Um nerd no samba: Jorge Silveira leva universo geek e Lego para o Carnaval

Jorge Silveira, carnavalesco da São Clemente – Rafael Arantes

Um fã de Star Wars, histórias em quadrinhos, Cavaleiros do Zodíaco e jogador de RPG. Quem conhece Jorge Silveira apenas do samba talvez nem desconfie que por trás dos óculos e a fala mansa há um nerd, que leva para o barracão um conjunto eclético de influências do mundo geek.

“São dois universos que parecem que não dialogam”, diz o carnavalesco da São Clemente em entrevista ao Setor 1. “Mas hoje eu sou um geek menos compromissado, sou mais do Carnaval. Tenho menos tempo para ler quadrinhos como lia antes, mas ainda tenho minha coleção”, completa o artista, que inclui ainda entre suas influências o criador da Turma da Mônica, Maurício de Sousa, o pai do “Menino Maluquinho”, Ziraldo, e Lego, o brinquedo.

Os blocos de montar são mais do que uma simples lembrança de infância. Silveira usa Lego até hoje, numa “brincadeira” que o ajuda na criação dos carros alegóricos.

“É uma ferramenta de trabalho. Faz parte do meu processo criativo”, conta o artista, que tem o próprio pai, Jorge Caldeirão, além de Renato Lage e Fernando Pinto como influências maiores dentro do Carnaval.

“Minha primeira referência foi meu pai, que foi carnavalesco em Niterói. Eu nasci nesse ambiente de barracão. Na minha casa tinha esculturas de bichos e coisas. Isso me marcou muito fortemente”, recorda.

É essa época romântica do Carnaval que Silveira vai revisitar com “E o samba sambou”, enredo de 1990, reeditado pela São Clemente para criticar os rumos dos desfiles.

Na galhofa que o carnavalesco pretende fazer na avenida, vai sobrar, por exemplo, para os camarotes que tocam música sertaneja na Marquês de Sapucaí, e até para si mesmo. Para usar um termo da moda, será a vez da São Clemente, que apoiou a virada de mesa de 2018, fazer sua autocrítica.

“Mas eles [dirigentes do samba] já perceberam que não é possível seguir nessa direção. Tem que respeitar a regra do jogo”, declara Silveira, um mestre de RPG ciente da importância de seguir regras.

São Clemente 2019

Leia abaixo a entrevista na íntegra:

O enredo da São Clemente é de crítica, mas também de autocrítica…
As duas coisas (risos).

E você acha que as escolas estão amadurecidas para a essa autocrítica?
Difícil… A cabeça que dirige não é a cabeça que cria o Carnaval. A gente trilha um caminho de respeito mútuo, mas é natural que haja divergências. Não sei se os dirigentes têm a plenitude da consciência do que tem acontecido, mas já há sinais de que é preciso mudar. O Rio teve dois resultados contestados, com duas viradas de mesa e sem rebaixamento, e hoje o Carnaval sofre as consequências, com perdas de patrocínios por conta da falta de credibilidade das escolas. Eles já perceberam que não é possível seguir nessa direção. Tem que respeitar a regra do jogo.

Como foi atualizar um enredo de 1990? Hoje tem Crivella, a questão do dinheiro ganhou nova importância…
Muita coisa mudou. Assisti muitas vezes ao primeiro desfile, conversei com pessoas da velha guarda que desfilaram, com os compositores. Me dei o trabalho de rever todo o material da São Clemente na internet para entender como a escola chegou a esse carnaval de 1990. Procurei observar o que era essencial naquele desfile, o que é imutável, e cortar aquilo que não tem mais razão. Procurei observar nos dias de hoje o que sofreu uma distorção e acrescentei. A tese que vou defender é que o samba é atual, que funciona para os problemas que acontecia no passado e para os problemas de 2019. No desfile havia um setor e uma alegoria que retratava a pirataria de imagens da Sapucaí. As pessoas filmavam com VHS e vendiam a fita para turistas, burlando a lei da transmissão. Hoje, com a internet, isso virou uma bobagem e foi cortado. Por outro lado a internet é um fator predominante no Carnaval. Mais: o “escritório do samba” é uma realidade de hoje que não existia em 1990.

