Eu conheci minha tataravó. Ela se chamava Amélia, era filha de escravizados e faleceu com 104 anos. Praticamente nasceu escravizada, porque, por mais que fosse nascida fora da escravidão, ela tinha vindo da barriga de uma escravizada.
Minha tataravó era mãe pequena num centro na Penha. Ela tinha guardado objetos da mãe e da avó dela, pessoas nascida em África, e contava muitas histórias sobre essa época. São histórias sobre açoite, de não conseguir trabalho, sobre todo o sofrimento que elas passaram. A liberdade já era muita coisa para ela. É algo que hoje nós não temos noção.
Um dos meus bisavôs por parte de pai eram francês. Ele teve um relacionamento com minha bisavó, uma negra, e teve meu avô Laerte.
Essa é a raiz da família: tem um pouco de Pernambuco, de Bahia, África, França… Eu sou fruto dessa miscelânea.
Nunca fui muito de festa. A última que tive quando criança foi aos seis anos. Depois disso não quis mais. Eu já estava ficando um pouco revoltado.
Minha consciência negra vem desde sempre. Na minha casa, os debates sempre foram muito fortes. Minha tia sempre que saía para comprar alguma coisa, ia numa barraqueira negra. Isso era uma autoafirmação, era ideia de ajudar os nossos.
Tenho cabelo black power desde os 16 anos. Na minha área toda – Rocha Miranda, Honório Gurgel…–, só eu e mais um amigo tínhamos black.
Meu cabelo era daquele jeito por causa do meu pai, que nos anos 70 tinha black. Eu via fotos dele e pensava: “por que eu não posso deixar meu cabelo black também?” Isso meio que na revolta, para ficar diferente de todo mundo. Não queria ser igual.
Depois de muitos anos arrumei trabalho como modelo por causa do meu black power: eu era diferente de todo mundo.
Eu trabalhava com meu tio, e perto tinha um salão que procurava modelos para uma agência chamada Pérola Negra. Sempre me chamavam, mas a minha era futebol – eu era goleiro. Até que um dia aceitei o convite.
Um dia eu experimentei: fui e voltei na passarela: 80 reais. Na outra vez, fui e voltei: mais 80 reais. Comecei a pensar que eu estava no lugar errado. O dinheiro estava aí, não no futebol.
Eu larguei a bola no meu primeiro ano de profissional, quando veio a oportunidade na moda. Tinha 21 anos e recebia só ajuda de custo para jogar futebol em um clube da segunda divisão do Carioca. Meu último clube foi o Artsul.
Com três ou quatro passarelas eu já cobria o que ganhava no futebol. Isso no profissional. Eu ganhava mais jogando pelada do que em clube, cobrando 50 reais por jogo.
Aliás, jogo pelada “profissionalmente” até hoje, mas cobro mais: no mínimo 70 reais por partida.
A carreira de modelo e ator é muito instável, então seguia jogando as peladas: na Barra da Tijuca, no Recreio, todo mundo me conhece com cortez. Sempre que tem pelada para jogar, me chamam. Tenho uma certa rotina de jogador.
Às segundas eu jogava sempre no Flamengo, na Gávea. Às terças e quartas sempre tinha outro lugar. Na quinta, também. Jogava sempre sexta, sábado e, aos domingos, duas vezes. Digo jogava porque desde o fim de 2021 passei a me dedicar mais aos ensaios para a comissão de frente da Grande Rio. Mas antes preciso explicar como acabei nas escolas de samba.
Na verdade, eu praticamente nasci em escola de samba.
Meu avô, Carlinhos Devagar, que antes de falecer fora “Avô do Samba” do Rio de Janeiro, era nascido em Pernambuco. Ele foi presidente de mais de uma escola – entre elas a Zumbi, que já enrolou bandeira, ou, para os não iniciados, fechou. Ele também foi presidente do sindicato dos alfaiates, e fazia muita fantasia para os sambistas.
Meu pai também vivia em escola de samba, meu tio foi até passista…
Na minha casa isso era muito presente, mas que não desfilava. Minha mãe, que já participou até de comissão de frente, não deixava.
Ela era muito preocupada, me segurava muito. Eu vivia o pré-Carnaval com meu pai: ia nos cortes de samba, nos ensaios, em tudo. Mas quando chegava o Carnaval, minha mãe me levava com ela para a Região dos Lagos. Enquanto isso, meu pai estava nas escolas de samba.
