucana no Carnaval 2020, ano em que completam-se 150 anos do nascimento do artista mineiro. Benjamin superou o preconceito para se tornar um dos maiores artistas do Brasil no início do século 20. Era filho de mãe escrava e pai capataz. Fugiu com a trupe de um circo até chegar ao Rio de Janeiro, onde fez fama e chamou atenção de gente poderosa – inclusive do presidente da República. O enredo pode abrir espaço para o carnavalesco Alex de Souza falar sobre racismo e intolerância. Em 2017, um episódio envolvendo Benjamin foi, inclusive, emblemático: a estátua do artista em sua cidade natal foi vandalizada com pichações de suásticas nazistas.
Mocidade
“Elza Deusa Soares”
Carnavalesco: Jack Vasconcelos
Após anos de espera, a torcida da Mocidade finalmente poderá prestar sua homenagem exclusiva a uma de suas personalidades mais cultuadas, a cantora Elza Soares. A identificação de Elza com a escola dispensa explicações: nascida na Vila Vintém, ela já desfilou diversas vezes pela Mocidade, em várias funções – até de madrinha de bateria. É dela, inclusive, a voz da célebre gravação de “Salve a Mocidade”, samba exaltação da escola. A escola contratou o carnavalesco Jack Vasconcelos, célebre pelo desfile do Paraíso do Tuiuti de 2018 sobre a escravidão. Portanto, espera-se um enredo de tom político, feminista, para contar a história da mulher pobre que venceu o preconceito para se tornar uma das maiores cantoras do mundo.
Unidos da Tijuca
“Onde moram os sonhos”
Carnavalescos: Paulo Barros, Marcus Paulo e Hélcio Paim
Após uma saída turbulenta, Paulo Barros volta à Tijuca com um enredo sobre arquitetura e urbanismo, em que pretende, segundo texto da sinopse, “mostrar a incrível capacidade do homem de criar espaços que possam servir de abrigo para diferentes atividades”. Pelo o que se sabe, o desfile pretende lançar um alerta sobre o crescimento desordenado das cidades e suas consequências. “É preciso conservar o patrimônio cultural da humanidade”, afirma a escola em texto. Mas a sinopse entrega pouco, como costumam ser os carnavais de Barros. Para saber mais, só na hora, na Sapucaí.
Paraíso do Tuiuti
“O Santo e o Rei: Encantarias de Sebastião”
Carnavalesco: João Vitor Araújo
Depois de longas temporadas nas divisões de Acesso, o Tuiuti se firmou no Grupo Especial com enredos críticos, marca do carnavalesco Jack Vasconcelos, sobretudo a partir de 2018 (ano dos “Manifestoches” e do “Temer vampiro”). A mesma pegada, com adaptações, é mantida com a chegada de João Vitor Araújo, que estreia na escola de São Cristóvão com um desfile que vai misturar o mito do sebastianismo, do rei português D. Sebastião, com a devoção carioca por São Sebastião. A ligação entre os dois personagens é maior do que alguns possam imaginar. A começar que o rei nasceu em 20 de janeiro, e por isso recebeu o mesmo nome. Há ainda uma lenda de que o D. Sebastião teria recebido de presente de um papa uma das flechas do martírio do santo, padroeiro do Tuiuti. É um enredo denso, com espaço para crítica social carioca, com uma analogia entre as flechas e as balas.
Grande Rio
“Tata Londirá: O Canto do Caboclo no Quilombo de Caxias”
Carnavalescos: Gabriel Haddad e Leonardo Bora
A chegada da dupla de jovens carnavalescos Gabriel Haddad e Leonardo Bora, ex-Cubango, já provocou uma mudança na escola: uma guinada na temática dos enredos. Saem as grandes personalidades midiáticas e abstrações, voltam os personagens do universo popular e afro. É o caso do homenageado, o pai de santo baiano Joãozinho da Gomeia. O Tata Londirá do título foi tão importante para o candomblé que se transformou em uma espécie de celebridade religiosa, com ruidosa atenção da mídia. Atendeu todo tipo de gente em seu terreiro em Duque de Caxias, para onde se mudou após deixar a Bahia, inclusive integrantes do jet set brasileiro a partir dos anos 50. Figuram na extensa lista desde artistas até políticos, incluindo Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek. O pai de santo ainda realizava apresentações na rua e desfilava no Carnaval, inclusive vestido de vedete. Em tempo de depredações em terreiros, o desfile vai inevitavelmente falar de intolerância religiosa.
União da Ilha
“Nas encruzilhadas da vida, entre becos, ruas e vielas, a sorte está lançada: Salve-se quem puder!”
Carnavalescos: Fran Sérgio, Cahê Rodrigues, Larissa Pereira, Anderson Netto, Allan Barbosa, Felipe Costa
A União da Ilha inovou e, em 2020, vai tirar do samba vencedor o enredo para a escola. Tudo que a agremiação, reforçada pelo diretor de Carnaval Laíla, adiantou foi o título. Não há sequer sinopse, mas o samba entrega: será um desfile sobre a dura e violenta vida dos moradores das comunidades mais pobres.
Beija-Flor
“Se essa rua fosse minha”
Carnavalescos: Alexandre Louzada e Cid Carvalho
Com a volta de Alexandre Louzada, a Beija-Flor tentará voltar aos tempo de opulência visual – marca andou sumida nos últimos anos. Para isso, a Deusa da Passarela vai falar sobre “rumos, rotas, trajetórias, caminhos e estradas por onde a humanidade passou”, como explica a sinopse do enredo. A escola quer apagar o péssimo resultado de 2019, quando terminou em 11º, bem longe de um lugar no Desfile das Campeãs, justo no ano em que falava de si mesma.
São Clemente
“O conto do vigário”
Carnavalesco: Jorge Silveira
Partindo da história de um vigário de Ouro Preto (MG), que trapaceou para vencer a disputa por uma imagem de uma santa com outra paróquia no século 18, a São Clemente vai falar das trapaças da atualidade, e de como o brasileiro se deixou ser enganado pelas histórias mais fantasiosas e mirabolantes. O contexto para crítica política são as fake News que infestam as redes sociais atualmente – algumas compartilhadas inclusive pelas autoridades.
Estácio de Sá
“Pedra”
Carnavalesca: Rosa Magalhães
Campeã da Série A, a Estácio se reforçou com a carnavalesca multicampeã Rosa Magalhães para tentar permanecer no Grupo Especial. Pela sinopse, o enredo fala sobre as pedras em várias abordagens, inclusive o da mineração, citando poetas como Carlos Drummond de Andrade. No lançamento do enredo, Rosa disse aos compositores para não mencionarem a questão da preservação ambiental de forma explícita nos sambas. “Não é necessário. Para bom entendedor, meia palavra basta”, declarou a Professora.
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