Portela anuncia enredo para 2024 inspirado no livro “Um defeito de cor”

Um defeito de cor, enredo da Portela no Carnaval 2024

A Portela anunciou neste sábado (1) o enredo da escola para o Carnaval 2024: “Um defeito de cor”, inspirado no livro homônimo da escritora Ana Maria Gonçalves. A obra conta a história de uma mãe africana que viaja ao Brasil em busca do filho, de paradeiro incerto.

Veja quando será o Carnaval de 2024

No enredo da Portela, os carnavalescos André Rodrigues e Antônio Gonzaga partem da obra para traçar uma nova perspectiva, “refazendo os caminhos imaginados da história da mãe preta, Luiza Mahim. Essa poderia ser a história da mãe de qualquer um de nós, ou melhor dizendo, é a história das negras mães de todos nós”, divulgou a escola.

Um defeito de cor, de Ana Maria Magalhães

“Através de seu filho [de Luiza Mahim], Luiz Gama, sonhamos com uma carta onde o importante abolicionista responde a sua mãe sobre o legado da memória que ela deixou: o livro. Afastados enquanto ele ainda era menino, o desenvolvimento demonstra o tamanho do orgulho que o mesmo sente das façanhas de sua heroína. Narrar essa história é como narrar a busca pelo sentido da nossa existência enquanto sujeitos negros ativos neste Brasil. Por que somos? Por que assim fazemos? Por quem lutamos? Em memória do que?”, continua.

“A saga de uma mulher que se incorpora a tantas outras que lhe atravessam, ensinam e revigoram, em um legado de persistência na insistência de sobreviver. Inúmeras trajetórias diferentes, vivenciadas por gerações e gerações de escravizados ao longo dos anos, e sabemos, até hoje por todas as mulheres que nasceram com este defeito de cor”, conclui o texto divulgado pela Portela.

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O desfile marca a estreia da dupla de carnavalescos na escola, que apresentou em feijoada em sua quadra o restante das novidades da equipe para o Carnaval de 2024: a porta-bandeira, Squel Jorgea, ex-Mangueira, o diretor de carnaval, Junior Schall, e o diretor de harmonia, Julinho Fonseca.

O Carnaval de 2024 marca a tentativa da Portela reagir após o acidentado desfile de 2023, cujo enredo foram os 100 anos da escola. A Água terminou em 10º lugar, bem abaixo da expectativa criada.

Confira a sinopse da Portela para o Carnaval 2024

Um Defeito de Cor

Argumento

Para o carnaval de 2024, o sonho da GRES Portela está baseado no principal fator simbólico que dá consistência para ela ser o que é e chegar onde chegou: O Afeto.

Ancestralidade cultuada no sagrado feminino, no terreiro da mãe de todas as outras que vieram depois, a Iyá centenária.

Baseado no romance “Um Defeito de Cor”, da escritora Ana Maria Gonçalves, o enredo traz uma outra perspectiva, refazendo os caminhos imaginados da história da mãe preta, Luiza Mahim. Essa poderia ser a história da mãe de qualquer um de nós, ou melhor dizendo, é a história das negras mães de todos nós.

Escolhemos este tema, que será contado através deste enredo, por entender a importância e a necessidade de celebrar e cultuar na arte, na cultura, junto do maior mecanismo de comunicação deste país (os desfiles das escolas de samba), a trajetória de uma negra matriarca que se confunde a tantas outras até os dias de hoje. Precisamos não apenas nos espelhar na história, mas principalmente valorizar as descendentes desses movimentos de coragem por amor à continuidade.

Através de seu filho, Luiz Gama, sonhamos com uma carta onde o importante abolicionista responde a sua mãe sobre o legado da memória que ela deixou: o livro.

Afastados enquanto ele ainda era menino, o desenvolvimento demonstra o tamanho do orgulho que o mesmo sente das façanhas de sua heroína.

Narrar essa história é como narrar a busca pelo sentido da nossa existência enquanto sujeitos negros ativos neste Brasil. Por que somos? Por que assim fazemos? Por quem lutamos? Em memória do que?

Nossos passos vêm de longe e necessitamos honrar cada pegada trilhada na dor que é ser uma negra na história afro-brasileira. Identidades plurais que são moldadas a todo tempo.

A saga de uma mulher que se incorpora a tantas outras que lhe atravessam, ensinam e revigoram, em um legado de persistência na insistência de sobreviver. Inúmeras trajetórias diferentes, vivenciadas por gerações e gerações de escravizados ao longo dos anos, e sabemos, até hoje por todas as mulheres que nasceram com este defeito de cor.

