‘Sem desfile, liga não tem ideia do que fazer’, diz pesquisador do Carnaval

Sociólogo Mauro Cordeiro afirma em entrevista que escolas e Liesa precisam entender que são “mais do que desfile”s

Sambódromo da Marquês de Sapucaí em 2019 – Richard Santos/Riotur

“Algumas escolas de samba desfilam porque existem. Outras, só existem porque desfilam”. A frase do historiador Luiz Antônio Simas, cunhada muito antes de se ouvir falar em coronavírus, voltou a ser lembrada em tempos pandêmicos. Com o Carnaval de 2021 cancelado no Rio de Janeiro por causa do avanço da Covid-19, a Liesa e as escolas de samba se deparam com um desafio inédito: o que fazer sem as apresentações na Marquês de Sapucaí?

“Como não haverá desfile, a liga não tem ideia do que fazer”, diz ao Setor 1 o sociólogo Mauro Cordeiro, que pesquisou a relação da Liesa com o poder público para a dissertação de mestrado pela PUC-Rio, “Carnaval e poderes no Rio de Janeiro: escolas de samba entre a Liesa e Crivella”. Ele também é professor do Pensamento Social do Samba, que fundou com o antropólogo Vinícius Natal e realiza cursos periódicos – o próximo será em fevereiro (clique aqui para saber mais).

Cordeiro enxerga a entidade máxima do Carnaval do Rio como uma liga de desfiles, não como uma liga de escolas. E esse modelo acabou em xeque agora. Com muitas receitas ligadas à apresentação oficial no Sambódromo, como direitos de transmissão televisiva, bilheteria e subvenção pública, a ausência de desfiles jogou escolas e liga na incerteza sobre o que fazer em 2021.

Mauro Cordeiro, sociólogo
Mauro Cordeiro – Arquivo pessoal

Para Cordeiro, é hora de diversificar mais a atuação. “Liesa e escolas precisam entender que são mais do que desfile”, diz o pesquisador, para quem a maior preocupação deve ser a manutenção dos profissionais do Carnaval, tradicionalmente desamparados de leis trabalhistas, com relações empregatícias frágeis, sem qualquer formalização ou representação sindical e que muitas vezes são vítimas de calote.

“Isso desde o ano passado”, afirma Cordeiro, para pontuar que o socorro já está atrasado.

Leia abaixo a entrevista:

Como se dá a criação da Liesa, a relação dela com o poder público e o que a liga trouxe de novo?
Quando defendi a dissertação, o [prefeito Marcelo] Crivella estava progressivamente cortando as verbas, até que em 2020 foi a primeira vez desde 1935 que não teve nenhum apoio da prefeitura. Pelo contrário: pela primeira vez a prefeitura usou dinheiro para fazer campanha contra as escolas de samba, alegando que quem lucrava eram as empresas e a TV. Acabei tendo que estudar de forma mais detalhada a própria Liesa como entidade. Diferente de outras entidades anteriores, a Liesa não surge para representar todas as escolas de samba da cidade. A Liesa vira um modelo diferente, que é de o de representar as escolas de acordo com um determinado grupo de agremiações. Não existe filiação à liga. As escolas são filiadas a uma entidade que não que representa coletivamente os interesses delas. Elas participam ou não de uma dessa entidade desde que elas estejam em um grupo de desfile. O discurso era fazer um investimento na profissionalização da festa. Acaba acarretando numa privatização dessa festa, que historicamente era organizada pelo poder público.

O que muda com a Liesa?
A Liesa consolida um processo, por um lado de espetacularização da festa, que passa a ser pensada cada vez mais por essa entidade como um atrativo turístico, comercial, empresarial. As escolas não tinham participação nessa festa. Por muitos anos lutaram para receber pela venda da transmissão televisiva. Com a Liesa, as escolas passaram a ter maior participação no lucro da festa. Em contrapartida, essa empresa passa a gerir e controlar os desfiles. O papel da Riotur, por exemplo, é cada vez mais reduzido em relação ao da Liesa. Há todo um discurso de modernização, profissionalismo, mas quando olhamos de forma mais atenta para a estrutura do Carnaval, a gente vai ver que o profissionalismo desse Carnaval é uma grande falácia, porque as relações trabalhistas são informais na sua grande maioria. A gente tem um histórico recorrente de atrasos de pagamento, de calotes. Há toda uma cadeia produtiva de Carnaval, e agora essas pessoas precisam de políticas públicas para seu sustento. Esse Carnaval, vendido como o maior show da terra, não tem uma estrutura profissional.

