‘O samba jamais será ameaçado’, decreta Leci Brandão

Leci Brandão em seu gabinete na Alesp – Romulo Tesi/Band

A letra do samba de 2018 do Paraíso do Tuiuti colada no corredor do gabinete número 3024 da Assembleia Legislativa de São Paulo denuncia que ali é casa de bamba – e de política. Os versos sobre a escravidão preenchem uma das paredes e divide espaço com fotos de líderes do movimento negro e outras figuras alinhadas à esquerda.

“Eu gostei tanto que pedi para colocarem no corredor do quilombo”, diz a deputada estadual pelo PC do B Leci Brandão, 74 anos, que rebatizou o conjunto de salas que ocupa na Alesp como Quilombo da Diversidade.

“É que aqui eu recebo de tudo: de padre a pai de santo, gays, sindicalistas…”, afirma a sambista, prestes a iniciar seu terceiro mandato na casa, militando em defesa dos direitos dos negros, das mulheres, população periférica e comunidade LGBT, entre outros grupos. Como se a atividade política fosse uma continuação natural da militância artística – Leci foi uma das primeiras cantoras homossexuais a falar abertamente sobre o assunto, ainda na década de 1970.

Em entrevista ao Setor 1, Leci contou que a vitória nas eleições foi um das três maiores emoções no ano, junto da premiação como melhor cantora de samba e a citação na letra do hino mangueirense de 2019. A menção na obra vencedora, inclusive, acabou rendendo um convite do carnavalesco Leandro Vieira para a deputada encarnar a líder negra Luiza Mahin no desfile da Verde e Rosa. Em São Paulo, Leci já foi enredo na Tatuapé, em 2012, escola da qual se tornou madrinha.

“É coisa de Deus. De um tempo pra cá começaram a acontecer coisas lindas na minha vida”, diz a primeira mulher da ala de compositores da Mangueira, animada, em sua sala com decoração e mobiliários espartanos, sem luxo, e fazendo questão de exaltar a religião, tema recorrente em sua carreira.

No papo, Leci relembrou a trajetória como cantora, comentou a atual fase dos desfiles, o papel dos gays no Carnaval e os rumos das agremiações no novo cenário político brasileiro, com a chegada da extrema-direita ao poder, com Jair Bolsonaro.

“O samba jamais será ameaçado”, prevê Leci.

Leci Brandão batuca em show no Recife, em 2009 – Alexandre Severo/JC Imagem/Estadão Conteúdo

Veja a entrevista abaixo:

Como foi receber a notícia de que você estava na letra do samba da Mangueira?
É coisa de Deus. De um tempo pra cá começaram a acontecer coisas lindas na minha vida. Primeiro ter sido escolhida melhor cantora de samba [no Prêmio da Música Brasileira] tendo feito um disco independente [“Simples Assim”]. Depois teve a vitória nas eleições [Leci se reelegeu deputada estadual em São Paulo pelo PC do B].

Você já estava há cinco anos sem entrar em estúdio.
E eu nem me dei conta disso. Os meninos [músicos] lembraram: ‘tia, já são cinco anos sem gravar’. Em dois dias nós fechamos o repertório e fomos gravar no estúdio do Marcos Boldrini. Em uma semana fizemos o CD – porque comigo não tem essa de ir para sítio ou para a mata antes de cantar. E minha voz ficou prejudicada por eu estar aqui (Alesp) desde 2011, falando todo dia. As cordas vocais não aguentam. Tive que diminuir tons de músicas que já cantava há muito tempo. Inclusive pode perceber que isso aqui [mostra região do pescoço] fica inchado quando eu falo. Depois veio a indicação ao prêmio. Quando cheguei naquele Teatro Municipal eu pensei: ‘o que eu vim fazer aqui?’ Foi uma grande alegria na minha vida.

