O Rio de Janeiro será castigado com um terrível dilúvio, que deixará a cidade completamente inundada. Só se salvarão os que estiverem com Santa Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz no Recolhimento de Nossa Senhora do Parto. O prédio se transformará em uma arca, em que todos os devotos a bordo viajarão para Portugal, onde Rosa se casará com D. Sebastião, o rei desaparecido no século 16, durante a batalha contra os mouros em Alcácer-Quibir, no Marrocos. Do matrimônio nascerá o novo redentor.
Essa foi uma das profecias de Rosa Egipcíaca, personagem central do enredo da Viradouro para o Carnaval 2023 – para a alegria do biógrafo da ex-escravizada, ex-prostituta, considerada santa e primeira negra a escrever um livro no Brasil, no século 18.
“É uma grande alegria para o historiador ver um personagem que era esquecido, que você praticamente tirou do anonimato, da poeira dos arquivos, ser objeto de tanta divulgação”, diz o etno-historiador Luiz Mott, 76 anos, doutor em Antropologia e professor titular aposentado da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Em papo com o Setor 1, Mott revelou detalhes da vida de Rosa Egipcíaca, desde a chegada ao Rio de Janeiro, vinda da África, em 1725, com seis anos de idade, passando pela viagem a pé para Minas Gerais, os estupros, açoites, visões do menino Jesus, fugas e a santificação extraoficial, apoiada pelos franciscanos e um padre exorcista de perfil curioso, conhecido como Xota Diabos.
Mott é autor do único livro de história sobre a santa africana: “Rosa Egipcíaca: Uma Santa Africana no Brasil”, de 1993 (Bertrand). Esgotado das prateleiras, e com preços que podem chegar a R$ 1.200 nos sebos, a obra ganhará nova edição pela Companhia das Letras, com lançamento previsto, a princípio, para 2024. O historiador, porém, torce por uma antecipação do prazo, para coincidir com o Carnaval do próximo ano e o desfile da Viradouro.
Veja como foi o papo com Luiz Mott sobre Rosa Egipcíaca:
A primeira reação de muitas pessoas nas redes sociais com o anúncio do enredo da Viradouro sobre a Rosa Egipcíaca foi de desconhecimento. Apesar de uma história tão interessante, ela é uma personagem que está escondida. A que você atribui isso? E como descobriu a Rosa?
Na década de 1980 eu estava fazendo pesquisas na Torre do Tombo [em Portugal], e o acesso aos arquivos era extremamente rudimentar, a partir da sentença no auto de fé. Acontece que ela não foi para um auto de fé. Ela morreu, depois é que eu descobri, na inquisição. Não foi degredada e nem queimada – o crime dela não era suficiente para esse tipo de castigo. Como ela não estava na lista dos autos de fé, nunca tinham descoberto. E daí eu vi que era um processo extremamente interessante, uma vida rocambolesca, que rendeu o livro de 750 páginas. A Rosa ainda é, porém, citada em artigos, em livros sobre a vida religiosa ou a escravidão no Brasil. Já houve alguma tentativa de divulgação. Um diretor de cinema chegou a afirmar que faria um filme. Há cerca de 10 anos uma escola de samba pensou em fazer um enredo, mas não levou a ideia adiante. Assim ela ficou de certa forma desconhecida, apesar de uma história tão impressionante, e foi divulgada mais nos meios acadêmicos.
Quem foi a Rosa?
A Rosa era da etnia coura – ou courana -, e veio menina, com seis anos, da Costa do Benin para o Rio de Janeiro. Aos 12 anos ela foi deflorada e depois vendida para Mariana, em Minas Gerais. Lá ela passa uns vinte anos como prostituta, até que, acometida por muitas dores, ela atribuiu isso a um espírito. Vende o que tinha acumulado com a prostituição e se torna uma beata, varrendo as igrejas e realizando outras atividades. Ela então encontra um padre português, exorcista, conhecido como Xota Diabos, que promete tirar o demônio da Rosa. Esse padre é que vai cumprir o papel de confessor, como acontece com as grandes santas místicas – há sempre um padre por trás. Ela é então investigada pelo bispo de Mariana e é considerada uma embusteira e mandada para o açoite no Pelourinho, algo raro – não encontrei outra mulher açoitada. Ela apanhou tanto que ficou com o lado direito paralisado.
