A São Clemente anunciou neste domingo o enredo para a escola em 2019: será uma reedição de “E o samba sambou”, de 1990, quando a agremiação fez um alerta para o afastamento do Carnaval de suas origens – cenário, diga-se, que se consolidou desde então.
“Vamos fazer isso porque se faz necessário, porque a voz do povo quer ouvir novamente o verdadeiro samba”, diz o carnavalesco Jorge Silveira, umas das maiores revelações do Carnaval, em vídeo divulgado pela escola.
A escolha confirma a onda de enredos críticos prevista desde o último Carnaval, com Beija-Flor e Paraíso do Tuiuti, campeã e vice, respectivamente, com temas políticos, cada uma a seu jeito. No caso da São Clemente, porém, significa também a retomada de uma velha tradição da agremiação, que ganhou o rótulo de escola contestadora por causa de desfiles engajados em grandes questões sociais na década de 80. O de 1990 é um dos mais marcantes da história clementiana, e valeu o sexto lugar.
A ideia é atualizar o debate com as questões atuais do Carnaval, como a supervalorização de celebridades de fora do samba, a concorrência por holofotes por parte de rainhas e musas, com a consequente marginalização dos sambistas, e a atenção maior dada aos quesitos visuais em detrimento aos de chão.
Mea culpa
O enredo também motiva uma reflexão por parte da própria escola, parcialmente responsável pela virada de mesa que evitou as quedas de Grande Rio e Império Serrano este ano. Logo em suas primeiras linhas, a sinopse faz a mea culpa e admite que a São Clemente apoiou a quebra das regras que arranhou mais um pouco a já frágil credibilidade do Carnaval do Rio.
“No jogo do amor e do samba não tem regras: ou se tem, depende. Cartas na mesa, mesa virada. E o amor ao samba? Ah, camarada… Tudo tem seu preço e seu apreço. Quem tem padrinho não morre pagão!”, diz o texto, parafraseando o presidente de honra da Grande Rio, Helinho de Oliveira, que comemorou com frase semelhante a manobra que salvou a agremiação de Duque de Caxias.
“O brado retumbante de 90 ecoou com tanta força que se fez profecia: E o Samba Sambou… Da mesma forma que disse em 90, não sou dono da verdade. Também cometi meus pecados. A mesa virada tem lá minha digital. Assumida. Mas peixe pequeno frita mais rápido que peixe graúdo. Tá dado meu recado. Porém, jocoso que sou, faço piada de mim mesmo. Aliás, tenho isso correndo nas veias: meu DNA foi construído apontando o dedo em riste e sambando na cara da sociedade. Meu histórico me credencia. Basta olhar meu manancial”, confessa a escola no texto que servirá de base para o desenvolvimento do desfile.
Veja o vídeo de apresentação do enredo, com depoimentos do presidente, do carnavalesco e de Helinho 107, um dos autores do samba de 1990.
Carnaval do Povo
“O DNA da São Clemente sempre foi de enredos críticos e irreverentes. Nossa missão não é só com o clementiano, nossa missão é dá valor, é dar mais força ao sambista de verdade”, declara o presidente da São Clemente, Renato Almeida Gomes, que dá uma ideia dos rumos do Carnaval da escola.
“É uma valorização ao Carnaval. Não queremos falar de política como tem acontecido, nossa crítica é em prol do sambista de verdade. É um resgate ao DNA da São Clemente, ao que ela construiu em toda sua história. Perdi a conta das vezes que me deparei com um amigo sambista falando que sente falta do Carnaval como festa. Sabemos do momento que nossa festa vive, no espetáculo que se transformou, mas sabemos também da importância de sempre valorizar sua essência. Em 2019, o objetivo da São Clemente é fazer um desfile que relembre e valorize o Carnaval do Povo, feito por ele e pra ele”, afirma Gomes.
Ouça o samba da São Clemente de 1990, “E o samba sambou” (Chocolate, Helinho 107, Mais Velho e Nino):
Leia abaixo a sinopse na íntegra:
“E o Samba Sambou.
