A cisão entre crítica e público, tão comum no universo da arte e incômodo a críticos e artistas, parecia pacificada nas páginas de um grande jornal brasileiro deste domingo (18/04), que dedicou a edição inteira de seu caderno cultural para homenagear os oitenta anos do Roberto Carlos. Os textos eram laudatórios, com poucas e superficiais referências a problemas de ordem estética e histórica que marcaram a carreira do cantor e compositor. Mas nas páginas internas do primeiro caderno, onde pontificam os colunistas de política e outras laias, uma nota, desconexa da efeméride e da homenagem, e aparentemente despercebida, se conectada à personagem do dia tem potencial para suscitar novamente o debate.
Em poucas linhas, a nota informava as dez músicas brasileiras mais gravadas da história, segundo levantamento do ECAD. “Carinhoso”, de Pixinguinha e Braguinha, desbancara “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso. Na relação contam seis composições de Tom Jobim, sozinho ou com parceria de Vinícius de Moraes e Newton Mendonça – todas clássicos da bossa-nova -, além de “Asa Branca”, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, e “Manhã de Carnaval”, de Antônio Maria e Luiz Bonfá. Tom Jobim chega a 1630 gravações, somadas – o compositor mais gravado, portanto. Não há sequer uma canção de Roberto Carlos; e, se o lugar-comum de que mais importante é a qualidade invadir a mente de quem lê este texto, que fique claro que todas as dez canções são esplêndidas e merecem figurar na lista.
Assim como no repertório de Roberto Carlos há obras que, se figurassem na relação, nem de longe seria motivo de estranhamento, pela qualidade e por estar no inconsciente coletivo da população brasileira. (Talvez as vicissitudes de Roberto impeçam mais regravações de suas composições; é uma possibilidade) Há um paradoxo na história da música brasileira: Roberto Carlos é o que todos sabem – mas negligenciado quando ela é contada e recontada; e o cetro de rei que ele carrega tem pouca importância no momento em que se nomeia sua realeza. Em que elenco Roberto figura, em importância, ao lado de Pixinguinha, Tom Jobim, João Gilberto, Noel Rosa, Cartola, Chico Buarque, Ismael Silva, Ary Barroso, Caetano Veloso, Gilberto Gil?
No especial de fim de ano de 1983, Roberto Carlos declarou que seus compositores favoritos eram Chico Buarque e Noel Rosa. Não é trilhando por este caminho que se chegará a uma análise sensata de sua obra e do paradoxo que a recobre. Nela há pouco de Chico e Noel. Roberto começou imitando João Gilberto sem êxito; embarcou com êxito na onda da Jovem Guarda, movimento popular entre os jovens de classe média e baixa na primeira metade dos anos 1960. A grande inflexão começou no fim dessa década, quando se vai transmutando em cantor romântico. E se completa no LP de 1971, considerado o melhor de sua carreira, que contém “Detalhes”, “Amada Amante”, “Debaixo dos caracois dos seus cabelos”, “Traumas”, entre outros sucessos.
Com voz suave, letras simples e menos piegas do que as do samba-canção aboleirados, melodias e arranjos elaborados, Roberto Carlos tornou-se o maior cantor romântico da década de 1970 – e assim é tratado até hoje. É nesse estilo – menos cafona do que a canção chamada de brega, o que não impediu que fosse tachado como tal, e pouco compromisso com sofisticação bossa-novista e com vanguardismo – que se resolve o paradoxo. Para a crítica, suas canções são consideradas bonitas, mas não ao ponto de fazer dele um artista do mesmo nível dos que foram citadas acima. Há outro motivo: o pouco envolvimento dele com movimentos contra o regime militar, numa época em que canções de protesto ditavam as paradas ideológicas.
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Enredo campeão da Beija-Flor no Carnaval 2011 e da Unidos do Cabuçu em 1987, Roberto Carlos torna-se octogenário com seu repertório cuja grandeza foi construída nos anos 1970. No início da década seguinte, a fonte de inspiração pareceu secar. Para o público, pouco importa. É monarca há mais de cinquenta anos, quando era chamado de “Rei da Jovem Guarda” – título que foi reificado pelo Chacrinha em seu programa e modificado para adaptar-se ao novo estilo. E mantido até os dias de hoje, quando a efeméride permite que sua realeza seja admirada por todos.
Bruno Filippo – Jornalista, sociólogo
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