Por Romulo Tesi
No auge da disputa entre os estados pelos royalties de petróleo, a Grande Rio desfilou com o enredo “Amo o Rio e vou à luta: ouro negro sem disputa… Contra a injustiça em defesa do Rio”, erguendo a bandeira dos interesses fluminenses sobre a partilha do dinheiro da exploração do pré-sal. Sim, a mesma escola que levou Exu para a Marquês de Sapucaí no ano passado já encampou uma campanha estatal e traduziu em fantasias e alegorias a importância do petróleo, por exemplo, para a melhoria da saúde pública.
Isso foi em 2013, e nenhuma outra escola resume melhor as transformações que o Carnaval passou desde então. Mas todas, sem exceção, mudaram consideravelmente de acordo com os ventos políticos e econômicos que o Brasil viveu. Em suma, no desafio dos 10 anos, as escolas do Rio de Janeiro ficaram mais pobres e menores, mas saem melhor na foto. E ainda ficaram mais jovens e até soam melhor. O que se viu em 2022 e o que será visto este ano comprovam.
Com o perdão do clichê, os tempos são outros: 2013 começou como um ano trivial, até o anúncio do aumento da tarifa de ônibus em São Paulo em 20 centavos. Os protestos começaram com o Movimento Passe Livre e foram, aos poucos, superando primeiro a avenida Paulista, para depois vencer as divisas e ganhar o Brasil – incluindo o Rio de Janeiro. Até as jornadas de junho. O resto é história.
“Nesses 10 anos, a gente assistiu a uma ampliação de forma geral do debate político na sociedade brasileira”, explica o sociólogo Mauro Cordeiro, pesquisador da Beija-Flor, ao Setor 1.
“A gente tem as jornadas de junho de 2013, depois uma eleição muito acirrada em 2014, seguida por forte manifestações populares. Em 2016 há o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, absolutamente complicado, que muita gente considera um golpe de estado, mas que teve apoio de boa parte da sociedade. Temos em 2018 uma eleição presidencial, com tudo que envolveu [prisão de Lula e vitória de Jair Bolsonaro], e a própria eleição de 2022 [com a vitória de Lula sobre Bolsonaro]”, completa Cordeiro.
Numa época em que se posicionar era quase um dever, as escolas de samba passaram, então, a serem cobradas. Não dava mais para pisar na avenida – no caso, a Sapucaí – para falar de uma cidade distante do Rio de Janeiro enquanto outras avenidas – a vizinha Presidente Vargas e a Paulista pulsavam com reivindicações por saúde, educação e até transporte público de qualidade.
Isso em período de Copas – primeiro das Confederações; depois, a do Mundo. Futebol que nada. Em 2013, o Brasil foi o país da política. Antes, porém, o Carnaval vivia outra fase.
Ainda eram tempos de enredos patrocinados. A própria campeã Vila Isabel abrigava uma incontornável contradição, daquelas que só o Carnaval comporta, de falar com romantismo da vida do homem do campo enquanto era patrocinada pela fabricante de defensores agrícolas Basf.
Já o Salgueiro recebeu dinheiro da revista Caras para falar dos famosos, em um desfile bem-humorado, mas de relevância cultural pra lá de discutível.
Na mesma região da cidade, a Mangueira se meteu numa polêmica envolvendo seus grandes nomes. No ano do centenário de Jamelão, a Verde e Rosa vendeu o enredo para Cuiabá. O dinheiro, defende o então presidente da escola, Ivo Meireles, era mais que necessário, após uma sequência de desfiles de temática cultural. Apenas em 2022 a Manga falaria do maior cantor do Carnaval, e junto de Cartola e Delegado.
Entre os “enredos CEP”, como a turma do Carnaval chama os desfiles sobre locais, teve a Unidos da Tijuca falando da Alemanha e a Inocentes de Belford Roxo indo à longínqua Coreia do Sul.
Mas nem tudo foi tão distante. Imperatriz levou o Pará – com Fafá de Belém, Gaby Amarantos e Pinduca, o Rei do Carimbó – para o Rio de Janeiro, em bela apresentação que serviu para reanimar.
E a Portela, em grave crise política e sem dinheiro, falou de Madureira, proporcionando um raro espetáculo cultural-religioso no esquenta, com bateria e rainha encarnados do povo de rua cantando para Zé Pelintra. Ainda que o que veio depois seja plasticamente pobre, fruto da falta de recursos, era a Portela falando de Madureira.
Em mais um exemplo de enredo impensável nos dias de hoje, a Beija-Flor fez um desfile opulento sobre a raça de cavalos manga-larga marchador. Deu samba, diga-se, ainda que a escola tenha feito seus componentes cantarem que são cavalos. Na época foi uma febre – e a obra tem um refrão irresistível.
O caso da Mocidade é emblemático. Mesmo sem a garantia de um centavo de patrocínio, a escola anunciou, com mais de uma no de antecedência, o enredo sobre o Rock in Rio. Numa época em que as comparações entre o Carnaval e o evento eram raras, a escola falou de rock and roll e botou Serguei na comissão de frente. Teve desfile, mas o dinheiro praticamente não chegou.
Se a política, por um lado, começou a pedir passagem na Passarela do Samba, a falta de dinheiro acabou jogando as escolas de samba na necessidade de pensarem em saídas narrativas para conquistar público e jurados.
“A crise econômica [nos últimos 10 anos] afastou os investidores que patrocinavam o Carnaval, e com isso os enredos patrocinados foram minguando”, lembra Cordeiro.
