Gabriel David fala de projetos para Liesa e diz: ‘Se o Carnaval não fosse um produto tão bom, já teria acabado há muito tempo’

Gabriel David, da Beija-Flor
Gabriel David – Reprodução/Instragram

Na busca por uma saída para a permanente crise financeira das escolas de samba, uma baliza muito utilizada como exemplo é o Rock in Rio. “Fui eu que criou essa comparação, né?”, diverte-se Gabriel David, conselheiro da Beija-Flor e filho do presidente de honra da agremiação, Anísio Abraão David. Em entrevista ao Setor 1, o jovem explicou como a experiência do festival pode ajudar a organização do Carnaval, deixando as agremiações menos dependentes do poder público, sem mexer no principal, os desfiles, um “produto único” e bem diferente do Rock in Rio, segundo ele.

“Se o Carnaval não fosse um produto tão bom, já teria acabado há muito tempo”, afirma Gabriel, que em seu trabalho de conclusão de curso na universidade usou a experiência do festival para levantar ideias de uma reestruturação da Liesa.

Na entrevista, Gabriel, 23 anos, falou da sua relação – às vezes turbulenta – com a velha guarda dos dirigentes do samba – “praticamente todo mundo me viu nascer” -, com o atual presidente da Liesa, Jorge Castanheira, e de projetos que podem injetar dinheiro nas combalidas contas das escolas, em situação dramática por causa da pandemia de coronavírus.

O conselheiro da Beija-Flor comentou ainda como tem sido o contato com o prefeito Eduardo Paes, que prometeu a volta da subvenção, e o plano para retomar o trabalho para reaquecer a economia da folia, paralisada pela pandemia do Covid-19. “As escolas estão sem dinheiro para pagar seus funcionários”, alerta.

Rock in Rio
Experiência do Rock in Rio pode ajudar a Liesa, diz Gabriel – Alexandre Macieira/Riotur

Confira a entrevista:

Na semana passada os líderes das escolas tiveram um encontro com o prefeito Eduardo Paes. Qual impressão você ficou?
É nítida a vontade do Eduardo de ajudar, de estar próximo. Ele tem o entendimento da importância do Carnaval para a cidade, não só de fomentar a cultura, mas de uma imagem positiva do Carnaval do Rio para o mundo. A relação com o Eduardo já era muito boa na antiga gestão e tende a ser ainda melhor agora. Vejo que há uma preocupação muito grande de deixar um legado que seja maior do que grandes desfiles. Um futuro mais estruturado para o Carnaval, que vai de encontro com tudo aquilo que venho lutando nos últimos anos.

Vocês falaram sobre subvenção, valores, prazos para começar a preparação do Carnaval de 2022?
Eu expliquei a ele a importância de ter um tempo, de receber o dinheiro da prefeitura com mais antecedência. Assim a gente consegue chegar no mesmo resultado final gastando menos do que quando se recebe muito dinheiro muito próximo do espetáculo. Ele entendeu isso, e a prefeitura já está se preparando para conseguir fazer o repasse da subvenção para o Carnaval 2022 o quanto antes. Não falamos em valores, mas ele garantiu que vai ter [subvenção].

Eduardo Paes, prefeito do Rio de Janeiro
O portelense Eduardo Paes na Sapucaí em 2012 – Nelson Perez/Riotur

Quando você acha que seria ideal começar os preparativos do Carnaval 2022?
Daria para começar amanhã. Tem muita coisa que dá para fazer para reativar a economia do Carnaval. A verdade é que as escolas sempre receberam o dinheiro muito próximo do dos desfiles. Os principais patrocinadores também pagam perto do Carnaval, o dinheiro de vendas que vem da liga também entra mais perto. A liga não abria com tanta antecedência para venda de ingressos por causa do contrato com prefeitura. Isso não necessariamente era um erro da liga, mas é algo que estamos tentando melhorar, que é ter um pouco mais de certeza sobre a utilização de um equipamento público, que é o Sambódromo. Isso permite uma série de coisas que antecipariam a entrada de dinheiro para as escolas de samba e seriam fundamentais para fomentar a economia do Carnaval, que precisa ser reaquecida. Não por causa de 2022, que a gente tem tempo de sobra, mas porque os profissionais estão muito tempo sem receber. As escolas estão sem dinheiro para pagar seus funcionários.

Há conversas no sentido de incrementar a economia do Carnaval, de forma que ela se torne mais sustentável?
A ideia é pensar as escolas de samba de forma mais estruturada, que elas dependam mais delas mesmas. Atualmente o Carnaval é altamente dependente do poder público, principalmente da prefeitura, e da TV Globo. São grandes parceiros, sem dúvida, e queremos que continuem sendo, mas o Carnaval não pode depender disso. Ele tem que ter outros horizontes. Se a Globo acabar amanhã, o Carnaval acaba junto? Se entrar um [Marcel] Crivella [ex-prefeito] amanhã de novo na prefeitura, o Carnaval acaba? São esses questionamentos que precisam ser feitos para serem encontradas as soluções. Existem diversas soluções possíveis para que o Carnaval passe a depender mais dele próprio e menos dos outros.