Depois veio a reeleição. Como foi fazer campanha no Brasil de hoje, com o crescimento da extrema-direita?
Eu não sabia o que aconteceria, diante do quadro que está aí. Sou de um partido progressista, comunista, de esquerda, falei: ‘não vai dar pra mim’. No entanto a gente entrou. São 94 cadeiras aqui nessa casa, e 53 não entraram (por reeleição). Estou entre os 41 e que ficaram, e por um partido sem o poderio financeiro que outros têm. Fiz campanha de ir ao encontro de pessoas. Não fiquei na rua distribuindo papel. Reuni pessoas em todos os lugares possíveis e disse: ‘olha, vim aqui para contar minha história de vida, falar o que fiz como deputada, e vocês vão avaliar se eu mereço mais uma oportunidade. Não pedi voto.

E durante esses oito ano na política a sua carreira musical foi ficando em segundo plano?
Primeiro entendi que, a partir do momento em que eu fui eleita pelo povo, eu tinha que dar prioridade a essa lugar e cumprir a minha missão.

E como você entrou para a política?
Quando fui convidada para ser candidata, em 2009, fui no meu caminho espiritual, de religião de matriz africana. Estive em uma casa que conheço desde a década de 80, em São Gonçalo, para ouvir o Caboclo Rei das Ervas. Foi ele que me disse, em 1984, que eu retomaria minha carreira. Na época eu estava há cinco anos sem gravar, depois que pedi demissão da Polygram em 1981, porque eles não aceitaram meu repertório, que tinha “Zé do Caroço”.

Foi censura da ditadura ou a gravadora que não simplesmente recusou as músicas?
Eu tinha direito a fazer mais um disco, mas eles não aceitaram as músicas. Aí fiquei muito indignada. Os caras falaram: ‘vai pra casa, tentar fazer outras coisas’. Fui pra casa, sim, mas peguei minha máquina de datilografia e escrevi uma carta pedindo demissão.

“Zé do Caroço” [sobre um líder comunitário de Vila Isabel] era parte desse repertório, certo?
Sim. Ela foi feita em 1978 e só gravada em 1985, quando recebi a oportunidade pela gravadora Copacabana. O Adiel de Carvalho [sócio da gravadora] me recebeu no escritório na avenida Rio Branco [no Centro do Rio de Janeiro] e me disse: ‘olha, não precisa falar do seu repertório, porque já sei como é, focada em assuntos sociais, mas acho que a forma como estão apresentando seu trabalho não está sendo legal. Tem muita orquestra, muito violino, muita coisa… Tenta arranjar um produtor que faça algo como se você estivesse em num bar, bem simples. Aí chamei o Alceu Maia, e fizemos o “Leci Brandão”. Vendeu tanto que não gravei em 1986. Só fui gravar em 1987. Na contracapa, fala do Seu Rei das Ervas, a quem dediquei também a última faixa do disco, que é uma saudação a ele.

Leci em foto de arquivo – Reprodução/Facebook

Foi uma homenagem pelo o que ele disse para você?
O Caboclo havia me dito em 1984: ‘você precisa cuidar do seu anjo de guarda para retomar sua carreira, mas antes disso você ainda vai sair do Brasil para cantar’. Aí eu duvidei do Caboclo. Quando foi em novembro daquele ano, recebi uma carta de Luanda, em Angola, da [construtora] Odebrecht, que fazia toda a restauração do país por causa da guerra. Fizeram um convite para eu me apresentar no aniversário da Rádio Nacional de Luanda. Quando desci do avião, bati cabeça na terra para pedir “agô” [licença] para o Caboclo Rei das Ervas. Desde então, eu me comprometi a colocar saudações aos orixás em toda última faixa dos meus discos, como disse o Caboclo. Ele falou para começar com Iansã, que me dá sensibilidade para compor a parte suave da poesia, e depois Ogum, que é a parte brava, de quem enfrenta tudo.

Anúncio feito pelo carnavalesco da Mangueira, Leandro Vieira, do convite para Leci desfilar; Alcione e Nelson Sargento também foram convocados – Reprodução/Instagram

A religião é algo que sempre te ajuda a tomar decisões?
Quando fui convidada para a política, visitei a Mãe Nilza. Ela me disse que meu santo estava dizendo para eu aceitar o desafio, que era mais uma missão que ele estava te dando. Ele disse que eu já havia conquistado muita coisa com a arte, mas que ainda tinha espaço para lutar pelo povo. Então aceitei o desafio. Avisei ao meu empresário e ao Orlando Silva e o Netinho, que tiveram a ideia de eu me candidatar. Me filiei ao PC do B e me elegi em 2010. Fui a segunda mulher negar a entrar na Alesp. A primeira foi Theodosina Ribeiro [que batiza um prêmio da assembleia dado a mulheres de destaque, iniciativa de Leci].

