Quando ela não pisa a passarela: como a Portela retomou antiga tradição e fortaleceu os laços com a comunidade

Noite de ensaio de comunidade na Portela: Carnaval é importante, mas não é tudo – Romulo Tesi/Band

Enquanto caminha pela quadra da Portela, Hellen Mary é recepcionada com afagos e sorrisos. Sorrisos que ela própria ajudou a colocar nos rostos daquelas pessoas, muitas pacientes do consultório odontológico montado na sede da escola de samba, em Madureira. Doutora Hellen é parte de um time portelenses que vem fortalecendo os laços das agremiações com a comunidade, retomando uma tradição quase centenária, em que o desfile é “só” uma parte das atividades, não a única.

“A Portela não é apenas uma escola de samba, não é só Carnaval. Ela tem responsabilidade social, tem atividades o ano inteiro”, diz a dentista, resumindo o que a Águia voltou a ser nos últimos anos, desde 2013, quando o atual grupo político assumiu a agremiação.

Quando não pisa a passarela, a Portela tem mantém uma aquecida atividade social e cultural, colocando em prática um jogo de palavras cunhado pelo historiador Luiz Antônio Simas, sobre a escola que desfila porque existe, e não existe somente para desfilar.

Os projetos portelenses são promovidos basicamente por dois departamentos: o de Projetos Sociais e Cidadania, encabeçado por Hellen, e o Cultural, pilotado por Rogério Rodrigues. A dupla é em boa dose responsável por manter a quadra da rua Clara Nunes movimentada durante todo ano.

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Somente na área social, a Portela já está na sua segunda turma de pré-vestibular, com mais de 70 anos atendidos e resultados concretos – tudo de graça. Alunos do curso, de 17 a 70 anos, conseguiram notas altas na redação do Enem e uma delas passou para Comunicação Social na UFRJ em segundo lugar.

A quadra tem ainda aulas de dança e de jiu-jitsu, todos com professores voluntários. O consultório dentário, joia do departamento de Hellen, já atendeu mais de 700 pessoas.

“Ela mudou minha vida”, diz Jussara Costa, integrante da Harmonia da Portela, paciente de Hellen. Ela conta que, por causa do tratamento contra um câncer, perdeu parte dos dentes, e em alguns casos, chegou a colar a prótese em casa, de forma improvisada.

Jussara (à esq.) e Hellen no consultório odontológico da Portela – Romulo Tesi/Band

“Minha autoestima era muito baixa. Eu não sorria nas fotos, chorava muito. Hoje eu nem gosto de ver as fotos antigas”, diz.

Entre outros pacientes do consultório estão membros da Velha Guarda, incluindo sambistas do porte de Monarco, e passistas, preocupadas em mostrar um belo sorriso enquanto riscam o chão.

O próximo projeto de Hellen é montar uma biblioteca na quadra. A escola já recebeu uma quantidade considerável de livros como doação, suficiente para concretizar mais um sonho portelense.

Para aumentar o acervo, Hellen terá uma oportunidade e tanto em 20 e 21 de abril, quando a Portela promoverá sua festa literária, a FliPortela.

“Várias editoras estarão aqui”, anima-se Rogério, responsável pelo outro pilar portelense, a área cultural.

Samba o ano inteiro

Além de colaborar no desenvolvimento dos enredos, o Departamento Cultural funciona para guardar as tradições da escola, com atividades que incluem disputadas feijoadas, rodas de samba, exposições, oficinas de audiovisual, vários tipos de eventos e até uma um concurso de sambas de terreiro – ou de meio de ano, algo raro nas escolas de samba atualmente, que rendeu um CD.

Rogério Rodrigues, diretor Cultural da Portela – Lisandra Arantes/Divulgação

“Nós temos uma ideia muita clara sobre o papel da escola de samba para sua comunidade. O grêmio recreativo está a serviço da sociedade, como centro catalisador de uma vida comunitária. A Portela foi fundada para servir como centro comunitário, muitos pelas carências: longe do Centro, sem teatro, cinema…”, diz Rogério.

“A imagem do maior espetáculo da terra acabou sufocando essa cultura da escola de samba, que é essencialmente um grêmio recreativo”, resume Rogério, que participou dos primeiros movimentos da atual gestão. Ao assumirem, por exemplo, trataram de ouvir a comunidade antes de agir.

“Aplicamos questionários na primeira Feijoada após a vitória nas eleições e identificamos que havia uma demanda reprimida por exposições e exibições de filmes. Depois fomos agregando outros projetos, como o Portela de Asas Abertas [originalmente uma roda de samba com convidados, mas que cresceu e agrega outras atividades atualmente]. Com isso, um público que estava afastado voltou a frequentar a escola”, comemora Rogério.