A grande questão é como esse Carnaval espetacular, essas instituições tão importantes como as escolas, produzem essa festa apesar de toda uma estrutura que não é profissional. Quem conhece sabe que esses trabalhadores muitas vezes convivem com condições insalubres, sem uma estrutura que garanta direitos trabalhistas, por exemplo.

A situação dos profissionais ficou bem exposta durante a pandemia, com notícias de demissões por causa da não realização dos desfiles. Qual seria o papel da Liesa num momento de crise?
Desde que começou o isolamento, você não teve da entidade organizadora nenhum discurso, nenhuma pauta, construção política, nenhuma busca dos agentes políticos para construir condições de subsistência para essas pessoas. A liga estava pensando em realizar ou não o desfile, ou seja, se tiver a gente consegue manter essa cadeia produtiva. Mas desde o primeiro momento havia a possibilidade de não haver desfile. Em março a gente chega a um ano de pandemia no Brasil. A liga não foi capaz de construir nenhuma pauta pública para sensibilizar os agentes políticos ou buscar sustento para seus trabalhadores, que garantem esse espetáculo que ela vende. Todas as iniciativas de ajuda que a gente conhece para os trabalhadores do Carnaval foram organizadas por sambistas, como Barracão Solidário e Ritmo Solidário.

Cidade do Samba
Cidade do Samba, em foto de arquivo – Divulgação

A liga não é uma entidade que representa as escolas de samba. Ela não senta para entender quais são as necessidades das escolas, mas as necessidades do desfile. O desfile é o motor principal da existência dessa liga. Como não haverá desfile, a liga não tem ideia do que fazer. A Liesa não busca uma alternativa para além da produção desse espetáculo. A grande questão é que, num momento como esse, os profissionais das escolas estão completamente desamparados. Isso desde o ano passado. Uma quantidade gigantesca de profissionais que não tem sequer uma entidade representativa. Tem a Lei Aldir Blanc para profissionais do setor, que poderiam receber em determinadas condições, mas a gente não teve o papel dessa liga ou das escolas de entender que seus profissionais são profissionais da cultura, e que poderiam pleitear esse auxílio. Sem desfile, os trabalhadores da cadeia produtiva do Carnaval carioca não têm uma liderança que vai lutar pelos seus interesses. Parece que a única condição para a manutenção de sustento desses profissionais é a realização do desfile.

Grande parte das atividades e receitas estão amarradas ao desfile. É isso?
A Liesa e as escolas precisam entender que elas são mais do que desfile. O tempo todo o discurso é que existe uma cadeia produtiva, que são muito profissionais, de que é importante para economia da cidade, e num momento como esse elas precisam fazer valer o próprio discurso e buscar condições políticas para sua base social.

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Não há sequer um sindicato que os represente?
Não tem. Estamos falando de uma relação profissional desregulada, informal, muito precarizada. Tem gente que recebe por meio de um acerto de boca. O calote é a única instituição que funciona e está regulada, é recorrente, acontece todo o ano em quase todas as escolas. É um mercado que dificulta a organização desses trabalhadores. Muitos não veem os trabalhadores de outro barracão como da mesma classe. Há também a questão do segredo, da desarticulação, do não contato. São afastados uns dos outros. Boa parte desses trabalhadores vem da própria escola, há um componente afetivo. Além disso, alguns dirigentes das escolas exercem domínio territorial sobre áreas da cidade onde essas pessoas moram. São questões muito sensíveis que vão se somando para construir uma relação trabalhista de nenhuma representação. Talvez a pandemia tenha jogado luz para a fragilidade dessas relações. É uma quantidade gigantesca de artistas, marceneiros, costureiros, artesãos que são explorados e ganham bem menos do que deveriam pela sua arte e não são nem entendidos como artistas.