“Quando a grana sai, você tem uma valorização cada vez maior da narrativa. As escolas vão buscar enredos com os quais elas se identificam não apenas para conseguir boas notas e contar boas histórias, mas para mobilizar os seus componentes. E aí os enredos ganham protagonismo”, completa o sociólogo, que pesquisa as relações das escolas com o poder público.
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No caso do Rio, até a grana certa da subvenção municipal sumiu. Eleito em 2016, inclusive com o apoio de parte substancial das diretorias das escolas, Marcelo Crivella, um pastor licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus sem aderência alguma ao universo do Carnaval, realizou cortes de verba em sequência na subvenção, uma tradição tão antiga quanto os concursos das escolas de samba. Até zerar os repasses em 2020. (A subvenção só voltou com a eleição de Eduardo Paes para a prefeitura)
“Com isso, as escolas também diminuíram de tamanho, com menos alegorias e componentes, além da redução no tempo de desfile”, diz Cordeiro.
Para se ter uma ideia, em 2013, o limite de alegorias era de oito por escola; em 2022, cai para seis. Sobre o número de componentes, o regulamento de 2013 previa o limite máximo de 4 mil; em 2022, esse número foi reduzido para 3.200 – mas, no “olhômetro”, há quem garanta que passem escolas com bem menos que isso nos 70 minutos máximos de apresentação, tempo também inferior aos 82 minutos de 2013.
“É uma crise de diminuição”, diz Cordeiro.
Ainda no quesito “dinheiro”, a diminuição das verbas estatais e privadas também teve impacto sonoro nos desfiles, numa conta que pode resumir o babado: enredo bom aumenta as chances de dar em samba bom.
“Sem dúvida a crise econômica fez os patrocínios sumirem. Sem eles, os enredos voltaram a ser inspirados, isso conta, sim, para músicas melhores”, atesta o compositor multicampeão André Diniz, autor do samba da Vila Isabel de 2013, ao Setor 1.
“Junto a isso, o fato de, enfim, termos uma leva de bons e jovens poetas ajuda. Assim como a chegada de sambistas de ‘meio de ano’ também trouxe novidades melódicas. Outra coisa é que tem gente vivendo exclusivamente de samba-enredo. Ou seja, gente que estuda e se dedica a só isso 365 dias por ano. Cria naturalmente especialização”, completa o sambista.
Tendo o que falar, as escolas passaram, portanto, a ter mais o que cantar.
Safras como a de 2022, por exemplo, foram abundantes em grandes obras, de riqueza melódica e poética que há algum tempo não se ouvia, pelo menos em um mesmo ano. Como se diz no meio, praticamente não tinha um “pula faixa”.
Em 2023, as escolas entrarão na Sapucaí tendo o que falar. A campeã Grande Rio defenderá o título com um recorte original, geográfico, sobre Zeca Pagodinho, em desfile assinado pela dupla de carnavalescos revelação Gabriel Haddad e Leonardo Bora, os mesmos autores do Exu de 2022. O mesmo acontece com o Arlindo Cruz no Império Serrano, campeão do acesso e de volta ao Especial com os “Lugares de Arlindo”. Coincidentemente, as duas desfilam em sequência no domingo de Carnaval: primeiro a escola da Serrinha, depois a de Caxias.
A Mangueira foi de Cuiabá em 2013 para a Bahia, um clichê irresistível e mais pertinente ao Carnaval, mesmo rumo da Unidos da Tijuca. A Portela falará de si e de deus baluartes no ano do centenário. Mocidade e Imperatriz se voltam para o Nordeste, enquanto a Viradouro aposta num denso enredo sobre a misteriosa e pouco conhecida Rosa Maria Egipcíaca.
A Beija-Flor desce do cavalo para convocar uma mudança de rota na história brasileira, reivindicando a comemoração do 2 de julho no lugar do 7 de setembro como data da independência do Brasil de Portugal. Isso para ficar em alguns exemplos. O Carnaval de 2012 não será igual aquele que passou em 2013. E isso muito por causa de quem ajuda a criar o espetáculo.
Nos últimos 10 anos, as escolas foram arejadas com sangue novo. Gente jovem, com a cabeça antenada na vanguarda da cultura, mas que respeita e valoriza o tradicional. Enfim, uma turma que sabe o que está falando.
Para ficar em um exemplo, o carnavalesco Leandro Vieira era um ilustre desconhecido do grande público quando a Mangueira o contratou para o Carnaval de 2016. Vieira estreou com o desfile campeão sobre Maria Bethânia, e se firmou instantaneamente como uma referência da nova geração que chegava ao topo da hierarquia artística dos barracões.
Em 2018, o carnavalesco transformou o corte de verba de Crivella e a falta de dinheiro em enredo, mas foi em 2019 que o artista botou na rua o que é considerada por boa parte da crítica especializada sua maior obra: “História para ninar gente grande”. O título veio, e de quebra a Manga produziu um sucesso musical que furou a bolha do Carnaval com o chamado “samba da Marielle (Franco, citada na letra e no desfile). Enfim, o maior clássico desse período de 10 anos.
Vieira é somente um de tantos novos nomes que estão ajudando a mudar a cara das escolas, entre carnavalescos, pesquisadores, enredistas, compositores, mestres de bateria e muitos outros. Há cabeças novas em quase todos os departamentos das escolas, pelo menos nos setores de criação artística.
“A crise econômica também ajudou a promover apostas das escolas em novos artistas”, conclui Cordeiro, ele próprio um dos expoentes dessa nova turma.
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