Como Dona Zica e um motorista atrasado ajudaram a criar clássica capa de Cartola

Autor da foto, Ivan Klingen garante: se não fosse a baluarte mangueirense, imagem de Cartola com xícara verde não existiria

Cartola

O nome de Dona Zica não consta nos créditos de “Verde Que Te Quero Rosa”, álbum de Cartola lançado em 1977, mas deveria. Tudo pelo decisivo trabalho de produção da famosa foto do sambista mangueirense tomando café numa xícara verde, imagem que entrou para a iconografia da música brasileira.

“Essa foto é um milagre. Só saiu por causa de Deus. E da Zica”, lembra o fotógrafo Ivan Klingen, autor da imagem de Cartola em close, ao Setor 1. Imagem que por pouco não aconteceu, e só foi registrada por uma conjunção de fatores que incluiu um atraso, um cafezinho e, é claro, a obstinação de Dona Zica.

(Ouça enquanto lê a história)

Numa noite do meio do ano de 1977, Klingen foi surpreendido por um telefonema às 22h. Em tom de urgência, um funcionário da RCA passou o serviço: fotografar Cartola na Mangueira no dia seguinte, e tinha que ser manhã, já que a ideia era incluir a foto no material de divulgação da gravadora em agosto.

“Eu nem dormi. Não tinha um briefing, uma ideia, nada. E não tinha como falar com alguém da arte àquela hora”, conta Klingen, que no dia seguinte, virado, pegou um táxi em Copacabana rumo à Mangueira.

Pouco depois da alvorada mangueirense, o fotógrafo chegou ao pé do morro sem mesmo saber por onde entrar. O combinado era encontrar um funcionário da gravadora que residia nas redondezas, que ajudaria a localizar Cartola. O tal empregado furou, mas Klingen achou, em um boteco, um guia para ajudá-lo na base da mais pura hospitalidade da Mangueira, essa sala de recepção.

Ao chegar na casa do casal Cartola e Zica, Klingen se deparou com uma cena desanimadora: o compositor, sem aviso da RCA sobre a foto, estava do lado de fora e de malas prontas, esperando um parente que o levaria para a rodoviária.

Um impaciente Cartola ouviu os pedidos do fotógrafo, e, mesmo sem disfarçar a indisposição, topou posar para Klingen. Mas o climão estava instalado.

Cafezinho

Dona Zica percebeu a treta em curso e, vendo Klingen contrariado, ofereceu: “vou te servir um cafezinho”. A magia começava a acontecer.

Zica então apareceu com a singela xícara verde de alça branca, prestes a deixar o anonimato da louça do casal para entrar para a história da música, repousada sobre um pires branco. Foi quando a ideia baixou em Klingen.

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Cartola e Zica, em foto do segundo disco de Cartola

“Eu pensei na hora em usar as cores da Mangueira, e perguntei se ela tinha um pires cor de rosa”, relembra Klingen.

Já na função de produtora informal, a mangueirense pescou a intenção do fotógrafo de usar as cores da escola e apareceu com o pires imortalizado na foto.

Enquanto isso, Cartola só queria que a sessão surpresa acabasse o mais rápido possível, e que aparecesse logo o o tal parente, a quem a MPB também deve, por causa do atraso, uma das mais famosas capas de disco do país.

Klingen passou pires e xícara, com o café ainda, para Cartola, e saiu andando pela casa, após permissão da dona, à procura o cenário ideal. Achou uma parede em tons amarelados (que na foto saiu acobreada) e uma cadeira de madeira – tinha que ser de madeira. Para completar, uma claraboia garantia a iluminação. Enfim, vai acontecer. Ou quase.

O fotógrafo ainda pensou em compor a foto com um elemento azul e, assim, ter as cores da bandeira do Brasil. Avistou uma camisa de cor azul clara no varal, ainda úmida e amarrotada. Mas como fazer o cada vez mais inquieto Cartola trocar de blusa? Só Dona Zica.

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A baluarte mangueirense passou o ferro na camisa e, o mais difícil, convenceu o marido a usá-la só para a foto.

No momento em que Klingen olhou pelo visor da câmera, reparou que as unhas de Cartola estavam grandes. Como resolver? De novo, Dona Zica.

“Ela fez um trabalho de manicure no Cartola: cortou e lixou as unhas dele!”, conta Klingen, lembrando da cândida cena. Ele fez um último pedido ao modelo: não bater as cinzas que se acumulavam na ponta do cigarro.

Diante do pedido inusitado, lembra o fotógrafo, o sambista começou a ver graça na situação. “A coisa estava ficando tão maluca que ele topou”, diz. O branco do cigarro ainda completava a menção à bandeira brasileira, remetendo à faixa branca.

Parecia tudo pronto, mas faltava “combinar” com a câmera: naquelas condições, conseguir foco da unha às orelhas do sambista era um desafio, e isso com pouco tempo.

“Para ter profundida de campo, tem que fechar o diafragma [da câmera] todo, e quando se faz isso, a imagem fica escura e não se vê nada. E tem a acomodação do olho. Quando se olha aquela imagem pela câmera, leva uns dois minutos para a vista se acostumar”, explica Klingen. Fora o tranco das antigas câmeras reflex. A chance das fotos saírem tremidas era real.

