“Teu filho venceu, mulher”: mães dos carnavalescos da Portela narram trajetória dos artistas; leia os depoimentos

Portela 2024 – Marco Terranova/Riotur

Em um enredo – inspirado no livro “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves – que destaca a relação entre mãe e filho, as mães dos carnavalescos da Portela desfilaram em posições de protagonismo no Carnaval de 2024. Gilca, mãe de Antônio Gonzaga, veio na comissão de frente. E Antônia Rodrigues, mãe de André Rodrigues, desfilou como destaque em um carro, representando Kehinde – ou Luisa Mahin.

Aqui, a pedido do Setor 1, elas narram suas trajetórias e dos filhos, e como se tornaram artistas do Carnaval.

Antônia Rodrigues, mãe de André Rodrigues

Antônia Rodrigues, mãe do carnavalesco André Rodrigues, da Portela – Romulo Tesi

Eu levei o André para o Sambódromo a primeira vez ele estava na minha barriga. Depois, com um ano de idade, e assim todos os anos a gente estava lá, sempre de Setor 13 [setor popular, no fim da avenida].

Ele enfileirava os carrinhos de brinquedo e dizia que eram carros alegóricos. Ele fazia isso no quartinho onde ficávamos, na casa da minha patroa, no Jardim Botânico. Eu perguntava: “André, o que é isso?”. Ele só pedia: “mãe, não pisa!”. Ele já era apaixonado pelas escolas de samba.

E assim foi indo, até que ele começou a desenhar no colégio, com cinco anos. Aos nove, desfilou pela primeira vez, na Caprichosos de Pilares.

Com 14 anos, o André começou a andar pelos barracões das escolas para entregar os desenhos dele.

Aí um dia ele chegou pra mim e falou: “mãe, você tem que ir no Juizado de Menores, que eu vou trabalhar no barracão”. Eu perguntei se ele estava doido!

André Rodrigues, carnavalesco da Portela – Romulo Tesi

A escola era a Lins Imperial. E o carnavalesco era o Eduardo Gonçalves. Antes, fui nele e falei: ‘se o André faltar um dia de aula, ele não pisa mais aqui!’. Aí ele respondeu: “a senhora não sabe o talento que você tem em casa”. E hoje ele chama o Edu de pai, e o Edu chama ele de filho.

Quando eu ia para o Maranhão – eu sou maranhense -, o André disse que queria ficar no Rio trabalhando.

Eu reforcei: “você vai ficar, mas não me falte um dia de aula. Se faltar um dia, você não pisa mais em escola nenhuma!”.

No dia do desfile [na segunda de Carnaval 2024] eu chorei muito. Chorei do começo ao fim. Não esperava isso que ele fez isso comigo. Eu nunca quis desfilar na escola que ele trabalhava. Porque eu gosto de ver. Se você desfila, não vê. Ele então me explicou o enredo: “ [o desfile] fala sobre mãe, mulher, negra. E a senhora não pode deixar de vir”. Eu só não imaginava que era de destaque.

Eu chorei no desfile porque passou um filme na minha cabeça.

Era por tudo que a gente passou. Eu trabalhava de doméstica e íamos de 15 em 15 dias pra nossa casa, em Belford Roxo, aos domingos.

E meu filho chegava em casa e beijava todos os tijolos. Ele dizia: “Ai que saudade da minha casinha. Que saudade da minha casinha”. Eu falava: ‘filho, hoje a gente passa por isso, amanhã Deus proverá”. E hoje ele está aí: carnavalesco da Portela. Graças a Deus que eu estou viva pra ver isso.

Na Portela valorizam o trabalho dele. A gente que é negro come um leão por dia pra vencer. E eu continuo doméstica, matando um leão por dia. E com muito orgulho do meu filho.

A Portela foi a escola que veio com o povo no chão. Foi a escola que mostrou os negros. Negros que vencem. E negro pra vencer é muito difícil nesse país.

Quando eu cheguei no Rio de Janeiro, há 46 anos, a gente era praticamente escrava. Não tinha carteira assinada. Hoje temos, mas naquela época não tinha nada. Era o mínimo de salário. A gente trabalhava um ano na casa da patroa pra pagar o transporte que trouxe a gente. A passagem!