Você costuma apresentar projetos na Liesa…
Há muito anos. Já apresentei alguns, a maioria foram declinados, mas uma hora algum vai emplacar (risos).

No Twitter você costuma comentar como foram os encontros na Liesa, às vezes dizendo que houve alguma dificuldade. Lá você lida com dirigentes com uma diferença de idade grande para você…
Praticamente todo mundo me viu nascer.

E como é essa relação com eles?
É uma relação pessoal muito boa com todo mundo, sem exceção. Sempre me trataram muito bem, sempre tratei todo mundo muito bem na liga. Nunca tive problema pessoal com ninguém. Claro que existem muitas divergências de pensamento, de visões, de atitudes, mas isso faz parte de qualquer organização profissional, é normal, ainda mais quando há essa diferença de idade tão grande como o meu caso, do Luiz [Luizinho Guimarães, da Vila Isabel, filho de Aílton Guimarães Jorge, o Capitão Guimarães], com diretores e fundadores da liga. No início foi um choque muito grande, com as declarações mais fortes que eu dei, as primeiras ideias que foram apresentadas. Parecia que eu estava pintando um bicho de sete cabeças. Mas com o tempo, com a insistência, as coisas foram sendo um pouco mais aceitas. Isso não quer dizer que elas foram feitas, mas fui ganhando espaço para poder falar, com mais credibilidade, convencendo mais pessoas de que o que estava sendo apresentado fazia sentido. Com essa persistência a gente vai chegar num momento de mudança, que é o que realmente precisa ser feito.

Que tipo de mudanças?
Mudanças estruturais, organizacionais, na base. E elas vão acontecer. Poderiam ter acontecido três anos atrás, mas podem acontecer amanhã ou daqui um ano. É um processo que eu venho batalhando por acreditar muito nisso. Eu não me apego a uma ideia. Se uma ideia não foi aprovada não quer dizer que ela está certa ou errada. O Carnaval é tão bom como produto, tão incrível e único, que você tem ‘zilhões’ de ideias e possibilidades de crescimento e de melhoria. Não é a ideia, mas o entendimento do que precisa mudar.

E sua relação com o Jorge Castanheira?
Alguns dizem que tive desavença com o Jorginho. Nunca briguei com ele, muito pelo contrário. A gente se cumprimenta, se trata super bem, eu me preocupo com ele, com a família dele, como ele se preocupa comigo, com a minha família. Nossa relação pessoal sempre foi maravilhosa. Já a minha relação de trabalho, com o presidente da liga, aí sim, tenho diversas diferenças de pensamento e discordo de muitas atitudes. São coisas totalmente diferentes. Nunca teve discussão ou falta de respeito.

Voltando aos projetos, alguns visam justamente levar mais recursos para as escolas…
Sim. Eu levei um projeto para a liga, mas não é meu. Tem muita coisa minha, mas não tenho participação do lado de fora da liga, só dentro. Esse projeto está em trâmite na Liesa e foi inclusive mencionado pelo Eduardo [Paes] na reunião para todos os presidentes das escolas pela primeira vez. Muitos nem sabiam que estava rolando. Ele é confidencial e há pontos que não podemos abrir. Mas não é algo certo ainda. O que há é um acordo para que um grupo possa captar recursos [para as agremiações] para firmar o contrato, e há um prazo para conseguirem fazer isso. É um baita de um projeto. Se for para frente será maravilhoso, mas se não for, várias outras iniciativas que a própria liga pode tomar devem acontecer, e essas melhorias, acredito muito, vão acontecer já para o próximo Carnaval.

Jorge Castanheira e Marcelo Crivella
Castanheira (de óculos) com Crivella na entrega do cheque simbólico da subvenção em 2017, antes de cortar a verba: ideia é que as escolas dependam menos do poder público – Foto: Paulo Araújo e Riotur

Esse projeto poderia reduzir ou encerrar a dependência das escolas em relação ao poder público?
Da dependência, sim. Mas não acho que só com esse projeto o Carnaval vai passar a depender só dele. Tem algumas outras atitudes que a liga precisa tomar.

Há quanto tempo essa proposta está na liga?
Ele tramita na Liesa há pouco mais de um ano.

Mas o projeto não foi apresentado formalmente aos presidentes?
Uma proposta só pode ser apresentada aos presidentes quando ela é concreta. O projeto ficou um ano em construção com a Liesa, e agora entra na fase desse grupo de captar esses recursos para o projeto ser concretizado. Uma vez que eles apresentem isso, coloca-se em plenária para aprovação ou não. É algo que ainda está sendo construído.