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E qual é o tom dessa crítica?
É mais de galhofa. A São Clemente se consolidou no Carnaval com um perfil de ser crítica, irreverente, divertida. Ela e a Caprichosos eram as duas que colocavam o dedo na ferida. Agora a escola volta a ter essa linguagem de maneira predominante. É o lugar de fala da São Clemente. É a escola que tem mais autoridade para fazer, porque tem o DNA da crítica. Ela já falou do menor abandonado, de habitação, educação… Até o próprio Carnaval, como o caso de 90. Tudo está sendo pensado em tom mais leve, rindo de si mesma, reconhecendo que faz parte do problema.

Como surgiu a ideia de reeditar o enredo?
Foi fruto da minha teimosia. Quando cheguei à escola, o presidente [Renato Almeida Gomes] pediu que eu contasse a história da Escola de Belas Artes. Eu estudei lá e já tinha uma pesquisa profunda. No fim do projeto, ele disse que desejava que a São Clemente voltasse a essa identidade crítica, indignada com as questões do país. E propus “E o samba sambou”. Num primeiro momento, ele não foi simpático, mas veio o desfile de 2018. Foi o Carnaval mais caro da história da escola e, na nossa avaliação, foi muito mal avaliada. Cometemos erros, mas não merecíamos a posição que nos colocaram [11ª]. E teve uma segunda virada de mesa, que me deu os argumentos que eu precisava para convencê-lo. Disse: “presidente, é agora ou nunca. Ninguém melhor que a São Clemente para dar o recado de que as coisas estavam erradas. Ele entendeu.

São Clemente em 2018: classificação incomodou – Fernando Grilli/Riotur

Esse incômodo com o julgamento estará no desfile?
Vou falar de todos os problemas, inclusive os que afetaram a São Clemente, sem deixar claro que estou falando de algo que me afetou diretamente, mas que afetam o mundo do samba em geral. Mas vou criticar também a maneira como o povo ficou fora do Carnaval por conta da questão financeira, o excesso de vaidade, a obsessão em querer aparecer. Prejudica o espetáculo a troca do verdadeiro sambista por uma celebridade, que usa o Carnaval de maneira oportunista. Vou criticar o uso exagerado do poder econômico nas decisões, a correria na passarela… A Sapucaí virou quase uma pista de corrida, que o sambista atravessa voando por causa do cronometro. Tudo que está fora do lugar e tira a liberdade de brincar o Carnaval está de alguma forma ironizada no desfile.

O enredo está o influenciando outros segmentos? Por exemplo, as alas vão desfilar mais soltas?
Muito. Por exemplo: há uma tendência nesses últimos anos de coreografar as escolas de samba quase como paradas militares. A São Clemente não terá alas coreografadas. Se eu estou fazendo um trabalho que se propõe a defender os valores do samba, ele tem q ser o protagonista. Falei “pelo amor de Deus, vamos fazer um Carnaval de verdade, que as pessoas entendam que nosso discurso é coerente com a prática.Não temos nada mirabolante. O que a gente tem é alegria, é o sambista, é a naturalidade de entrar na avenida, cantar o seu samba e defender o seu pavilhão.

Fala-se que a escola não cantou muito, acabou perdendo pontos…
É verdade, eu concordo. A São Clemente não tem patrono e depende do dinheiro da prefeitura. Como houve o corte de verba, uma das saídas foi aumentar o número de alas comerciais, para ter o dinheiro e levar o projeto adiante. Mas isso virou o calcanhar de Aquiles, porque abriu espaço muita gente não tem hábito de desfilar, que não sabia o samba e não cantou. Em 2019, das quase 3.200 fantasias, só 200 são comerciais. Fizemos mea culpa e mudamos a estratégia.

Ala coreografada da São Clemente de 2018 – Fernando Grilli/Riotur

A relação com a prefeitura piorou este ano, com um novo corte de verba. Como foi o trabalho nesse cenário?
Nós pensamos o projeto desde o começo já imaginando que alguma coisa poderia dar problema. Não cotávamos com o dinheiro da [prefeitura] e resolvemos com criatividade. Como o perfil do enredo é mais satírico, optei por materiais que não são tão caros.