No começo, eu tive uma patroa que falou que eu tinha mandar meu filho para o Maranhão.

E eu ia fazer 30 anos. Ela disse: “você tem que mandar seu filho pro Maranhão pra você trabalhar. Eu me recusei, e respondi: “a minha mãe teve nove filhos, e nunca deu filho dela pra ninguém. Ela criou até filho dos outros. Eu não vou dar meu filho pra ninguém. Se você não me quer, tem que me queira. Porque eu sou guerreira. Eu trabalho. E eu vou criar meu filho”.

Porque quem levou chibatada, já levou há muito tempo. Mas a gente tem que honrar essas pessoas que levaram chibatada.

Gilca Soares, mãe de Antônio Gonzaga

Gilca e o filho, Antônio Gonzaga, carnavalesco da Portela – Romulo Tesi

Sou uma mulher preta, médica e mãe de três filhos.

O Antônio sempre foi um menino apaixonado por Carnaval, desde criança. Quando ele entrava de férias, pedia para levar ele para passear na Cidade do Samba.

Em casa, ele brincava de montar carros alegóricos de Lego. Juntava a criançada, botava todo mundo pra cantar o samba e ia empurrando os carrinhos.

A família não frequentava as escolas de samba, mas passamos a ir às concentrações, à Cidade do Samba e ficar mais atento ao Carnaval por causa do interesse dele. Ele sempre foi muito apaixonado.

Um dia ele falou assim: “mãe, preciso da sua ajuda porque eu vou inscrever um samba no Salgueiro”. Ele tinha 14 anos, e já tinha visto tudo que precisava. Eu perguntei sobre o samba, e ele respondeu: “Tá pronto”.

Quando ele fez 15 anos, comemorou o aniversário com os amigos numa disputa de samba no Salgueiro. Eu inclusive precisava assinar, porque ele era menor de idade.

Depois o Antônio foi estudar design, sempre com o foco no Carnaval. Começou a estagiar em barracão, espontaneamente, mesmo sem remuneração. E a gente brincava: “qualquer hora o Antônio vai virar carnavalesco”. E a partir daí começaram a chegar os convites, até a estreia dele no Arranco de Engenho de Dentro, no ano passado.

A família abraçou: fomos para o barracão, ajudamos a fazer as alegorias, botamos a mão na massa.

Depois do desfile, ele começou a receber convites. E quando ele falou da Portela, meu coração disparou: minha mãe sempre foi portelense doente. Lá em casa tinha aquela expectativa da águia, e a desse ano meu filho ajudou a fazer, e eu vi o passo a passo da construção. Foi um momento de grande felicidade ver um menino, que muitas vezes foi visto como um menino diferente, assumindo uma escola do tamanho da Portela.

Águia da Portela de 2024 – Alexandre Vidal/Rio Carnaval

Meu coração palpite de ver meu filho realizando um sonho profissional como artista. E fiquei sem palavras quando ele me colocou aqui [na comissão de frente da Portela], como uma grande mãe. Acho que eu nem mereço tudo isso, mas eu estou extremamente feliz.

Quando eu canto “seu filho venceu”, eu canto do fundo do meu coração. Porque eu sei o quanto ele ama isso e o quanto foi difícil pra ele chegar aqui.

E ele banca os sonhos dele. Eu falo: “meu filho, você é muito corajoso. Você tem uma coragem que eu na minha vida nunca tive”.

Romulo Tesi

Romulo Tesi Jornalista carioca, criado na Penha, residente em São Paulo desde 2009 e pai da Malu. Nasci meses antes do Bumbum Paticumbum Prugurundum imperiano de Aluisio Machado, Beto Sem Braço e Rosa Magalhães, em um dia de Vasco x Flamengo, num hospital das Cinco Bocas de Olaria, pertinho da Rua Bariri e a uma caminhada do Cacique de Ramos, do outro lado da linha do trem. Por aí virei gente. E aqui é o meu, o nosso espaço para falar de samba e Carnaval.

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