Uma mulher negra pode ser feita de muitas outras, mas não pode ser confundida, pois cada uma carrega sua própria história e devem ter o direito de contá-las. Tanto não são iguais que, aposto, minha mãe, que muitas fizeram o mesmo ao chegar nos portos desta terra: jogaram-se ao mar. Muitas se jogaram para fugir, mas eu me vejo quando tu relata que pulaste nas águas não apenas em busca da liberdade, mas principalmente para guardar tua memória, fugindo do batismo, procurando preservar o mais precioso bem que te restava: a tua identidade.

Luiza do Mahin, quando chegaste a Salvador, ela não salvava ninguém: corrompia corpos, cortava laços, rompia almas. Era muito pagã para a tua santidade de menina Jeje. Não há santos em Daomé que nomeiam meninas. Não nasceram divindades em Savalu. Ali surgiram forças, reis e rainhas que foi o que te ensinaram a cultuar e dos quais eu sou herdeiro.

Honrar quem veio antes é o que faço. Eu sou porque tu fostes, minha mãe.

Tu nunca estiveste só. O espírito da águia te levava às pessoas certas, às mulheres certas. Teu destino te levou ao encontro das tuas origens. Foste à Nega Florinda, sacerdotisa Vodunsí, que te acolheu e te protegeu com o amuleto que uniu tua alma à de tua irmã. Encontrou a Noche Nae, a rainha Agotimé, que te guiou até as Minas, no Maranhão, para conhecer e encontrar o teu próprio Vondun.

O destino te levou à Mãe Rosa, da irmandade negra no recôncavo de Todos os Santos, que foi quem te iniciou no caminho de volta para me encontrar. Todas essas mulheres fizeram um pouco de ti e um pouco de mim. Foram elas que te deram a liberdade através do ouro de Oxum, ouro que comprou a tua alforria e fez de mim um negro livre. Sou filho dos muitos colos negros que te acolheram na vida.

“Em nós, até a cor é um defeito. Um imperdoável mal de nascença, o estigma de um crime. Mas nossos críticos se esquecem que essa cor é a origem da riqueza de milhares de ladrões que nos insultam; que essa cor convencional da escravidão, tão semelhante à da terra, abriga, sob sua superfície escura, vulcões, onde arde o fogo sagrado da liberdade.”

Luiz Gama

A Carta

Minha mãe, aqui quem te escreve é Omodunte. Recebi a carta que me deixaste. Sim, estou de volta. Vim com o vento, tal qual um Abikú Fefee, inesperadamente.

Lembrando das histórias que me contava, estou tal qual um pássaro, como se voasse, buscando em minha cabeça cada lugar que pisou, capaz de ser você em cada encontro que tivesses nesses longos anos.

Até hoje quando repasso tuas memórias, procuro ter olhos de Daomé, olhos de jeje, olhos de águia (que era o espírito preferido da mãe de vossa mãe). Agarro-me ao poder de sentir o cheiro, de ouvir o som, de sentir a terra sob meus pés, de ver as famílias no mercado, os bichos que correm, o barulho das crianças e a calmaria no fim da tarde – mas nunca serei capaz de imaginar tudo o que sentiste na pele.

Sou capaz, minha mãe, de sentar à sombra de uma árvore qualquer e pensar ser uma gameleira, um Iroko, e dali mesmo ver a ti, sorrindo e brincando, com tua irmã Taiwo, como todo Ibeji deve ser. Ibejis, como bem me ensinou, trazem boa sorte e riqueza para a família em que nascem. E que sorte a tua ainda ter vivido e aprendido com as tuas mais velhas.

Luiza, minha mãe, todas as vezes que fui ao mar eu vislumbrava o manto de Iemanjá, enxergava as ondas tecer o pano que usava Durójaiyé, minha ancestral, raiz da nossa árvore. Todas as vezes que eu fui ao mar, imaginei a dor que passou. O mar deveria ser negro, se não pela quantidade dos nossos que a ele foram jogados, talvez pela solidão que ele causa em seu infinito incerto. A solidão, minha mãe, é negra feita a noite, mas a noite é uma mulher preta – e quem está com ela nunca está só.

Nesta carta eu te chamo pelo nome, Kheinde, teu verdadeiro nome, pois sei que muitos ainda vão lê-la e espero que não te confundam.

Romulo Tesi

Romulo Tesi Jornalista carioca, criado na Penha, residente em São Paulo desde 2009 e pai da Malu. Nasci meses antes do Bumbum Paticumbum Prugurundum imperiano de Aluisio Machado, Beto Sem Braço e Rosa Magalhães, em um dia de Vasco x Flamengo, num hospital das Cinco Bocas de Olaria, pertinho da Rua Bariri e a uma caminhada do Cacique de Ramos, do outro lado da linha do trem. Por aí virei gente. E aqui é o meu, o nosso espaço para falar de samba e Carnaval.

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