No jogo do amor e do samba não tem regras: ou se tem, depende. Cartas na mesa, mesa virada. E o amor ao samba? Ah, camarada… Tudo tem seu preço e seu apreço. Quem tem padrinho não morre pagão! O brado retumbante de 90 ecoou com tanta força que se fez profecia: E o Samba Sambou…
Da mesma forma que disse em 90, não sou dono da verdade. Também cometi meus pecados. A mesa virada tem lá minha digital. Assumida. Mas peixe pequeno frita mais rápido que peixe graúdo. Tá dado meu recado. Porém, jocoso que sou, faço piada de mim mesmo. Aliás, tenho isso correndo nas veias: meu DNA foi construído apontando o dedo em riste e sambando na cara da sociedade. Meu histórico me credencia. Basta olhar meu manancial.
Esse de 90 tem um molho especial. Nunca antes na história dessa república se fez tão necessário reviver esse discurso. O planeta samba virou de ponta cabeça, inverteu a ordem, subverteu a lógica. Infelizmente, tudo que foi dito, de fato aconteceu (quiçá piorou!). E não tem jeito, tá na minha raiz primeira. No meio desse turbilhão, eu não podia faltar ao enfrentamento. Já que o recado não foi ouvido da outra vez, vamos novamente ser “fieis” à nossa conduta e largar o chumbo grosso!
Luz, câmera, negociação: tá no ar mais um espetáculo na tela. É fantástico! O sambista dá lugar a vedete da internet, que usa o GRES para ser manchete. Uma aparelhagem tecnológica digna de cinema ganha mais importância que o gingado generoso da mulata. Não tem jeito: virou Hollywood isso aqui. Mil artistas de verdade, que riscam o chão com sua herança, tem menos espaço na lente da câmera que atriz/apresentadora/promoter. Que sacanagem…
Já começa errado quando a autoridade não reconhece que no carnaval quem manda é Momo! Não entregar a chave a Sua Majestade é um pecado mortal pros súditos da folia. Na pista, ganha o interesse: nossos símbolos culturais são substituídos pelo estrangeirismo barato. E como tem gringo no samba! Camarada, você não imagina o poder de uma credencial: é tanto aspone na avenida que parece que tem duas escolas desfilando ao mesmo tempo. No ritmo do samba moderno, uma correria contra o relógio; um verdadeiro “coopersamba”! E o povão…? É, esse ficou de fora da jogada. Nem lugar na arquibancada ele tem mais pra ficar. A grana entope os camarotes de sertanejo, música eletrônica e de todo tipo de som, menos o próprio dono da festa: o samba. Que mico minha gente… Olha o que o dinheiro faz!
E por falar na grana, hoje a rainha paga pra sambar. Um verdadeiro dote de privilégios. Cadê as meninas da comunidade riscando o asfalto? Tudo tem seu preço e seu apreço camarada… elas fazem tudo para aparecer na tela da TV, no meio desse povo! E a mídia “toda poderosa” controla tudo a seu bel prazer. Até mesmo a opinião pode ser comprada! Como não? Até o samba é dirigido com sabor comercial. Tem que ser registrado, carimbado, protocolado no escritório: uma verdadeira exportadora de “bois-com-abóbora”.
E o samba vai se vendendo às vaidades, sendo usado como plataforma pra fulano, beltrano e quem mais quiser seus 15 minutos de fama. Que covardia… Carnavalescos e destaques vaidosos transformam a Sapucaí num verdadeiro ringue aos seus insaciáveis egos. E o samba vai perdendo a tradição…
Mas eu sempre avisei. Eu sempre falei. E você sabe disso: o boi voou e denunciou a roubalheira, a galhofa, a bandalheira. Era profecia de uma chacota nacional. Eu, pequenino, quase rodei esse ano, triste feito um cão sem dono. Mas como “quem casa quer casa”, tô apaixonado pelo lugar que conquistei. “Não adianta jogar água malandragem”, “eu mato a saúva antes dela me matar”.
Temos que cuidar do samba. Segurar essa mesa no lugar. Caso contrário, nem povão na arquibancada vamos ter mais pra nos aguardar, afinal “Quem avisa amigo é”.
Temos que segurar firme essa onda. Pelo amor que temos ao samba, vamos preservar esse “antigo reduto de bambas”, para que as gerações futuras possam ainda curtir o verdadeiro samba.”
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