Rosa e o padre fogem para o Rio de Janeiro, onde são muito bem acolhidos pelo superior do convento de Santo Antônio, dos franciscanos, no Largo da Carioca. Depois ela consegue, com o apoio de padres amigos de Minas Gerais e do bispo construir o recolhimento de Nossa Senhora do Parto, no Rio, voltado para mulheres que não tinham onde viver e prostitutas, principalmente, mas também para jovens virgens que viviam como se fossem freiras, mas sem votos religiosos. E daí no recolhimento ela se torna uma santa para as pessoas. [O recolhimento sofreu um incêndio em 1789]
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Pelo o que se sabe, ela teve influência na sociedade durante algum tempo em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, ganhando certo destaque. Como ela vai de figura influente até ser perseguida e presa?
A Rosa era uma megalomaníaca, na verdade. Ela dizia ser esposa do Espírito Santo e fez uma previsão de que o Rio de Janeiro seria inundado. Isso logo depois do terremoto de Lisboa, em 1755. Na época a colônia ficou em pavorosa, porque as pessoas concluíram: se Deus tinha castigado a metrópole, aconteceria a mesma coisa no Brasil. Ela profetizou um dilúvio, em que o recolhimento se transformaria em uma arca que a levaria junto com as seguidoras para Portugal. Lá ela se casaria com Dom Sebastião, que tinha desaparecido no Marrocos no século 16, e que dessa união nasceria o novo redentor.
Acredito que ela tenha sido denunciada e presa pelos abusos, e não pela questão racial, por ter exorbitado no que defendia. Ela contava que tinha o cabelo penteado pelo menino Jesus, que mamava no peito dela, como acontecia com outras santas barrocas.
Ela chegou a ser tratada como santa de verdade pelos fiéis. Como se dava essa devoção?
No recolhimento ela era muito autoritária, uma tirana. Sobretudo com as mais relutantes, aquelas que questionavam. Essas eram particularmente perseguidas. A Rosa também era muito piedosa, jejuava, rezava muito, e criou uma forte idolatria em torne dela. O Xota Diabos, por exemplo, carregava no pescoço um dente dela como relíquia. As devotas se ajoelhavam no chão para beijar os pés da Rosa e colhiam a saliva dela para fazer uma espécie de hóstia, que era vendida no recolhimento como uma panaceia para curar doenças. Mas ao mesmo tempo, quando via alguém conversando na igreja, Rosa gritava, dava escândalo e chegava a agredir algumas mulheres da sociedade. Foi isso que causou a sua prisão, na verdade.
E ela banca a versão sobre as visões, a santidade, as profecias durante o julgamento?
Sim. Presa, Rosa foi enviada para Lisboa em 1762, onde manteve sua posição. Ela sempre afirmou que era tudo verdade, que as visões aconteciam de fato. Já o padre, enviado também para o julgamento em Lisboa, negou tudo. Ele se defendeu dizendo que seguiu as autoridades, os franciscanos, e que era um sacerdote com pouca formação teológica. Ainda assim, ele foi enviado para o exílio no Algarve.
Na época do lançamento do livro, em 1993, ainda não se sabia o que acontecera a ela depois do julgamento em Lisboa. Hoje já se sabe?
O processo, a princípio, terminava inconcluso. Sendo que, dos mais de mil processos que eu pesquisei na Torre do Tombo, esse era um dos únicos que não tinha conclusão. Até que alguém descobriu o atestado de óbito dela. Normalmente, em casos menos graves como esse, ela seria degredada por cinco anos para o Algarve, mas ela permaneceu em Lisboa, trabalhando na cozinha, usada como mão-de-obra escrava. Até que um dia ela foi encontrada morta, tendo falecido de morte natural, com afirma o atestado do médico. [Os detalhes sobre a morte de Rosa Egipcíaca estarão na nova edição do livro de Luiz Mott]
Por que é importante jogar luz sobre a Rosa Egipcíaca?