Como você ficou sabendo que estava na letra do samba da Mangueira?
Pela imprensa (risos). O samba ainda não tinha vencido, estava concorrendo, eu sabia que era um dos favoritos. Foi a terceira grande alegria na minha vida, junto com o convite para desfilar representando a Luiza Mahin. E no meio disso tudo, minha mãe [Lecy], de 96 anos, sofreu um AVC no início de novembro, mas graças a Deus ficou tudo bem, com gente orando de tudo quanto foi religião.

Sua mãe tem importância para sua ligação com a Mangueira, não é?
Sim! Sou mangueirense por causa dela. Tanto ela como minha avó desfilavam na escola. Eu ia muito ao morro na casa da minha madrinha de batismo, sempre estava lá. Frequento a comunidade desde meus sete anos. Desfilei pela primeira vez em 1972, como compositora [foi a primeira mulher da ala de compositores da Verde e Rosa].

Vi que você tem a letra do samba do Paraíso do Tuiuti de 2018 colada no corredor do seu gabinete. Queria que você comentasse o impacto daquele desfile.
Para mim foi uma surpresa. Uma escola pequena, mas que fez um desfile com a maior dignidade, bonito, com uma mensagem relevante. Eu gostei tanto da letra que pedi para colocarem no corredor do Quilombo [da Diversidade, como batiza o gabinete na Alesp]. A escola de samba tem uma responsabilidade de prestação de serviço de consciência. O Salgueiro, quando teve o [Fernando] Pamplona, apresentou enredos assim, como Zumbi, Xica da Silva, enredos sobre negros. Tuiuti me remeteu àquele Salgueiro do Pamplona. A gente tem que aplaudir, porque é a nossa história. Antigamente você aprendia a história do Brasil ouvindo samba-enredo. E foi isso que Tuiuti fez. [A escola terminou com o vice-campeonato]

Trecho do samba do Paraíso do Tuiuti colado em uma parede do gabinete de Leci Brandão – Romulo Tesi/Band

Hoje as escolas estão cumprindo esse papel didático em que nível?
Ah, mudou muito… Apareceram carnavalescos muito deslumbrados, que fazem enredos sem relevância. Acredito que essa ‘ópera de rua’, com dizia o João [Joãosinho Trinta], deve contribuir culturalmente para as pessoas. Hoje também o povo já não vai mais. Está tudo com uma cara muito comercial e turística.

Você acha que houve um distanciamento das escolas em relação às suas origens e os anseios do público?
Houve um embranquecimento das escolas. Quem ainda leva muito negro para o desfile é a Beija-Flor, pelo menos entre as grandes do Rio, porque o povo de Nilópolis, Anchieta, Ricardo (de Albuquerque) desce todo.

Hoje as escolas reclamam muito de falta de dinheiro. Há uma espécie de estado permanente de crise, e o financiamento dos desfiles praticamente dominou a pauta carnavalesca. Como você analisa a fase atual das escolas de samba?
Kizomba, em 1988, da Vila Isabel, é um com exemplo. A escola estava sem dinheiro, chegaram a fazer campanha para as pessoas da comunidade guardarem panos brancos que tivesse em casa. Tinha muita coisa feita com palha, e foi um dos desfiles mais bonitos que já vi na minha vida. Ganhou o Carnaval sem luxo e sem dinheiro, mas com autenticidade e criatividade. Falta espírito de comunidade, de solidariedade. O samba é simples. Antigamente não tinha essa preocupação com o luxo. A preocupação era com o samba-enredo, com a bateria. Eu sou saudosista, confesso.

