Paulo Gustavo, Homenagem no Carnaval e Catarse, por Bruno Filippo

Tragédias coletivas não costumam ter rostos universais, sobretudo na dimensão de pandemias que roubam a vida de milhões de pessoas ao redor do mundo. É difícil encontrar uma feição, em meio a tantas vítimas, que resuma o misto de dor, impotência, fraqueza da dimensão humana – embora muitas pessoas conhecidas e famosas tenham sido levados pela pandemia. No Brasil da Covid-19, desde a noite de 4 de maio de 2021 a pandemia parece haver ganhado uma fisionomia facial que, se não englobou por completo o que estamos a viver, ao menos conseguiu resumi-lo ao canalizar tristezas e esperanças: o ator Paulo Gustavo, vítima do vírus ao 42 anos, depois de mais de um mês internado, no auge de uma carreira que aspirava a mais ascensão, com grande possibilidade de êxito. É o tipo de comoção nacional amplificada pelas redes sociais; mobiliza um país e deixa pouca margem para críticas.

Seu corpo acabara de ser cremado quando a escola de samba São Clemente, do Grupo Especial do Rio de Janeiro, anunciou que mudara o enredo para o carnaval incerto carnaval de 2022. Será uma homenagem a Paulo Gustavo, que desfilou pela escola no carnaval de 2012. As reações em rede social foram positivas. A São Clemente tem um histórico de enredos calcados no humor e na despretensão – a escola nunca foi campeã; e nos últimos anos tem contado com a ajuda do humorista Marcelo Adnet como desfilante, compositor e prestando assessoria na área de criação. Por tudo isso, o trabalho de fugir ao clichê de que Paulo Gustavo é a cara da São Clemente é inútil.

Problema não há em que seja Paulo Gustavo seja homenageado na Marquês de Sapucaí; paradoxalmente, são nestes momentos de festa que a catarse completa o ciclo da tragédia, levando o público à emoção e à purgação dos sentimentos. Assim também acontecerá a Viradouro, atual campeã, que antes da pandemia anunciou o enredo “Não há tristeza que possa suportar tanta alegria”. A palavra tragédia hoje ganhou significado de desastre, catástrofes naturais, acidentes graves; no carnaval Paulo Gustavo lhe dará outro sentido, mais antigo.

No teatro grego a tragédia, em oposição à comédia – as duas máscaras do teatro -, era vista pelo filósofo Aristóteles como gênero superior, pois ao fim do espetáculo a catarse faria o povo elevar-se emocional e culturalmente, purgando seus sentimentos. Na tragédia há um conflito que envolve diversas questões – escolhas morais, atitude existencial, disputas de poder – nas quais as personagens estão enredadas. O desfecho é – com o perdão da redundância – sempre trágico: o herói morre no fim, esse é o seu destino. O herói trágico está destinado a morrer; mas morre lutando contra o destino, cuja força lhe é mais forte, porém assim mesmo luta com as forças humanas, o que lhe confere a simpatia do público. Com a morte do herói, tem-se a catarse, em que o público compreende o sentido da história a aprende com ela.

Paulo Gustavo é um herói? À luz da tragédia grega, transportando-a livremente para os dias de hoje ou, sim: um homem dotado de talento nato e raro para o humor, que contribuiu para renovar no Brasil. Conseguiu ficar muito rico com o seu trabalho; jovem, casou-se e teve duas lindas crianças. Tinha um futuro brilhante pela frente: estava prestes a iniciar a internacionalização da carreira. Internado em hospital caro e luxuoso por tantos dias, lutou contra a doença, contra o sofrimento, contra a morte precoce– e sua luta foi acompanhada por todo o país, por intermédio dos meios de comunicação. Descobriu-se que era dado à filantropia e ajudava amigos que pararam de trabalhar na pandemia. Tantas virtudes não contiveram o destino – ele morreu. Era um herói trágico.

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O bombeiro que salva vidas, o policial que enfrenta bandidos, médicos e enfermeiros na linha de frente do atendimento das vítimas da Covid-19, o homem comum que sacrifica a própria vida para salvar a de outros, também são heróis – mas heróis épicos, oriundos da poesia épica, guerreiros capazes de façanhas para atingir um objetivo, e é daí que se originaram os super-heróis das histórias em quadrinhos e dos filmes. Aqui, neste pequeno ensaio, não há rivalidade. Importante lembrar que essas classificações são clássicas, e hoje não obedecem estritamente a elas.

Quando caiu o avião com jogadores da Chapecoense e jornalistas, uma das homenagens foi da torcida do clube, que lotou o estádio no Brasil para cantar e dançar no horário em que o time estaria jogando no exterior. Era puro êxtase, pura catarse. Capaz de fazer milhões de brasileiros gargalhar, Paulo Gustavo encerrará com a máscara da comédia o ciclo de sua tragédia – e no carnaval carioca. Catarse em teatro também significa o momento em que se toca música na peça; e a música será o samba, no festejo carnavalesco mais conhecido do mundo.

Bruno Filippo é jornalista e sociólogo

Romulo Tesi

Romulo Tesi Jornalista carioca, criado na Penha, residente em São Paulo desde 2009 e pai da Malu. Nasci meses antes do Bumbum Paticumbum Prugurundum imperiano de Aluisio Machado, Beto Sem Braço e Rosa Magalhães, em um dia de Vasco x Flamengo, num hospital das Cinco Bocas de Olaria, pertinho da Rua Bariri e a uma caminhada do Cacique de Ramos, do outro lado da linha do trem. Por aí virei gente. E aqui é o meu, o nosso espaço para falar de samba e Carnaval.

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