Com o samba do Salgueiro na ponta da língua, povo yanomami manda papo reto sobre luta pela terra

Concentração do Salgueiro e os indígenas yanomami – Foto: Romulo Tesi

A concentração do Salgueiro na avenida Presidente Vargas, na altura da sede dos Correios, ainda estava calma – algo raro em ambientes como esse – quando uma cantoria irrompeu o falatório de componentes, jornalistas e curiosos. Eram os indígenas yanomamis, provavelmente os desfilantes mais pontuais, entoando os versos do samba da escola dedicado a eles.

“Falar de amor enquanto a mata chora. É luta sem flecha, da boca pra fora”, cantava o grupo, que viajou da Amazônia ao Rio de Janeiro para desfilar no Salgueiro neste domingo (11), primeiro dia do Grupo Especial do Carnaval carioca.

A cena comoveu alguns dos presentes, principalmente quem reparou em um detalhe naquele canto.

“Alguns nem falam português, mas estão cantando o samba”, notou o escritor Ailton Krenak, surpreso com o que estava testemunhando.

Logo as vozes do Salgueiro se juntavam ao coro, materializando uma união apontada pelo líder indígena e xamã yanomami Davi Kopenawa, que definiu o encontro promovido pelo Salgueiro como a simbiose do povo da floresta com o povo negro.

“O homem branco escuta, mas não fica preocupado. Por isso que precisamos encontrar uma aliança dos yanomami, os negros e outros povos, para pressionar quem está nos maltratando”, declarou o xamã, o mais requisitado para entrevistas. E em cada uma, fazia questão de denunciar toda ação predatória que vitimiza o povo yanomami há anos no Brasil, que o Salgueiro verbalizou na letra do aguerrido samba de 2024, de Marcelo Motta e parceiros.

“Na minha casa, não. Eu não quero garimpeiro ao lado da minha casa. Lá [terra yanomami] não é casa do garimpeiro”, disse Kopenawa, num papo reto que não faz curva – no máximo a da esquina da Presidente Vargas com a Marquês de Sapucaí.

Salgueiro 2024 – Alexandre Vidal/Rio Carnaval

A terra

Não por acaso o enredo foi batizado de “Hutukara”, palavra da língua yanomami que, numa tradução simples para o português, seria a terra-floresta – ou seja, o próprio mundo onde o povo indígena vive e tira seu sustento.

“Hutukara” foi um dos primeiros enredos a serem anunciados para 2024, logo após o Carnaval de 2023, quando a questão da tragédia yanomami, com mortes em larga escala, inclusive de crianças, pela fome já se colocava como um primeiro desafio urgente do então recém-empossado governo Lula. Isso logo depois do descaso dos anos de Jair Bolsonaro na presidência.

O Salgueiro vinha de um desfile de difícil compreensão, inspirado na obra de Joãosinho Trinta, que rendeu notas baixas em enredo e um incômodo sétimo lugar, portanto fora do Desfile das Campeãs, algo que não acontecia desde 2007. Quando anunciado, “Hutukara” fez a chamada “bolha carnavalesca” receber a notícia como um ajuste na rota salgueirense. Era a escola conectada com as questões mais urgentes da sociedade.

Dinheiro guardado apodrece

O pré-Carnaval foi a fase de solidificar a aproximação do morro do Salgueiro com o Hutukara, em uma série de ações que uniu a comunidade – mordida por 2023 – e rendeu um samba considerado um dos melhores do ano.

Chegou o dia do desfile, e muitas da promessas feitas pelo governo Lula, reclama Kopenawa, não foram cumpridas, um ano depois, mantendo acesa a urgência das reivindicações dos indígenas.

“Nós queremos que as autoridades tirem os invasores da terra yanomami”, diz, em outro papo reto. “Não é para depois de amanhã, é urgente. Falam que não tem dinheiro. Tem dinheiro sim. Tem dinheiro no banco, guardado. Esse dinheiro está apodrecendo. Tem que usar para a Funai, para o Ministério dos Povos Indígenas”, completa o líder indígena, cobrando celeridade do governo federal.

A pressa, aliás, toma conta do ambiente com o frenesi causado pelo início dos movimentos das alegorias rumo à Sapucaí. E lá vão os yanomami subir no último carro, com o discurso afiado de Davi Kopenawa. E com o samba na ponta da língua.

Romulo Tesi

Romulo Tesi Jornalista carioca, criado na Penha, residente em São Paulo desde 2009 e pai da Malu. Nasci meses antes do Bumbum Paticumbum Prugurundum imperiano de Aluisio Machado, Beto Sem Braço e Rosa Magalhães, em um dia de Vasco x Flamengo, num hospital das Cinco Bocas de Olaria, pertinho da Rua Bariri e a uma caminhada do Cacique de Ramos, do outro lado da linha do trem. Por aí virei gente. E aqui é o meu, o nosso espaço para falar de samba e Carnaval.

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