Baseado na experiência com o Rock in Rio, o Roberto Medina deu sugestões de como mudar os desfiles. Na sua opinião, como essas pessoas do show business podem ajudar?
O Carnaval precisa se reinventar, mas as soluções devem partir das escolas. Toda contribuição é válida, a partir do momento em que ela caminha dentro daquilo que a gente acredita como valor do Carnaval. É preciso ter em mente que antes de ser um espetáculo, é uma manifestação da cultura popular da cidade. Não é só dinheiro. Não é colocar telões de led. Não é transformar a avenida em Hollywood. É pensar como a gente pode dar mais qualidade ao trabalho. É olhar mais para a escola, que é a protagonista.

É o show do camarote…
Exato. Temos um carro que sacaneia o show do camarote. Fala do luxo, as regalias, da música eletrônica, sertanejo… As pessoas ficam de costas para a pista. Para nós isso é muito cruel. A avenida para o sambista não é só um local onde a escola passa, mas lugar ritualístico.

Quais são as suas influências no Carnaval?
Minha primeira referência foi meu pai [Jorge Caldeirão], que foi carnavalesco em Niterói. Nasci nesse ambiente, com isopor, tinta… Eu era uma criança que tinha esculturas de bichos e coisas em casa. Isso me marcou muito fortemente. Meu pai era de uma geração mais romântica do Carnaval, em que os carnavalescos faziam tudo. Hoje são meio diretores de arte e se distanciam do fazer tátil. Se eu quisesse ver meu pai, tinha que ir ao barracão, porque ele morava uma época lá.

Mais alguém?
No discurso de Carnaval, que mais me influenciou foi Fernando Pinto [carnavalesco morto em 1987, que se notabilizou na Mocidade]. Ele tinha uma linguagem única, tropicalista, louca, um imaginário muito próprio dele. A forma como ele pensava o Carnaval me encanta. Talvez tenha sido um dos primeiros que começou a propor uma reflexão na possibilidade do “e se”. E se o mundo fosse dos índios? Se viajássemos para o futuro? Já o Renato Lage [atualmente na Grande Rio] é minha maior referência estética. Cresci vendo o Renato na época da Mocidade fazendo carnavais incríveis. A plástica dele é uma referencia para 99,9% da minha geração.

Tupinicópolis, criação de Fernando Pinto para Mocidade em 1987 – Reprodução

E fora do Carnaval, o que fez sua cabeça?
Criei uma marca no meu desenho que é influenciada pelas referências anteriores, e sempre fui muito fã do universo geek. Durante 15 anos dei aula de desenho para jovens, e esse era era o universo temático deles. Isso influenciou muito minha estética. Eu pude empregar todo esse volume de informação no projeto da São Clemente. Peguei toda a referência de cartum, de charge, e apliquei em figurinos e nas alegorias. Fora do Carnaval, esse universo pop de quadrinhos, mangá e cinema é predominante na minha linguagem.

O que você lia?
De tudo. Cheguei ao ponto de na aula de desenho criar uma oficina de desenho com alunos, em que criamos uma história em quadrinhos como eles, como projeto de aula. Ganhou tanta força que a gente começou a publicar na internet. Em três anos a gente produziu 1.500 páginas de quadrinhos. O trabalho, chamado “Em busca do poder”, chegou aos cinco continentes, a mais de 100 mil leitores, em português e inglês. O projeto se tornou o maior quadrinho on line do Brasil. Ganhamos prêmio e fomos para o Anime Friends [maior evento geek da América Latina], dar palestra. Eu fiquei entre um brasileiro que desenhava para a Marvel e outro que desenhava para a DC Comics.

Trecho de “Em Busca do Poder”, trabalho em quadrinhos de Jorge Silveira com alunos de desenho – Reprodução

Você ainda se considera um geek?
Um geek menos compromissado. Mas hoje eu sou um geek menos compromissado, sou mais do Carnaval. São dois universos [Carnaval e geek] que parecem que não dialogam. Tenho menos tempo para ler quadrinhos como lia antes, mas ainda tenho minha coleção.