Para manter essa gama de projetos, a Portela gasta muito, quase nada, do próprio bolso, contando com a ajuda de rede de parceiros e doadores.

“Eu sou pidona mesmo”, diz Hellen, que solicita ajuda de amigos dentistas para conseguir materiais odontológicos e quimonos.

Evento da cultura ou cultura do evento?

O pré-vestibular é tocado em parceria com o Ao Cubo e o ProEnem (instituições de ensino), e professores voluntários – entre eles os jornalistas Aydano André Mota e Flávia Oliveira, e o historiador Luiz Antônio Simas, autor da frase que virou lema da atual gestão.

“Acho existe uma grande diferença entre você pensar escola de samba e Carnaval a partir da cultura do evento ou a partir de um evento da cultura”, diz Simas, lançando mais um jogo de palavras.

Portela 2018 – Gabriel Monteiro/Riotur

“Quando você pensa escola de samba a partir da cultura do evento, você considera que aquilo é simplesmente um espetáculo visual, que acontece na avenida, e acabou. Agora, evento da cultura, não – ressalta a ideia que desfile é um dos aspectos que escolas tinham quando elas foram criadas”, completa o historiador, defensor da ideia que as agremiações devem olhar mais para si e suas comunidades.

“As escolas foram criadas como instituições gregárias, de sociabilidade, de construção de identidade, inclusive para criar redes de proteção social. A gente tem que pensar que as escolas foram criadas fundamentalmente por descendentes de pessoas que foram escravizadas, na virada dos anos 20 para os anos 30, quando o fim da escravidão era muito recente. O que significa isso: as escolas de samba são agremiações que só conseguiram se fortalecer porque são agremiações comunitárias. Elas estão ligadas à ideia de pertencimento a território, por exemplo”, explica, para quem o divórcio das agremiações com suas tradições contribuiu para a crise de algumas delas.

“Portela hoje tem uma centralidade não só em Madureira, mas no Rio de Janeiro. O Carnaval está em crise – a Portela não está. As escolas de samba que se preocupam exclusivamente com desfile e Carnaval estão em crise. As que vivenciam o território, abre as portas da sua quadra como um equipamento cultural, estão fortes. O caso notório é da Portela”, diz Simas.

“Aqui deu frutos”

Postado no centro da quadra, com o semblante sereno, ainda que indisfarçavelmente cansado, o presidente portelense, Luís Carlos Magalhães, acompanha os últimos momentos do ensaio da escola para o Carnaval 2019.

“Isso de ser escola só para desfilar é uma deformação dos tempos. A riqueza do samba, na minha opinião, é muito mais dos sambas que não são do Carnaval”, defende Magalhães, ex-diretor do Departamento Cultural.

Presidente da Portela, Luis Carlos Magalhães, e Monarco com o troféu do título de 2017 – Foto: Portela

“A Portela é um caso super didático. Ficou anos sem ganhar título, sem ter uma sequência de sambas formidáveis, mas ganhou notoriedade no Brasil inteiro por seus sambas de terreiro. Não por acaso a Velha Guarda se tornou grupo musical que é referência no país inteiro. A sociabilidade das escolas sempre existiu, mas o Carnaval foi tomando conta disso tudo, assim como os samba-enredo, depois os carnavalescos… Mas a Portela não deixa acontecer isso”, analisa.

Magalhães aponta para a parede da quadra onde se lê a frase de Candeia – “Aqui deu frutos a semente que a Velha Guarda plantou” – faz um discurso que sintetiza o sentimento portelense.

“A Portela é isso, é Oswaldo Cruz e Madureira. Aí no Carnaval a gente vai para a Sapucaí, e quer ser campeão. Porque o povo da Portela quer ser campeão. Já foi tantas vezes… Está mal acostumado”.

Romulo Tesi

Romulo Tesi Jornalista carioca, criado na Penha, residente em São Paulo desde 2009 e pai da Malu. Nasci meses antes do Bumbum Paticumbum Prugurundum imperiano de Aluisio Machado, Beto Sem Braço e Rosa Magalhães, em um dia de Vasco x Flamengo, num hospital das Cinco Bocas de Olaria, pertinho da Rua Bariri e a uma caminhada do Cacique de Ramos, do outro lado da linha do trem. Por aí virei gente. E aqui é o meu, o nosso espaço para falar de samba e Carnaval.

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