Na última terça-feira, 7, no lugar de uma tradicional e pacata Missa de 7º dia, Beth Carvalho ganhou de amigos e familiares algo que ela muito provavelmente preferiria: sob a lona do Circo Voador, encravado na Lapa, um Samba de 7º dia, com cantoria, dança e bebida. Isso uma semana depois de um velório com povo cantando e bebendo no Salão do Botafogo.
Ainda que cause estranhamento em alguns, esse comportamento brioso diante diante da morte nada mais é que o respeito a uma tradição sambista, que por sua vez foi beber na fonte dos ancestrais que ajudaram a criaram o gênero: os negros e, por continuação, a África. E a razão por trás desse jeito de encarar a perda vai muito além de mera festa, que, com as devidas adaptações, ganhou nome: gurufim (guarde essa palavra).
“O costume de cantar e beber em enterros de sambistas está muito vinculado a uma tradição popular que relaciona a morte à algumas celebrações. Isso a gente encontra em diversas culturas populares. No Brasil, isso é muito comum tanto na religiosidade dos negros bantos quanto dos negros iorubás. Nos candomblés, por exemplo, o axexê, que é a cerimônia fúnebre, é uma espécie de festa para a morte”, explica o historiador e escritor Luiz Antônio Simas.
O leitor pode já ter ouvido falar na crença de que a morte, quando chega, nunca leva só um, mas três. Para evitar esse inescapável destino, o povo canta, bebe, dança e brinca.
“Normalmente, ou é para garantir uma boa passagem, uma boa condução da alma para o país dos mortos ou então para enganar a morte. Há alguns mitos que falam da necessidade de você festejar para que a morte não perceba que tem alguém sendo velado ali e ela não leve mais ninguém”, conta Simas.
15 mil pessoas
No Brasil, o primeiro grande funeral de um sambista que se tem notícia foi o de Paulo da Portela. Segundo relatos do jornal Correio da Manhã, em 1949, 15 mil pessoas participaram, de alguma forma, da despedida fúnebre do fundador da escola de samba de Oswaldo Cruz e Madureira.
Teve festa, mas sem a Portela. A biógrafa de Paulo (junto de Lygia Santos, “Paulo da Portela – Traço de União Entre Duas Culturas”), Marilia Trindade Barboza, explica que, por conta da então recente briga entre o sambista e a escola, a viúva Maria Eliza se recusou a levar o caixão para a quadra da agremiação (onde hoje fica a chamada Portelinha). Com isso, o esquife saiu da modesta casa da família direto para o cemitério. Se a decisão impediu festa na sede da Portela, na rua o povo deu um jeito de homenagear o líder.
“O comércio fechou. Teve toque de surdo, cantoria e povo bebendo pelo caminho. Foi o primeiro grande funeral de um sambista. Não há comparação com qualquer outro”, conta Marilia.
(A morte de Paulo da Portela ainda ajudou muita gente a ganhar um dinheiro extra. Isso porque vários presentes no enterro jogaram o número da sepultura no Jogo do Bicho, como manda a tradição, e acertaram na cabeça)
Segundo a escritora, o que não teve no funeral de Paulo da Portel foi gurufim – pelo menos no seu significado “original”, assim mesmo, com aspas, já que nem entre os sambistas há consenso. Para a maioria dos dicionários, incluindo o do Folclore, de Luís da Câmara Cascudo, gurufim é basicamente um velório de caráter popular com festa.
Em 1978, Marilia perguntou há vários bambas e afiliados sobre o que seria o tal gurufim. As respostas, de gente como Martinho da Vila, Neuma da Mangueira e Padeirinho, são as mais diversas. Abaixo, algumas:
Martinho da Vila
“Gurufim em enterro de pobre nunca foi triste. Os mais velhos ficavam conversando sobre a vida do morto, os mais novos iam para o quintal fazer as brincadeiras”
Rufino da Portela
“Gurufim é todo mundo sentado brincando”
Neuma da Mangueira
“A gente tirava a porta da sala principal e deitava sobre os caixotes. Colocava o morto ali em cima rodeado de gente sentada em bancos. Quando a cachaça comia solta, nego dormia e os outros pintavam a cara dele de rolha queimada”
Aníbal Silva, do Salgueiro
“Gurufim é um velório sem capela, em casa mesmo, com saudade e risada. Lembrança, cachaça e muitas brincadeiras, para a morte não ficar tão feia”
Criança da favela entrevistada por Marilia
“Gurufim é a festa que a gente faz quando morre uma pessoa no morro”
Padeirinho
“Gurufim no morro é que no meio social se chama de velório. Se você ver um gurufim, é capaz até de achar que é falta de respeito, mas não é. É uma jogada diferente do meio social”
“O negro que tinha essa crença brincava para ficar acordado durante o velório”, diz Marilia.
Essas brincadeiras costumavam ter o mar e os peixes como tema. Em uma delas, cada presente ganhava a alcunha de um bicho do mar, e o capitão anunciava o nome dos peixes: “manjou sardinha?” A pessoa que era a sardinha então tinha que responder, e passar adiante. Quem não respondesse ao chamado, tinha que pagar uma prenda, como levar um tapa na mão, conhecido como “bolo”.