E nesse universo pop, o que mais te influenciou? Liste pessoas ou coisas.
Maurício de Sousa
Sou absolutamente fã do trabalho do Maurício de Sousa [criador da Turma da Mônica]. Foi minha primeira literatura, quando me apaixonei por ler e ver a literatura desenhada. Eu tinha assinatura da Turma da Mônica. Já burro velho, com 37 anos no ano passado, vi o Maurício pessoalmente pela primeira vez a Bienal e quase chorei. Com mais de 80 anos e ele ainda está produzindo, muito moderno.

Maurício de Sousa: uma das influências de Jorge Silveira – Tiago Queiroz/Estadão Conteúdo

Ziraldo
Sempre li muita coisa do dele. Há dois anos, a Viradouro chegou a convidá-lo, mas ele estava com problemas de saúde e não pôde desfilar. Mas só de pegar o telefone e falar com ele foi como se eu estivesse falando com Deus. Ele é um homem multimídia.

Cavaleiros do Zodíaco
Vi compulsivamente, de tudo.

Star Wars (Guerra nas Estrelas)
Assisti muito. O George Lucas é uma referência internacional na minha visualidade.

Cartaz de Star Wars

Lego
O que mais marcou minha infância foi brincar de Lego. Foi a coisa mais determinante no meu processo evolutivo artístico. Quando eu tinha quatro ou cinco anos, ganhei um Lego pela primeira vez, e a partir daí em quase todo aniversário pedia de novo. Me tornou o desenhista que sou hoje. Embora eu tenha feito Belas Artes e dado aula, nada foi mais importante para o meu desenhar que o Lego, porque desenvolveu minha visão espacial com o nada, estimulou minha capacidade de criar, de intervir no espaço e me fez entender como o espaço era.

Você projeta coisas em Lego até hoje?
Muito. Eu costumo fazer maquetes das alegorias. No barracão há pessoas de origens e culturas diferentes, e muitas vezes é difícil para alguns profissionais entender uma planta. A maquete me possibilita chegar na pessoa que não tem essa leitura. Isso é uma vivencia que o Lego me deu. Sempre que eu desenho, começo pela volumetria de um Lego. Quando vou compor uma alegoria, o primeiro traço que faço dela é partir dos blocos geométricos. Penso a massa do meu processo criativo como se eu estivesse brincando de Lego.

Lego: brinquedo faz parte do processo criativo de Silveira – Divulgação/Lego

Então você usa Lego para trabalhar.
É uma ferramenta de trabalho. Faz parte do meu processo criativo. E tem outra coisa muito importante, que é o RPG (Role-playing game). Há 25 anos eu jogo e mestro (comanda um jogo de) RPG de mesa. Tenho o mesmo grupo há mais de uma década. Jogo de tudo: Dungeon and Dragons, Vampiro e os nacionais. O “Em busca do poder” é um universo de RPG que criei aos 14 ou 15 anos e ainda jogo de vez em quando. O RPG é uma coisa que me ajudou a virar professor. Existe uma tendência geral do nerd ser muito recluso, e jogar me deu a possibilidade de me tornar uma pessoa mais comunicativa. O jogo e o Carnaval tem um ponto de contato, que é a questão de criatividade. Numa dinâmica, você precisa o tempo todo criar e recriar os universos, e no Carnaval a gente cria e recria o discurso.

Romulo Tesi

Romulo Tesi Jornalista carioca, criado na Penha, residente em São Paulo desde 2009 e pai da Malu. Nasci meses antes do Bumbum Paticumbum Prugurundum imperiano de Aluisio Machado, Beto Sem Braço e Rosa Magalhães, em um dia de Vasco x Flamengo, num hospital das Cinco Bocas de Olaria, pertinho da Rua Bariri e a uma caminhada do Cacique de Ramos, do outro lado da linha do trem. Por aí virei gente. E aqui é o meu, o nosso espaço para falar de samba e Carnaval.

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