Por Bruno Filippo*
A morte de Jose Ramos Tinhorão, no dia 3 de agosto, marca o fim simbólico de um estilo de crítica musical – que pode ser estendido a outras esferas artísticas – em que a figura do crítico emitia um juízo de valor, muitas vezes duro, algumas vezes generoso, sobre a obra analisada. Não que essas figuras não existam; porém, cada vez mais afastadas da grande imprensa, resta-lhes o nicho da internet e das redes sociais. Às empresas de conteúdo jornalístico já não são facilitadas certas práticas que, hoje, parecem ferir a sensibilidade do grande público – como repreender com veemência a carreira e a obra de artistas populares.
Ficou num passado distante o quadro do apresentador de televisão Flavio Cavalcanti em que, na frente das câmeras, quebrava discos que julgava ruins; ou momentos constrangedores como o vivido pela crítica de teatro Barbara Heliodora, detestada por tantos homens e mulheres dos palcos, impedida de assistir a uma peça pelo diretor ensandecido com as críticas que dela sofrera no passado; ou os debates acalorados entre a elite letrada que Wilson Martins proporcionava, como quando menoscabou as obras literárias de Chico Buarque e Jô Soares; ou, para continuarmos em nomes da segunda metade do século 20, os vitupérios de Ferreira Gullar contra a arte contemporânea. Essa rebelião contra o senso comum, contra a filosofia das massas atualmente seria considerada desrespeitosa e elitista.
A consequência disso para a crítica cultural jornalística é a substituição do juízo estético pelo valor sociológico, antropológico ou utilitário, relegando a qualidade artística a mero gosto pessoal. O empobrecimento que essa visão provoca renderia inúmeras colunas; aqui, para resumir, pode-se dizer que priva o público do espírito crítico, impede-o de ter acesso à régua que permite medir o gozo da fruição estética.
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Se todo obituário de Tinhorão equilibrou a balança entre o crítico ranzinza e o pesquisador brilhante, foi porque, na condição de crítico musical na grande imprensa, foi ambíguo: ultranacionalista e xenófobo, algo marxista, o valor estético para ele residia numa suposta pureza original da música popular, sem concessões a influencias estrangeiras. Longevo – morreu aos 93 anos –, tendo iniciado a carreira na década de 1950, Jose Ramos Tinhorão foi um espectador privilegiado da grande transformação por que passou a música brasileira, do advento da bossa nova ao surgimento da MPB. Detestou quase tudo que ele viu nascer, não importando a enorme qualidade que elevou a nossa música popular a um nível de sofisticação melódica, poética e harmônica que tanto orgulho nos deu e, apesar de tudo, ainda nos dá.
Não poupou o Carnaval de sua verve. Culpava o Salgueiro de Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues pelo que, segundo ele, era o funeral das escolas de samba: a mistura entre a cultura popular e a arte erudita.
“Milhares de pessoas ajudaram a cantar os sambas de enredo, mas, sem que pudessem perceber, o seu coral era o canto fúnebre de uma manifestação de cultura popular, desfilando para a morte coroada pelas artes da arte erudita, num autêntico enterro de primeira. (…) Esse fenômeno novo, que data historicamente de 1960, quando o então presidente do Salgueiro, Sr. Nelson de Andrade, contratou os serviços dos cenógrafos Fernando Pamplona, Arlindo Rodrigues e Newton de Sá, marcou a tentativa impossível de mistura de duas culturas: uma, popular urbana, com raízes folclóricas; e outra, erudita, com raízes internacionais”, escreveu ele em reportagens publicadas em 1960 e depois reunidas em seu primeiro livro, “Música Popular – Um conceito em debate”.
Como pesquisador, foi brilhante ao pesquisar as raízes de nossa música. Seus livros são obrigatórios para os estudiosos do tema. Iconoclasta, era um derrubador de estátuas de nossos ídolos musicais. E não suportava os sucessos atuais: funk, sertanejo pop, pagode, rap e outros – que, mesmo sendo populares, não eram autênticos. Mas há um ponto de intercessão, embora conflituoso, entre ele e os defensores desses gêneros do momento: importa pouco a qualidade – mas sim o meio em que foram criados e do qual emergiram para o sucesso. É esta a sensação contraditória que Tinhorão provoca.
*Bruno Filippo é jornalista e sociólogo e escreveu este artigo como convidado do Setor 1.
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