Como um ritual de iniciação do Candomblé inspirou o refrão mais ‘chiclete’ do Carnaval 2023

Bolo e doces servidos na quitanda de erê – Acervo da ialorixá Carol de Ogum

A obra da parceria de Igor Leal para a disputa da Grande Rio estava quase pronta, quando o compositor sentiu falta de alguma coisa na música. Virou para o parceiro Arlindinho e decretou:

Irmão, a gente tem que botar macumba nesse samba

Começou então a nascer o que talvez seja o refrão mais pegajoso – ou chiclete, para ficar na prateleira dos doces – da safra 2023 do Carnaval do Rio de Janeiro: o aclamado “Quitandinha de Erê”, que a Grande Rio cantará na Marquês de Sapucaí para tentar o bicampeonato.

Veja a ordem dos desfiles do Carnaval 2023

E a motivação para dar um toque religioso na trilha do desfile foi o próprio homenageado no enredo, Zeca Pagodinho. Por causa devoção do sambista a Cosme e Damião, os compositores decidiram se inspirar nas cantigas de erê, entidade do candomblé associada na religiosidade popular brasileira aos santos católicos festejados no dia 27 de setembro.

Como solução, Arlindinho buscou algumas referências, e a dupla misturou com a letra de “Seu Balancê”, sucesso na voz de Zeca. Até que saíram as primeiras tentativas (áudio abaixo) antes da versão definitiva do refrão do meio:

Ê, que bela quitanda, quitandinha de erê
Seu balançê tem quitandinha de erê

Refrão do meio do samba da Grande Rio de 2023

Quase não teve quitandinha

Deu certo. Mas não sem polêmica.

“Só eu e Arlindinho queríamos o ‘quitandinha’. O resto da parceria era contra”, entrega Leal. Motivo: não estava na sinopse.

Aos poucos, a dupla foi vencendo a resistência. “Depois que ouviram, Diogo [Nogueira] e o [Gustavo] Clarão se convenceram. Myngal e Mingauzinho ainda não queriam. Mas quando o samba explodiu na quadra, até eles mudaram de ideia”, narra o compositor, campeão em 2022 com a Grande Rio.

Parceria campeã da Grande Rio: Igor Leal em primeiro plano – Acervo pessoal

O sucesso na quadra e nas redes sociais foi quase instantâneo. Na concorrida final em Duque de Caxias, a aclamação por parte dos quitandinhers foi tanta que, defende Leal, a vitória era certa.

“A diretoria da escola tinha que ser muito doida pra não dar o samba pra gente”, declara.

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“A escola inteira queria o samba. Diretores de harmonia, comunidade… Tanto que a gente não levou um ônibus [com torcida] sequer na disputa inteira, e mesmo assim a torcida pelo samba era a maior da quadra, porque a comunidade de Caxias abraçou”, completa Leal, que admite: na cúpula da agremiação, o “Quitandinha” não era unanimidade.

Alteração da consciência

Zeca Pagodinho em foto de arquivo, exibindo a tatuagem de Cosme e Damião – Instagram Zeca Pagodinho

E assim a Grande Rio vai desfilar com um samba que cita, em um dos seus trechos mais doces, um momento especial entre os ritos do candomblé.

A quitanda de erê marca uma fase importante para os iniciados na religião, como explica o professor e escritor Luiz Antonio Simas.

“Nos rituais do candomblé, tanto Ketu, Angola e Jeje, a pessoa passa por ritos de iniciação que a colocam em conexão direta com o sagrado. No final dos ritos secretos, tem a chamada saída do santo, quando a pessoa é apresentada publicamente, já paramentada, com o orixá incorporado, à comunidade. No dia seguinte ocorre a quitanda de erê, ou de vungi”, diz Simas.

“O erê no Candomblé é um estado de alteração de consciência, não é o orixá propriamente que toma a pessoa. Ela fica em um estado de alteração de consciência e aflora um lado infantil: o erê”, explica o professor. (Veja ao fim do texto como é a quitanda de erê, explicada por uma ialorixá)

“O iniciado é preparado para um mundo novo, como se estivesse nascendo novamente”, arremata Leal.

Por falar em criança, a Grande Rio terá que ajudar a esquentar a pista da Sapucaí no domingo, dia 19 de fevereiro. Isso porque é a escola será a segunda a desfilar no primeiro dia do Grupo Especial, posição considerada ingrata na cultura do Carnaval.

“Tocando direto” na casa do Zeca

O samba, aponta Leal, é um dos trunfos para a conquista do segundo título da escola.

“Tinha que ser um samba alegre, pra frente. Eu acho inclusive melhor que o do ano passado [sobre Exu]”, diz Leal, que arrisca alto: “pode ser um novo ‘Explode Coração'”, em referência ao clássico absoluto “Peguei um Ita no Norte”, do Salgueiro campeão de 1993.

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E o homenageado? Segundo o compositor, Zeca mais do que aprovou o samba. Leal diz que ouviu de um vizinho, parente do sambista, que o homem gostou. “Ele disse: ‘o samba tá tocando direto lá'”.


Quitanda de Erê

A ialorixá Carol de Ogum explica o que é o ritual citado no samba da Grande Rio de 2023

Carol de Ogum – Acervo pessoal

O que é um erê?
Erê é o espírito da criança mensageira do orixá. Pode ser uma ancestral para alguns e, para outros, a energia da criança. A criança é que cuida da nossa alegria, cura nossas mazelas, que nos faz ter esperança e tem o poder de entrar em todos os lugares e também resolver todos os problemas mais do que os adultos. Erê significa brincadeira, alegria.

O que é a quitanda de erê?
Ritual com frutas que acontece no fim da iniciação do muzenza. Muzenza é o iniciado no mistério do inquice dentro do candomblé da nação Angola.

Como acontece a quitanda de erê?
Um dia depois da iniciação, os iniciados saem em fila dos seus quartinhos no terreiro e fazem um círculo, dançando com as frutas em seus cestos e tabuleiros. Apresentados à comunidade, eles [em estado de consciência infantil] dançam até a hora que os ogãs param de tocar. Então abrem a esteira onde depositam todas as frutas. Os iniciados ficam atrás do tabuleiro e vendem as frutas. Os presentes, então, colocam [doam] um valor simbólico, que serve para ajudar na manutenção do terreiro. Pode também ter bolos, doces e algumas comidas características como acarajé e caruru.

Por que as frutas?
É pelo simbolismo. As frutas simbolizam fertilidade, alimentação, colheita e continuação.

Ouça o samba da Grande Rio de 2023

Romulo Tesi

Romulo Tesi Jornalista carioca, criado na Penha, residente em São Paulo desde 2009 e pai da Malu. Nasci meses antes do Bumbum Paticumbum Prugurundum imperiano de Aluisio Machado, Beto Sem Braço e Rosa Magalhães, em um dia de Vasco x Flamengo, num hospital das Cinco Bocas de Olaria, pertinho da Rua Bariri e a uma caminhada do Cacique de Ramos, do outro lado da linha do trem. Por aí virei gente. E aqui é o meu, o nosso espaço para falar de samba e Carnaval.

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