O poder público pode acabar contribuindo para esse problema ao dar subvenção sem exigir uma contrapartida nesse sentido? É preciso mudar a dinâmica da ajuda governamental e exigir investimento em outas áreas?
Subvenção é verba pública, e todo aquele que recebe verba pública precisa dar publicidade para suas ações. A subvenção precisa existir. Escola de samba é um grande espetáculo, mas também um grande evento histórico, simbólico, cultural e econômico da cidade. É importante que o poder público chegue junto, mas considero que as escolas precisam apresentar outras contrapartidas para além do desfile. Tempos atrás tinha escola que recebia subvenção para o desfile, mas não tinha quadra. A gente defende o tempo todo que escola de samba tenha calendário anual e que são importantes para a cidade porque elas estão em territórios que às vezes são as únicas opções de lazer, onde não tem casa de show, teatro, lona cultural… Essa quadra precisa funcionar. Escolas de samba atuam na transmissão de saberes e conhecimentos, logo precisam estar abertas, funcionando com seus projetos de formação. Lógico que tudo isso pode funcionar como contrapartida da subvenção.

Outro ponto é que, com o capitalismo cada vez mais feroz, a gente vive uma “uberização” nas relações de trabalho, com precarização e desregulamentação do trabalho como um motor do nosso tempo. Parece que o Carnaval se antecipou nesse sentido, e é muito triste dizer isso. Claro que há exceções, algumas assinam carteira de trabalho, mas em geral funciona assim. Não me parece essas relações trabalhistas vão ganhar outros contornos dentro da pandemia.

Viradouro 2020
Desfile da Viradouro campeão de 2020 – Fernando Grilli/Riotur

A pandemia pode piorar essa situação?
Acho que sim. A gente pode imaginar o que isso vai virar depois da pandemia. Pode haver consequências para esse mundo do trabalho carnavalesco. Você pode ter uma redução de profissionais, uma exploração ainda maior. A gente tinha uma determinada estrutura antes, mas agora pode ser que tenhamos a mesma produção com um número menor de profissionais. É a lógica de um modelo produtivo que a gente já está vivendo há algumas décadas, de uma exploração maior de cada trabalhador. A pandemia pode ter essa consequência para o mundo carnavalesco.

Esse “modelo Liesa” de organização vai sobreviver a esse ano sem desfile ou pode haver uma real transformação?
Infelizmente deve se manter. Importante entender que o modelo Liesa é compartilhado pelos dirigentes das escolas de samba. Mesmo os que criticam a direção entidade não apresentam proposta de ruptura. Não só a liga, mas a maioria dos dirigentes pensa o Carnaval a partir desse modelo de negócio. É um empreendimento turístico e comercial, e tem que ser pensado como negócio a ser vendido. Mas num ano sem desfile, é colocado o desafio do que fazer para manter as escolas de samba relevantes. Mas a grande questão é o que fazer para manter os trabalhadores desse universo vivos. Há um descompasso que a crise não resolve. Na realidade, vão se tornar ainda mais agudas as disputas por liderança nas entidades, mas todas elas na mesma perspectiva: como tornar esse negócio de “maior show da terra” ainda mais lucrativo para escolas e a liga. E a gente ainda não tem nenhuma proposta de ruptura por parte dos dirigentes. Os dirigentes das escolas são tributários dessa concepção que estrutura a liga.

Romulo Tesi

Romulo Tesi Jornalista carioca, criado na Penha, residente em São Paulo desde 2009 e pai da Malu. Nasci meses antes do Bumbum Paticumbum Prugurundum imperiano de Aluisio Machado, Beto Sem Braço e Rosa Magalhães, em um dia de Vasco x Flamengo, num hospital das Cinco Bocas de Olaria, pertinho da Rua Bariri e a uma caminhada do Cacique de Ramos, do outro lado da linha do trem. Por aí virei gente. E aqui é o meu, o nosso espaço para falar de samba e Carnaval.

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