A importância de falar de Rosa é mostrar as brechas do sistema escravista. Era possível alguns poucos, vindo criança da África, completamente abandonados, conseguirem alguma relevância e, no caso da Rosa, se tornar a maior santa na visão dos seus devotos. Segundo, mostrar que nem toda afrodescendente ou africanos no Brasil eram do candomblé ou de religião de matriz africana. Houve conversão verdadeira de escravizados. Alguns encontraram no catolicismo na África. Eu escrevi um trabalho, que já que rendeu tese de doutorado, sobre uma mãe de santo em Sabará (MG), na mesma época da Rosa, que já veio batizada da África.
Outro aspecto muito importante é mostrar a crueldade da escravidão. Não há nenhuma biografia de alguma africana do século 18 com tantas minúcias. A Rosa reconstituiu a vida dela duas vezes: uma na investigação feita pelo bispo do Rio de Janeiro, quando conta toda a vida; depois em Lisboa, na inquisição, quando acrescenta alguns episódios. E tem as mais de 50 cartas que ela escreveu ou ditou. Ela conta, por exemplo, de quando foi deflorada e da saga, ainda menina, da viagem a pé do Rio de Janeiro até Minas Gerais, subindo a Serra da Mantiqueira. Ela narra os açoites e a vida na prostituição. Para se ter ideia, numa propriedade com cerca de 100 homens, ela era a única prostituta. Um médico levanta a hipótese, pelos sintomas que ela cita, de que as visões poderiam ser até fruto de uma fase adiantada da sífilis, que ela poderia ter contraído.
Então, sobre a questão religiosa, a Rosa não se enquadra num rol de personagens seguidores de cultos de matriz africana, mas há traços de certa mistura, certo?
Essa sua observação é procedente. No meu trabalho sobre a Luzia Pinta, mãe de santo que foi também enviada para a inquisição e degredada para o Algarve, eu descobri a descrição mais minuciosa de um candomblé, igualzinho a um candomblé da Bahia. Esse era um ritual de protocandomblé, que se chamava Acotundá. E eu descobri um outro culto, também na mesma época em Minas Gerais, que seria a raiz da umbanda, com um sincretismo muito presente. Há registros de que a Rosa dançava uma espécie de umbigada segurando uma imagem de santo, dentro da capela do recolhimento. E ela recebia um espírito que chamava de Afecto, que a fazia cuidar dos templos e que repreendia as pessoas. Conversando com uma africanista, descobri que esse nome lembra muito o Avrektu, entidade de origem nigeriana, um misto de mensageiro do além e espírito protetor. Mas são poucos elementos africanos que aparecem na ritualística da Rosa. Ela era uma santa católica.
Fala-se que havia na época uma espécie de política de estado, de promover santos negros, como São Benedito. A Rosa entra nessa história de alguma forma? Até os franciscanos se afeiçoam a ela.
A Rosa não tinha devoção por santo negros. Ela serviu de modelo de santidade para converter e a população negra no Brasil, que era muito populosa. A Igreja investiu nisso. O prior franciscano foi quem mais a estimulou, que mandou que ela escrevesse a vida e que construiu no convento uma capela com a visão que ela teve dos cinco corações. Ele acreditou piamente, e a chamava de “A Flor do Rio de Janeiro”, porque queria fazer dela a grande isca para tornar o convento dele numa nova Santiago de Compostela, um local de peregrinação. Eu encontrei testamentos em Minas Gerais de ex-escravizadas que deixaram muito de seus patrimônios de joias para celebrar centenas de missas na igreja de Santo Antônio do Largo da Carioca. Ter uma santa em casa era garantia de muito dinheiro, muita esmola, e por isso investiram ela.
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E como era a relação com o padre Francisco Gonçalves Lopes, o Xota Diabos?