Cinzas

Enquanto isso, Cartola, já resignado e comprometido, permanecia parado como uma estátua, com a xícara encostada nos lábios, o cigarro queimando e o café, fazendo mera figuração, esfriando – o sambista só fingiu que estava bebendo.

“Pedi para ele aguentar firme”, recorda. “Quando vi que estava dando foco, bati várias fotos da mesma pose. Ainda assim estava pessimista. Não botei fé que conseguiria”, completa.

Feita a capa, sobrou tempo para fotos em preto e branco de Cartola sozinho e dele com Dona Zica em momentos informais, para divulgação na imprensa. A missão estava cumprida, faltava saber se pelo menos uma foto salvaria o trabalho. E o motorista não apareceu.

Carro sobre o Zicartola, com esculturas de Cartola e Dona Zica, no desfile da Mangueira de 2011 – Foto: Nelson Perez/Riotur

Klingen correu para um dos poucos laboratórios que revelava colorido na época e entregou o filme a tempo. Ao buscar as ampliações, levou um choque.

“Fiquei hipnotizado”, recorda Klingen, então certo de que tinha, enfim, a capa de “Verde Que Te Quero Rosa”. O título era, inclusive, única informação que recebeu sobre o álbum antes da caótica sessão na Mangueira.

Briga na RCA

Na gravadora, porém, a foto não agradou a todos. Os funcionários do departamento de vendas queriam outra imagem, alegando que não era certo cobrir o rosto do artista – no caso, com a xícara mais famosa da música brasileira. Em outras palavras, Cartola tomando um cafezinho não venderia disco.

Mas a turma da área artística comprou a briga: primeiro o produtor Rildo Hora, depois o fotógrafo Carlos Filho, o Cafi (1950 – 2019), também autor de várias imagens de capas históricas. Por fim, quem encerrou a discussão e decidiu pela foto da xícara foi o diretor artístico Durval Ferreira (1935 – 2007), que estreava na RCA justamente com o disco de Cartola.

“E não tinha outra foto”, lembra Klingen, absolvido pela história.

Ao diretor de arte Ney Távora, um pedido: “falei para ele ‘sujar’ o menos possível a capa, e botar o título do na contracapa”, narra Klingen.

Assim, Távora se limitou a colocar um singelo “Cartola” no canto inferior direito. Estava pronta uma das mais conhecidas imagens da cultura brasileira, eleita pela revista Bizz a mais bonita do país e terceira do mundo, atrás de “London Calling”, do The Clash, e “The Velvet Underground & Nico”, do Velvet Underground.

“Não é qualquer disquinho que pode se gabar de rebolar na vitrola ou no leitor óptico e sair por aí reproduzindo em forma de som os talentos de Cartola, Nelson Cavaquinho e Radamés Gnatalli. Verde Que Te Quero Rosa reúne esses três gigantes e não precisaria de outras glórias póstumas para ser cantado em verso e prosa”, escreveu o jornalista Pedro Só, em edição de 2005.

Glauber aprovou

O fotógrafo reconhecia a beleza do registro, mas não fazia ideia da importância dela. Começou a descobrir a força daquela capa num encontro com Glauber Rocha em um teatro no Rio de Janeiro.

“Ele disse que tinha ficado apaixonado pela foto”, conta. “Se o Glauber gostou, é porque eu devo ter marcado um ponto”, lembra. Meses depois, recebeu a aprovação do próprio Cartola, parte do enredo da Mangueira no Carnaval de 2021, junto com Jamelão e Mestre Delegado.

Levou tempo, porém, para a capa de “Verde Que Te Quero Rosa” virar um ícone do universo pop. “Eu vi um pessoal na Lapa fazendo umas pinturas. Depois achei ladrilhos. Hoje já tem camisa, caneca…”, enumera. Isso sem falar nas releituras, como a feita pelo rapper Criolo, que trocou o cigarro pelo lápis.

Releitura feita por Criolo

“Foi a foto que mais me marcou”, crava Klingen, autor das fotos de mais de 300 capas, incluindo álbuns de Beth Carvalho, Luiz Gonzaga e outros.

“E quase que ela não sai. Saiu por Deus e pela Zica”, reconhece o fotógrafo, que para homenagear a mangueirense pela ajuda decisiva, fez um pedido a Távora: colocar uma foto de Zica na contracapa do disco.

“Eu tive muita sorte. Se não fosse a Zica, essa capa não saía”, conclui.

Contracapa do disco, com a foto de Zica

Romulo Tesi

Romulo Tesi Jornalista carioca, criado na Penha, residente em São Paulo desde 2009 e pai da Malu. Nasci meses antes do Bumbum Paticumbum Prugurundum imperiano de Aluisio Machado, Beto Sem Braço e Rosa Magalhães, em um dia de Vasco x Flamengo, num hospital das Cinco Bocas de Olaria, pertinho da Rua Bariri e a uma caminhada do Cacique de Ramos, do outro lado da linha do trem. Por aí virei gente. E aqui é o meu, o nosso espaço para falar de samba e Carnaval.

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