No Rio, a relação das escolas de samba com a prefeitura se tornou conflituosa depois da eleição do Marcelo Crivella, que já realizou dois cortes de verba que é repassada às agremiações. Como parlamentar, como melhorar essa relação?
O problema é que o gestor não gosta de carnaval, não suporta. Infelizmente a questão religiosa começou a influenciar. Conheço mestres de capoeira que têm encontrado dificuldade de encontrar crianças para aulas, porque os pais são evangélicos e falam que capoeira é coisa do demônio. Nas escolas também está acontecendo isso. Baiana que foi para a igreja não desfila mais. Também falam que tiram dinheiro do Carnaval porque precisam cuidar da Saúde, Educação… Pelo amor Deus! Carnaval faz parte da cultura e também influi na economia. Tem gente que trabalha nos barracões, os vendedores e outras atividades.

Bolsonaro foi eleito presidente, o Doria será o governador em São Paulo, e eles nunca se mostraram muito simpáticos ao Carnaval. Como fica o samba e os desfiles nesse Brasil atual?
O samba jamais será ameaçado. Ele é muito forte, tem história, chão, legitimidade. A partir do momento que a gente tiver força de vontade de defender a cultura, nada cai. O Carnaval não pode ficar atrelado ao dinheiro. Não precisa de dinheiro para mostrar sua alegria. Carnaval é uma coisa espontânea.

Uma vez o Milton Cunha disse que sonhava fazer um enredo sobre a homossexualidade, contando a história dos gays, batizado “O amor que não ousa revelar o seu nome”. Há uma experiência semelhante, com União do Parque Curicica em divisão de Acesso. Por que você acha que isso nunca aconteceu no Grupo Especial?
Naturalmente por preconceito dos presidentes das escolas, porque a maioria é de héteros e machistas, nem pensam em falar de comunidade LGBT no enredo. A maioria ainda tem um ranço machista, o que é paradoxal, porque eles gostam que essa turma desfile, porque eles são uma alegria incrível durante o desfile, eles passam causando! (risos) Os gays devem estar presentes. Eles têm uma força e brilho muito grandes, não fazem nada mais ou menos.

No seu último disco você gravou novamente “Essa Tal Criatura”, sobre o universo dos homossexuais. Como foi revisitar essa música agora, no meio dessa onda conservadora?
Foi uma das letras mais fortes que fiz na minha vida. Ela veio sem querer, quando eu estava tomando uma chuveirada. Deus já me manda música com letra e melodia. Coisa de orixá. Comecei a cantar no banho. Saí enrolada na toalha, porque não podia perder a melodia, já que não toco nada. Sou uma compositora intuitiva, e sempre tenho um gravador na bolsa. Em casa, eu tinha um Panasonic grandão, onde gravei. As pessoas me diziam: é uma música que o Chico Buarque assinaria.

Nos últimos anos, a Liesa, no Rio, é alvo de críticas, acusada de falta de organização. Por outro lado, a Liga de São Paulo é elogiada justamente pela organização e promoção dos desfiles. Você acha que os paulistas tem algo a ensinar aos cariocas?
Ensinar não tem. Mas tem coisas que estão trazendo para cá que não acho legal. Fica todo mundo preocupado em fazer um carro alegórico enorme, pagam para atriz vir na frente da bateria… São Paulo não tinha isso. Quando comecei a comentar aqui, eu avisei às meninas: ‘cuidado para não tomarem o lugar de vocês’. E aconteceu. São Paulo copiou a parte ruim do Rio. Na época dos desfiles na [Avenida] Tiradentes era maravilhoso, porque remetia aos desfiles antigos do Rio na [avenida] Presidente Vargas. O que tinha acabado lá estava aqui na Tiradentes.

Romulo Tesi

Romulo Tesi Jornalista carioca, criado na Penha, residente em São Paulo desde 2009 e pai da Malu. Nasci meses antes do Bumbum Paticumbum Prugurundum imperiano de Aluisio Machado, Beto Sem Braço e Rosa Magalhães, em um dia de Vasco x Flamengo, num hospital das Cinco Bocas de Olaria, pertinho da Rua Bariri e a uma caminhada do Cacique de Ramos, do outro lado da linha do trem. Por aí virei gente. E aqui é o meu, o nosso espaço para falar de samba e Carnaval.

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