Como é o projeto?
É algo complexo, grande. A gente usou o Carnaval de 2020 inteiro para fazer todo o mapeamento de tudo que precisava. Foram 24 horas por dia de mapeamento de nove dias, inclusive em dias que não tinha nada a gente mapeou o que acontecia na Sapucaí, em volta dela, dentro dela, pontuando tudo que tem que ser feito. Teve todo um levantamento, que precisava dessa primeira aproximação com a Liesa, que precisava permitir que esse grupo tivesse espaço e autorização para pegar esses pontos de falha, de melhorias que podem se feitas. Por isso esse tempo todo. Isso nunca teve nenhum custo para a Liesa, só para o grupo. Mas a gente tinha mais de 50 pessoas trabalhando no Carnaval de 2020 para analisar esses fatores.

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Que pontos são analisados nesses estudos?
De tudo: trânsito, entrada e saída de grande público, acomodação, de tudo que engloba o ponto de vista comercial, de comunicação, experiência desse cliente e vendas, está ligado a esse projeto. O objetivo final dele é: como que a gente gera uma experiência perfeita, atual e necessária para todos os tipos de cliente que o Carnaval tem.

Há algum ponto relacionado aos desfiles?
Não tem nada a ver com a parte artística, nenhuma influência em absolutamente nada que tenha a ver com o desfile, com propriedades artísticas. A liga não estaria vendendo o Carnaval. Ela está praticamente recebendo uma consultoria numa área que ela entende que não é a expertise dela. Em termos gerais é área de marketing, que não existe de fato na liga.

O que você considera mais urgente para se mudar na organização do Carnaval?
A liga, em termos gerais é super transparente, séria, mas como é que ela transfere essa responsabilidade para as escolas? Acho que falta ter certos métodos de controle internos dentro da liga para que, num futuro próximo, ela possa negociar certas coisas para as escolas. É muito mais fácil conseguir botar dinheiro de patrocínio em escolas com menos poder de mídia se negociar todas elas juntas, tendo em vista, por exemplo, a negociação da Globo [para venda dos direitos de transmissão], onde todas ganham a mesma coisa. Essa melhoria na organização primeiro tem que partir da liga, para que ela possa impor isso às escolas. Eu já enfrentei alguns empecilhos que eu só poderia corrigir se a liga melhorasse certos aspectos. Por isso que eu migrei para o Carnaval. Meu objetivo inicial era fazer a Beija-Flor ser melhor, e teve muita coisa que eu gostaria de ter melhorado na escola que eu não consegui. Comecei a esbarrar em certos aspectos que eu via que a solução era de fato uma mudança na Liesa.

Beija-Flor 2018
Desfile campeão da Beija-Flor em 2018 – Raphael David/Riotur

A Liesa está prestes a passar por uma mudança na presidência – já se fala inclusive na possibilidade de o Jorge Perlingeiro assumir no lugar do Castanheira. Essa troca no comando pode fazer com que esses projetos deslanchem?
Estou me movimentando o máximo possível. Faço esse movimento há muito tempo nos bastidores e agora com essa possibilidade de mudança eu faço ainda mais. Por isso acredito tanto que essas mudanças vão acontecer. A gente fala muito na luz no fim do túnel para o Carnaval, e eu nunca vi essa luz tão acesa.

O que você acha dessa comparação do Carnaval como evento com o Rock in Rio? O festival pode servir como exemplo para os desfiles?
Fui eu que criou essa comparação, né? (risos) Tanto que usei para defender meu TCC [trabalho de conclusão de curso] na faculdade, que é sobre a restruturação da Liesa. A minha base de tudo que penso vem do meu TCC, onde consegui tangibilizar muitas coisas que eu pensava, investiguei para ter certeza de outras e descobri que algumas coisas que eu acreditava estavam erradas, isso foi bem importante. [Carnaval e Rock in Rio] São produtos completamente diferentes, mas a comparação mostra que algumas coisas de fato estão erradas e precisam de uma mudança. E o Carnaval é mais do que um bom produto, ele é um produto único, e isso é algo raríssimo no mundo. Ele tem dois fatores que o mundo capitalista não consegue comprar. Ele tem história e tem paixão envolvidas, e você não compra história e paixão. Aí leva para a comparação com o festival. Se a gente pegar muito dinheiro hoje a gente constrói outro Rock in Rio em qualquer lugar do mundo. Mas se pegar todo o dinheiro do mundo você não constrói outro Carnaval. Se o Carnaval não fosse um produto tão bom ele já teria acabado há muito tempo.

Romulo Tesi

Romulo Tesi Jornalista carioca, criado na Penha, residente em São Paulo desde 2009 e pai da Malu. Nasci meses antes do Bumbum Paticumbum Prugurundum imperiano de Aluisio Machado, Beto Sem Braço e Rosa Magalhães, em um dia de Vasco x Flamengo, num hospital das Cinco Bocas de Olaria, pertinho da Rua Bariri e a uma caminhada do Cacique de Ramos, do outro lado da linha do trem. Por aí virei gente. E aqui é o meu, o nosso espaço para falar de samba e Carnaval.

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