‘Meninos da Grande Rio’ revelam mistura de referências e dizem: ‘falar de Joãozinho da Goméia é um ato político’

Gabriel Haddad e Leonardo Bora no barracão da Grande Rio – Foto: Mario Grave

No barracão da Grande Rio, Jovelina Pérola Negra dá as mãos para Led Zeppelin, que dialoga com Djanira, que conversa com Ai Weiwei, que fala com Jorge Amado, que por sua vez troca figurinhas com Glauber Rocha e bois de Parintins. Talvez só assim, com esse caldo cultural, é possível dar conta de um personagem do porte de Joãozinho da Goméia, enredo da escola para o Carnaval 2020.

“A gente não exclui nada”, diz o carnavalesco Leonardo Bora, 33 anos, que forma com o parceiro Gabriel Haddad, 31, a dupla criativa responsável por levar a vida complexa do Rei do Candomblé para a Marquês de Sapucaí. E logo na estreia dos dois no Grupo Especial, após elogiados desfiles na Série A com a Cubango.

Veja a ordem dos desfiles

Em conversa com o Setor 1, os artistas – “os meninos” ou simplesmente Boraddad, como são chamados, falaram dos caminhos e desafios no processo de criação de um dos enredos mais comentados do ano, tratado como uma guinada na escola. Tema que rendeu um samba-enredo aclamado por muitos como o melhor da safra, cuja mensagem central é um clamor por tolerância religiosa: “eu respeito o seu amém, você respeita meu axé”.

“Falar de Joãozinho da Goméia nesse momento é um ato político por si só”, diz Bora.”Pode não ser direta, mas a feitura desse enredo já é uma crítica ao retrocesso que a gente tem visto no Brasil”, completa Haddad.

Joãozinho da Gomeia – Reprodução

Veja a entrevista:

Joãozinho da Goméia é um personagem complexo, que talvez rendesse três desfiles diferentes, muito midiático. É possível pensar que, se estivesse vivo, poderia estar na Grande Rio, participando ativamente do Carnaval?
Haddad: Difícil pensar. Provavelmente ele teria uma ligação com a Grande Rio pela questão espacial, pelas cores, as mesmas do Caboclo da Pedra Preta. Ele conhecia a quadra da Cartolinhas de Caxias. Ele era amigo do Abdias do Nascimento, que visitou o São João da Goméia, que era festa gigantesca. Depois ele vai à quadra da Cartolinhas. Isso mostra que ele viveu intensamente a cena cultural da cidade. Provavelmente estaria inserido no Carnaval de Caxias.

Bora: Ele transitou por praticamente todas as formas de arte possíveis: palcos, cinema, gravou disco. Recebia no terreiro desde presidentes da República até populares da região. Seguramente seria um agente cultural em trânsito, como a facilidade de comunicação e tantas mídia de hoje. Seguramente seria ainda mais midiático.

Disco com pontos lançado por Joãozinho da Goméia – Reprodução

O enredo é também engajado. Seria possível fazer esse enredo sem crítica social? Mais: o tempo exige enredos críticos?
Haddad: Isso depende muito. A classe artística do Carnaval é muito variada, cada um com sua particularidade. Eu e Leonardo prezamos muito pela narrativa. Tudo começa pelo desenvolvimento da narrativa, como a gente quer levar aquele enredo pra avenida. O que a gente já tem apresentado diz muito sobre como a gente pensa. Pode não ser direta, mas a feitura desse enredo sobre Joãozinho da Goméia já e uma crítica ao retrocesso que a gente tem visto no Brasil. E as escolas de samba acompanham naturalmente os fatos do mundo. 