Só comecei a desfilar com 20 anos, quando ela me soltou um pouquinho. E foi no Salgueiro, em 2007.
Entrei primeiro na Ala dos Negões. Em 2009, pela primeira vez desfilei em alegoria, depois de ser selecionado num grupo de negros altos. Fomos campeões e ainda ganhei um prêmio de melhor componente de carro. Foi quando o Carlinhos do Salgueiro me chamou para a ala de passo marcado, em 2010.
Em 2011 é quando meu caminho até o Exu da Grande Rio começa a se abrir. Ainda no Salgueiro, conheci o coreógrafo Helio Bejani, que precisava de gente para a comissão de frente. Fui aprovado e entrei para o time dele.
Comecei a ganhar destaque na escola em 2014, quando vim de Osain. Em 2016, o primeiro contato com Exu, quando desfilei de Tranca Rua. Ali foi um divisor de águas na minha carreira, o que abriu novos caminhos para mim nas escolas de samba.
Em 2019, o Helio Bejani foi para a Grande Rio, onde estava o Renato Lage, que eu já conhecia dos tempos do Salgueiro. Naquele ano, quebramos um estereótipo, quando vim de Moisés – um Moisés negro.
No ano seguinte, chegam os carnavalescos Leonardo Bora e Gabriel Haddad, e fazem o desfile sobre Joãozinho da Gomeia. Fui o Caboclo Pedra Preta, quando nem imaginava que só voltaria a desfilar mais de dois anos depois. E imaginava menos ainda o que estava guardado para mim.
Eu sou mais um ator que sabe dançar, não sou um bailarino. E quando procuravam um ator para viver Exu na comissão de frente, eu naturalmente fui o escolhido: era o mais alto e tinha um rosto mais parecido com o do personagem. E o casal Helio e Beth Bejani já conhecia meu trabalho. Era a hora de se preparar.
Fiquei sabendo do enredo no dia 13 de junho de 2020. Conversando com a Beth, eu sabia que tinha que estudar Exu: é o primeiro que come, o primeiro que chega… Eu sabia que poderia fazer esse papel.
Comecei a estudar o personagem imediatamente, pesquisando, lendo livros e até escrevendo sobre o assunto. Mas, por causa da pandemia, os ensaios só começaram no fim de 2021. A cabeça estava pronta, mas ainda tinham seis meses de preparação pela frente, até chegar o desfile.
Ensaiei muito em casa, vi vídeos… Mas, no carro, a 10 metros de altura, deu trabalho.
Meu maior receio não era a altura em si, mas minha interpretação lá em cima. Entendi que uma das chaves para a escola ganhar a nota 10 era minha interpretação. Não adiantaria estar a 10 metros de altura sem estar seguro do que estava fazendo. Isso foi a maior dificuldade. Tive um pouco de receio no início, mas cheguei àquilo que foi apresentado na avenida. Acho que deu certo, não?
Sinal de que o personagem estava bem interpretado. Mas quem sabe o que é Candomblé, sabe que eu não estava incorporado – nem poderia. E o público de fora da religião pôde imaginar como seria.
A repercussão foi maior do que eu imaginava. A primeira missão era ganhar o 10 – e nós conseguimos cinco. Mas a mensagem do desfile era muito maior que qualquer julgamento.
Minha avó é umbandista e bota o cafezinho para o preto velho até hoje. Meu avô recebia um malandro. Minha mãe é evangélica e sempre ora por mim. Minha esposa, Isadora, é do Candomblé. Minha família tem testemunha de Jeová, budista, kardecista – e sempre convivi com eles em harmonia.
Quando eu era pequeno, ia na igreja católica, assistia à missa e jogava bola. Depois visitava minha prima, que hoje é mãe de santo e estava sempre no axé. Também tenho prima budista. Meu afilhado e o pai, testemunhas de Jeová, estavam sempre batendo na porta da minha casa para conversar.
Aprendi na prática, desde criança, de forma natural, que não deve existir intolerância religiosa. Na minha cabeça essas relações sempre foram comuns. Isso sempre foi normal na minha família. Isso é o Rio de Janeiro. Isso é o Brasil.
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Bela história de vida e bela matéria.