Golfinho
A origem do Gurufim, de acordo com as pesquisas de Marilia, está na África – claro. E tem a ver com mar, como já sugeria as brincadeiras.
“Gurufim é uma corruptela de golfinho. O golfinho na mitologia egípcia é o cetáceo sagrado que quando a pessoa morre leva as almas para o outro lado”, explica a escritora. “Por isso os peixes nas brincadeiras dos gurufins”, completa.
Com o tempo, o conceito de gurufim se tornou mais elástico, a ponto de nomear qualquer velório com festa. Se tem morto e tem samba, já tá valendo chamar de gurufim.
Assim, até o de Paulo da Portela poderia ser chamado como tal. Segundo Simas, há notícia de pelo menos mais dois grandes gurufins na história: o de Candeia e o de Cabana, um dos fundadores da Beija-Flor de Nilópolis. Há relatos de que o velório de João Nogueira também foi marcado por uma bebedeira generalizada entre os amigos.
“Essa tradição do samba reforça uma ideia que a gente tem que entender: o samba é um elemento que bebe na fonte das culturas da diáspora africana. Há quem tente negar essa característica, mas o samba é uma cultura da diáspora africana. Os ritos de celebração da morte entre os povos africanos eles estão na origem do hábito do sambista de celebrar a morte de alguém que se foi, com canto, com dança, com lembrança, com bebida, comida, alegria”, afirma Simas.
Cartola e o gurufim de 5 pessoas
No início da década de 1980, o gurufim já estava caindo no esquecimento, conta Marilia. Ela mesma esteve em um “extraoficial”, completamente improvisado, apesar da importância do morto.
“No dia em que o Cartola morreu, em 30 de novembro de 1980, eu fui visitá-lo no hospital, no Humaitá. Cheguei em casa e a enteada dele me ligou dizendo que ele tinha morrido. Avisei o Hermínio Bello de Carvalho e voltei ao hospital”, narra Marilia, que lembra de alguém ter dado a ideia: “Cartola merece um gurufim”.
“Então sentamos em um bar eu, Hermínio, Albino Pinheiro [fundador da Banda de Ipanema], Sergio Cabral [o pai, jornalista] e Artur de Oliveira [parceiro de Cartola]. Eles batucando e bebendo, menos eu, que não bebia, enquanto esperava chegar o rabecão”, relembra. E assim foi o gurufim de Cartola, outro biografado por Marilia.
Numa época em que nem o professor Aurélio Buarque de Holanda sabia o que era gurufim (Marilia é testemunha), a palavra foi parar na ordem do dia do então ministro da Aeronáutica do governo do presidente Figueiredo, Délio Jardim de Matos.
“O ministro por acaso tinha lido o livro [sobre Paulo da Portela] e escreveu: ‘o Brasil está parecendo um gurufim’. No dia seguinte, todos os jornais deram”, conta Marilia.
A escritora vê, atualmente, uma tentativa de resgate da tradição, muito pela força que os movimentos de defesa dos negros ganharam nos últimos anos. No samba, hoje, se morre um bamba, tem canto, dança, batucada e bebida – e a turma chama mesmo de gurufim. No fundo, é tudo para não deixar o morto ser esquecido.
“Nas culturas africanas, que foram redimensionadas no Brasil, a ideia de morte e vida está muito lembrada à ideia de lembrança e esquecimento. Se você não é lembrado ou esquecido, se você é festejado e reverenciado, a rigor não existe a morte. A aniquilação mesmo é o esquecimento”, explica Simas.
Pelos gurufins dedicados a Beth Carvalho, Dona Ivone Lara, Almir Guineto, e outros, não houve morte para eles.
Gurufim na música
Os gurufins foram registrados em alguns sambas. Ouça abaixo alguns:
Briga de uns e outros
“Linguagem do Morro” – Padeirinho
Dizem que é burburim
Velório no morro é gurufim
Lá no morro quando morre um sambista
É um dia de festa e ninguém protesta
As águas rolam a noite inteira
Pois sem brincadeira o velório não presta
Tem também um gurufim
Que no fim acaba sempre em sururu
Mas é gozado pra chuchu(…)
“Velório no morro” – Raul Marques e Tancredo Silva
Já encomendaram ao anjo Gabriel
Um novo céu para dar abrigo a sua gente
Que morre assim constantemente, de repente [nota: atenção para a denúncia desses versos]
Eu vou fingir que morri
“Meu gurufim” – Cláudio Camunguelo
Pra ver quem vai chorar por mim
E quem vai ficar gargalhando no meu gurufim
Quem vai beber minha cachaça
E tomar do meu café
E quem vai ficar paquerando a minha mulher
A tradição africana manda a gente cantar de qualquer maneira, e quando o Cabana subiu, o gurufim dele foi na quadra da sua escola de samba, a Beija Flor de Nilópolis. Lá pelas tantas, começamos a cantarolar As músicas do grande compositor
Martinho da Vila, numa “audiodescrição” do gurufim de Cabana
Para saber mais
Luiz Antônio Simas, em seu canal no You Tube, dedicou um vídeo aos gurufins. Veja abaixo:
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