Bora: Existe essa dimensão epocal. Nunca me esqueço de uma fala da Rosa Magalhães, em um evento na UERJ, no auge das manifestações de junho e julho de 2013. Questionada se ainda havia espaço para critica social na narrativas das escolas de samba, ela respondeu que não, porque no momento politico que estávamos vivendo, não era bem visto que determinado enredo apresentasse viés critico, ironia, charge, elementos que ela já havia trabalhado na Estácio de Sá nos anos 1980. Seria mal visto pelo público e os jurados. Três anos depois ela estava apresentando um enredo sobre palhaços que terminava com uma grande charge com uma critica política explícita, que se intensifica no ano seguinte com Onisuáquimalipanse. O que mostra que esses movimentos são um rio corrente, que as escolas acompanham, que são caixas de reverberação da vida social. Há quem diga que a Sapucaí é um grande divã. O jornalista Fábio Fabato sempre menciona isso. Não à toa que no contexto da redemocratização em que a nova Constituição de 1988 está saindo do forno, tantas escolas de samba tragam enredos com uma crítica politica explícita como no Carnaval de 1989. Me parece que estamos vivendo um movimento semelhante. São muitos retrocessos: recrudescimento do conservadorismo, pautas que pareciam superadas retornando, notícias cotidianamente que falam de preconceito, de coisas absurdas, como neonazismo… É claro que as escolas de samba, enquanto organizações populares, de matriz afro-brasileira, acompanham esse movimento e naturalmente se posicionam.

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Daí o posicionamento contra a intolerância religiosa…
É fato que falar de Joãozinho da Goméia nesse momento é um ato politico por si só. Mas também é falar de intolerância religiosa. Não tem como descolar uma coisa da outra. Lançar luz sobre esse personagem é uma opção poética e politica. No nosso entendimento, a politica e a poética andam de mãos dadas. Carnaval é politica por natureza, sempre foi. Mesmo o enredo que não se diga politico. Essa fala – “meu enredo não é politico”, é uma opção politica. Não existe neutralidade. Nossa narrativa encampa também a luta pela liberdade, não apenas religiosa, mas num sentido amplo, pela diversidade, contra o racismo religioso, o racismo epistêmico, e isso vai aparecer de maneira poética na avenida, não necessariamente de maneira panfletária. É um Carnaval que tem menos charge e mais metáfora, em dialogo com arte contemporânea, ao mesmo tempo com fazeres artísticos mais tradicionais. Mas pode ser que ano que vem a gente apresente algo totalmente diferente.

Não sabemos que Brasil vamos ter…
Bora: Pois é. Também somos agentes em movimento. Há continuidade, mas há mudanças. É a tradição da ruptura, que é um termo que a gente usa em literatura para pensar os movimentos artísticos que bebem nas fontes anteriores e ao mesmo tempo estão propondo novos rumos.

Desfile da Cubango em 2019 – Raphael David/Riotur

A Mangueira sofreu alguma perseguição de setores mais conservadores por causa do enredo sobre Jesus Cristo. Vocês enfrentaram algum tipo de ataque semelhante?
Haddad: Não diretamente, mas há comentários sobre nosso samba, gente que reclama da quantidade de termos africanos, em iorubá. Na internet, pessoas que comentam Carnaval e se dizem jornalistas comentaram isso.

Bora: A gente percebe esse racismo estrutural, epistêmico e religioso nessas menores falas. A gente já leu: “não gosto desse tipo de enredo porque não tem nada a ver com Carnaval”. Eu penso: tenho que dar para essa pessoa uma coletânea de livros contando a historia do Carnaval e das escolas de samba para entender que escola de samba é isso. Joãozinho da Goméia é o retrato do que é a vivência de uma escola de samba. A vivência social de uma escola de samba é muito parecida com a vivência de um terreiro. O barracão de escola de samba tem muito de um barracão de santo do Candomblé. Não por acaso as palavras são as mesmas. Nessas pequenas falas a gente nota esse racismo, e há alguns autores brilhantes que tratam disso, como Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino, que propõem novas pedagogias para entender as narrativas orais e a importância dessa terminologia estar na sala de aula. Ninguém questiona a terminologia do colonizador, como usar, por exemplo, a palavra “índio”, que reflete o olhar do colonizador. Mas questiona mutalambô, camutuê ou jubiabá.
 
É também um tipo de enredo pouco visto na na história recente da escola.
Bora: Há um estranhamento ao fato de a Grande Rio estar apresentando um enredo de temática afro-ameríndia integral depois de 25 anos. Se por um lado há uma euforia coletiva, há criticas veladas de comentaristas, de formadores de opinião, mas é muito residual. A escola vinha numa linha que era criticada. Ela muda e é criticada também. Temos que peneirar, ver o que está por trás das criticas.