Ela e o padre Xota Diabos podem ter sido amantes, como se falava na época. Há uma história que, numa noite numa estalagem, ela sugeriu, como se estivesse possuída, que os dois deveriam fazer sexo para salvar as pessoas do inferno. Ela disse algo como: ‘o povo todo diz que nós somos amantes, e eles vão para o inferno porque tão caluniando. Vamos transar, assim esse povo não vai para o inferno, já que estariam falando a verdade”.
Do livro que ela escreveu, “Sagrada teologia do amor de Deus luz brilhante das almas peregrinas”, sobrou muita coisa?
Não, muito pouco. Quando ela anunciou o tal dilúvio que cairia no Rio de Janeiro, muitos fiéis se reuniram dentro do recolhimento e ficaram esperando. A Rosa subiu ao mirante da igreja no Largo da Carioca e anunciou, como não houve o dilúvio, que Deus havia perdoado. Ela sempre tinha uma resposta. Isso causou um grande rebuliço na cidade, e correu a notícia de que o bispo mandaria prender a Rosa e o padre.
Eles então destruíram as provas e queimaram o livro. Só que queimar 250 páginas de um papel grosso do século 18 provoca muito cheiro. Eles acendem inclusive incenso para tentar disfarçar. Havia também um quadro pintado numa chapa de cobre, que retratava a Rosa com todos os símbolos da santidade, vestida de freira, com anjos, etc, que também desapareceu. Não sei se destruíram, borraram, queimaram, derreteram ou, quem sabe, está em algum antiquário, com um colecionador. A partir dessa descrição minuciosa, pedi a um pintor boliviano, o Galindo, que mora em Feira de Santana (BA), uma reprodução belíssima.
Esse é o único retrato dela?
Sim, inspirado nas informações disponíveis. Ela está vestida com o hábito franciscano, com rosário, com o cordão de São Francisco. Tem chagas e uma pena na mão, por ser escritora.
A Rosa foi tratada como santa para além daquele universo do recolhimento e dos franciscanos?
Sim. Ainda em Minas Gerais, o dono da Rosa se ajoelhava para beijar os pés dela. Depois ele chegou a mandar as filhas para o recolhimento – três virgens, donzelas, que viveram ao lado de negras e ex-prostitutas. Um padre de Minas, devoto dela, foi quem deu o dinheiro para ajudar na construção do recolhimento no Rio de Janeiro. Um capuchinho italiano prometeu que conseguiria publicar uma oração com o nome dela. Contando com o padre Xota Diabos e o pior do convento dos franciscanos, são pelo menos quatro sacerdotes que foram devotos dela. O erro dela, digamos assim, foi exagerar: dizer que nenhuma alma ia para céu sem passar por ela, que era mãe de misericórdia, que Santa Tereza d’Ávila era uma menina de recados dela, que não tinha nenhum santo no céu como ela. Ela foi condenada não por racismo, mas por ter exorbitado.
Como se dá a investigação sobre as possessões em Mariana (MG), que resulta no açoite?
O bispo mandou uma junta de teólogos, padres e cônegos e a levaram para a igreja. Fizeram uma série de perguntas, e havia um ritual para saber se ela era uma pessoa possessa, que incluía saber latim. Acreditava-se também que os possessos do demônio aguentavam dores. Daí pegaram uma vela acesa e colocaram embaixo da língua dela durante o tempo da reza de uma Ave Maria e uma Salve Rainha. Eu fiz o teste: peguei um pedaço de carne e botei uma vela acesa durante esse tempo. Ficou um cheiro insuportável, e a carne, carbonizada. No final o povo começou a gritar “feiticeira!”, e daí ela foi açoitada no pelourinho em Mariana.
Para o senhor, como biógrafo, o que significa a Rosa Egipcíaca virar enredo da Viradouro?
Fico feliz. Sei que a Viradouro ganhou o Carnaval em 2020 falando das Ganhadeiras de Itapuã. É uma grande alegria para o historiador ver um personagem que era esquecido, que você praticamente tirou do anonimato, da poeira dos arquivos, ser objeto de tanta divulgação.
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Reportagem maravilhosa, ultra fiel ao meu depoimento. belas ilustrações. parabens.
Interessante.