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O que falta a Martinho da Vila, por Bruno Filippo

Martinho da Vila – Reprodução/TV Brasil

Egresso dos festivais da canção e renovador da linguagem do samba cantado pelas escolas no carnaval, Martinho da Vila, enfim, será enredo de sua própria escola. Aos 84 anos em fevereiro do ano que vem (ou no meio do ano, se os desfiles forem transferidos), sua escola se confunde com as transformações do samba-enredo – e deixa a sensação de que o seu reconhecimento ainda não está à sua altura.

Emulando os grandes nomes da música popular, Martinho Jose Ferreira foi revelado para as massas da indústria cultural nos festivais da segunda metade dos anos 1960. Não se lhe nega o epiteto de sambista; mas isso é redutor para caracterizar-lhe a obra.

Martinho é eclético, assim como a geração de que é contemporâneo: suas obras mesclam o samba tradicional e a MPB, cirandas, frevos, sambas de roda, capoeira e até bossa-nova, além de calangos e ritmos lusófonos.

O disco de samba de 1995 “Tá Delícia, Tá Gostoso” foi o segundo a ultrapassar a marca de um milhão e meio de copias vendidas.

Ao longo de quase 60 anos, mantem ligação estreita com a Unidos de Vila Isabel, para o qual compôs incontáveis sambas-enredo. Foi outra grande contribuição dele à música. Numa época em que imperava o samba-lençol, de versos longos, melodia sem grandes variações, capaz de cobrir todo o enredo que era exibido pela agremiação – daí o nome associado a lençol -, Martinho promoveu modificações estruturais nas obras que compôs para a Vila. Em 1967, “Carnaval das Ilusões”; em 1968, “Quatro séculos de modas e costumes”; e no ano seguinte, um de seus sambas-enredo mais conhecidos: “Iaiá do Cais Dourado”.

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Martinho mantém-lhes as características descritivas, mas encurta a letra, torna-a mais dinâmica e menos didática. Difere, portanto, do que fez Zuzuca, no Salgueiro, a partir de 1971, ao trocar o samba descritivo pelo interpretativo – muito mais curto, sem a preocupação de aferrar-se por completo ao enredo.

O artista recebera a maior láurea que uma escola de samba pode conferir a um indivíduo, que também é escritor, com vários livros publicados, e postula uma vaga na Academia Brasileira de Letras. Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, tornou-se também embaixador Cultural de Angola e embaixador Cultural da Boa Vontade da Comunidade de Países da Língua Portuguesa. Ao que se somam diversas outras honrarias.

Que o cortejo da Vila Isabel no carnaval seja feérico e faça jus à real dimensão desse grande artista brasileiro.

“Eu sempre li todos os seus textos”

Tenho uma história particular com Martinho da Vila; e se a mantive em privado, foi por respeito a ele. É uma história de grandeza e humildade, que agora revelo tomando de empréstimo o enredo da Vila Isabel em sua homenagem.

Perto dos 80 anos, ele se matriculou num curso superior de Relações Internacionais – do qual, por coincidência, eu era professor e coordenador. A convivência entre mim e ele era cordial e formal; conversávamos sobre diversos assuntos, exceto qualquer coisa ligada à música, a samba ou a carnaval. A relação dele com os colegas muitas décadas mais jovens era ótima: ele chegou a ir à casa de um aluno fazer trabalho em grupo; e teve de ouvir de uma aluna chamada Maíra que foi batizada com esse nome por causa do samba-enredo da Vila de 1987, que continha homenagem à filha do Martinho, Maíra.

Eu estava prestes a lançar um livro com ensaios sobre música e carnaval, com alguns capítulos sobre o meu ilustre aluno; hesitei se deveria convidá-lo, por medo de parecer inconveniente. Venci a hesitação e lhe enviei o convite por e-mail, que ficou sem resposta. Entre o dia do e-mail e o do lançamento do livro, alguns dias se passaram, sem que tocássemos no assunto, e eu já me havia arrependido, achando-me deselegante.

Já ao fim da noite de autógrafos, Martinho entra na livraria, estica-me o livro que segura na mão, para que eu o autografasse. Digo a ele: “Nós nunca conversamos sobre esses assuntos, Martinho”. Ao que ele me respondeu: “Mas eu sempre li todos os seus textos”.

Ouça o samba da Vila Isabel no Carnaval 2022:

*Bruno Filippo é jornalista e sociólogo.

Este texto não reflete necessariamente a opinião do Setor 1.

Romulo Tesi

Romulo Tesi Jornalista carioca, criado na Penha, residente em São Paulo desde 2009 e pai da Malu. Nasci meses antes do Bumbum Paticumbum Prugurundum imperiano de Aluisio Machado, Beto Sem Braço e Rosa Magalhães, em um dia de Vasco x Flamengo, num hospital das Cinco Bocas de Olaria, pertinho da Rua Bariri e a uma caminhada do Cacique de Ramos, do outro lado da linha do trem. Por aí virei gente. E aqui é o meu, o nosso espaço para falar de samba e Carnaval.

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