Não houve ataque direcionado, em parte porque Joãozinho da Goméia é de saída um personagem à margem. A Mangueira é questionada se Jesus seria ou não negro, homossexual. Joãozinho da Goméia era [ênfase] negro, homossexual e nordestino. Já trazia todos os estereótipos que ainda vitimizam, que matam. Infelizmente, racismo, homofobia e xenofobia estão no seio da sociedade, crescendo com respaldo de determinados discursos de lideranças políticas. Isso talvez nos blinde um pouco mais. O enredo pede respeito. Se alguém se incomodou com um pedido de respeito é poque não entendeu nada de nenhuma mensagem de nenhuma religião.

Três Orixás, de Djanira Motta e Silva, uma das influências de Bora e Haddad – Reprodução

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Quais são as influências de vocês, dentro e fora do Carnaval?
Haddad: No Carnaval, cresci vendo Rosa Magalhães, Renato Lage, Joãosinho Trinta, Alexandre Louzada, com quem trabalhei durante seis anos. Não quer dizer que eu faço igual, são experiências que vamos adquirindo e entendendo.

Bora: Somos personalidades distintas, com influencias distintas

Haddad: De fora do Carnaval, olho muito para a cultura popular, como [o diretor] Gabriel Vilela. Nos filmes, tenho uma pegada mais retrofuturista, como Star Wars e Blade Runner

Bora: Depende muito do enredo. Ano passado nós tivemos muita influência de Adriana Varejão e Ai Weiwei. Cada narrativa nos leva a um determinado corpo de referências. No Carnaval de 2020 a gente está olhando com mais carinho para determinados artistas que já são do nosso sistema simbólico, como Jorge Amado. Na concepção de alegorias e fantasias, fomos beber na fonte da literatura dele. Também as fotografias de Pierre Verger e a música do Dorival Caymmi. Também é muito presente a influência de alguns artistas plásticos, como Sônia Gomes, artista contemporânea, que faz um trabalho em tecidos bastante sofisticado, que fez Bienal de Veneza; e o trabalho da sul-africana Mary Sibande. A gente dialoga também com um artista bem contemporâneo, o Rafael BQueer, que está exposto no MAR (Museu de Arte do Rio), que revisita o trabalho pop do Andy Warhol. A gente vai inserir as criações dele em uma alegoria, em que ele vem como destaque performático. [A pintora] Djanira também é uma referência que aparece agora no Carnaval de 2020, além de Abdias do Nascimento.

O sistema simbólico de cada um é diferente. Eu já vou para uma linha de neo-realismo. Gosto de Cinema Novo. Glauber Rocha é uma referência permanente, assim como toda musicalidade da Tropicália, as experimentações do Luiz Fernando Carvalho, que tenta inserir linguagens novas em algo tão massificado como a telenovela. Bebo muito na literatura de cordel, nos folguedos populares, na literatura de Guimarães Rosa. Acho que tenho uma veia neobarroca. O curioso é que eu crio muito ouvindo rock, apesar de ser um amante incondicional de samba, principalmente de samba-enredo. Quando abre o Spotify, a gente toma um susto. No ano passado o que mais ouvi foi Led Zeppelin.

Haddad: O meu foi Jovelina Pérola Negra, e bois de Parintins em segundo.

Bora: São nomes que dão as mãos, que aparentemente não tem nada a ver, mas tem. A gente não exclui nada.

Joãosinho Trinta na Sapucaí: carnavalesco é uma das inspirações da dupla da Grande Rio – Estadão Conteúdo

Romulo Tesi

Romulo Tesi Jornalista carioca, criado na Penha, residente em São Paulo desde 2009 e pai da Malu. Nasci meses antes do Bumbum Paticumbum Prugurundum imperiano de Aluisio Machado, Beto Sem Braço e Rosa Magalhães, em um dia de Vasco x Flamengo, num hospital das Cinco Bocas de Olaria, pertinho da Rua Bariri e a uma caminhada do Cacique de Ramos, do outro lado da linha do trem. Por aí virei gente. E aqui é o meu, o nosso espaço para falar de samba e Carnaval.

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