A hora de João Vítor Araújo chegou. Aos 34 anos, após 20 de barracão, o carnavalesco tem a chance de provar, no Paraíso do Tuiuti, que tem o que falar. A primeira passagem pelo Grupo Especial do Rio de Janeiro, em 2015, com a Viradouro, não traz boas lembranças. Tanto que o artista trata o desfile de 2020 como sua primeira vez pra valer na principal divisão do Carnaval carioca.
“É minha estreia”, diz Araújo em entrevista ao Setor 1.
Único carnavalesco negro do grupo, o artista contou como foi a trajetória – desde o menino fã de Clodovil Hernandes e alvo de bullying na escola, passando pelo trabalho ainda jovem, como empacotador, até o paraíso – Paraíso do Tuiuti. No caminho, superou o racismo e a vida difícil, sem o pai por perto, e cheio de obrigações aos 11 anos de idade.
Na estreia, Araújo levará para a Sapucaí um denso enredo sobre D. Sebastião, jovem rei de Portugal morto em uma batalha no Marrocos – cujo retorno é esperado pelos sebastianistas, e São Sebastião, padroeiro do Rio de Janeiro e de algumas escolas de samba, incluindo o Tuiuti. Com crítica, mas ao estilo do carnavalesco.
“Eu não posso deixar de falar das mazelas, mas não estou atacando ninguém. É um pedido, um clamor. A gente clama por paz, dias melhores, pede ao santo padroeiro que tire as flechas do caminho do nosso povo, da nossa gente. Essa é minha mensagem”, explica.
Leia a entrevista abaixo:
Setor 1: O que era o enredo quando você trouxe para o Paraíso do Tuiuti?
João Vítor Araújo: Era só Dom Sebastião, a epopeia do rei de Portugal até se tornar uma figura mítica no Brasil, sobretudo no Nordeste. Essa fusão com o santo surgiu quando descobri que o padroeiro da escola era São Sebastião. Aí fui buscar esse link, junto com o Gustavo (pesquisador João Gustavo Melo), que trabalha comigo na pesquisa.
Como você descobriu?
Tivemos uma consultoria importantíssima para essa junção do escritor Luiz Antonio Simas, que é um expert em sebastianismo. Tive uma tarde maravilhosa com ele e ficamos mais de três horas conversando sobre essa história, e ele deu todos esses caminhos. Ele mostrou que tinha tudo a ver. Tanto que na sinopse a gente faz um agradecimento ao Simas. Ele foi o grande mentor da construção do enredo.
Onde entra a parte crítica do enredo?
Todo mundo quando fala de Paraíso do Tuiuti fala de crítica, tanto que no início eu fui muito questionado. Na página da escola disseram que deixariam de torcer se não tivesse crítica no enredo. Mas é o meu pensamento, a minha cabeça, a minha personalidade. O Jack [Vasconcelos, ex-carnavalesco do Tuiuti, atualmente na Mocidade] construiu uma história lindíssima na escola. Eu sou muito fã de Joãosinho Trinta. Ele fazia a gente delirar e sonhar. Ele fazia a mulher preta da favela se transformar em rainha, ou o gari virar um príncipe. Eu sentia falta disso. Por mais que a gente esteja caminhando por estradas sombrias, num total desgoverno na nossa cidade, o Carnaval é a válvula de escape. Não quero bater em ninguém, até porque já estamos apanhando o tempo todo. Quero que o povo seja feliz, que o público veja alegria. Claro que se eu decido falar do Rio de Janeiro no último setor, homenageando o padroeiro da cidade, eu não posso deixar de falar das mazelas, mas não estou atacando ninguém. É um pedido, um clamor. A gente clama por paz, dias melhores, pede ao santo padroeiro que tire as flechas do caminho do nosso povo, da nossa gente. Essa é minha mensagem.
Você vai tocar nos assuntos mais polêmicos…
Sim, mas de forma sutil. Já pensou se todo mundo quisesse seguir por um mesmo caminho? Já houve um tempo em que todo mundo queria ser Paulo Barros. Depois todo mundo quis fazer crítica, mas não deu certo com todos. São 13 caminhos e ninguém precisa copiar o outro.
Muita gente deve ter comemorado o “fim” de enredos críticos…
Não muito. Eu ouvi muito mais gente lamentando que a crítica tinha acabado. Li coisas como ‘ah, me apaixonei pela Tuiuti porque ela botava o dedo na ferida’.
Você reconhece traços de sebastianismo no carioca, no sentido de ter esperança de uma vida melhor?
Sim. Eu gosto de definir sebastianismo como esperança. Esse enredo dá certa continuidade ao meu desfile do ano passado sobre [o dramaturgo] Dias Gomes. Ele dizia que achava interessante que o brasileiro, e ele abordava muito isso nas novelas, tem a necessidade de se apegar a algo: uma entidade, uma santidade, um líder político. Ele pode estar feliz, mas tem que se agarrar a alguém. O carioca, como os personagens do Dias, são assim também. Muita gente depositou expectativas no Marcelo Crivella e deu no que deu. E a gente corre risco de essas mesmas pessoas continuarem depositando expectativas nesse homem. Aí eu faço uma crítica: parece que as pessoas não conseguem caminhar sozinhas, e isso é muito prejudicial. O resultado é isso que estamos vendo.
Você tem um histórico no Acesso, logo imagino que esteja acostumado a trabalhar com recursos mais escassos. Na sua entrevista ao Carnavalize, você disse que prepara planos B, C e D para os protótipos. Você precisou mudar muito o seu projeto por causa do corte de verba?
Eu conversava com o meu diretor de Carnaval [Júnior Schall] exatamente isso. São ‘detalhes tão pequenos de nós três’, parafraseando a música do Roberto Carlos. Eu, ele e o Bebel, meu assistente, trabalhamos muito essa manipulação de material. E só nós três sabemos o que foi alterado. Se você olhar o protótipo e a fantasia vai dizer que é a mesma coisa. Isso o Acesso ensinou.
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Alguns carnavalescos comentaram que uma das dificuldades foi conseguir material importado, muito por causa da alta do dólar. Isso afetou muito vocês?
Afetou, mas a nossa sorte é que começamos o Carnaval muito cedo. Foram ferimentos leves, não é Schall?
[Neste momento Júnior Schall participa da entrevista]
Schall: Quando se enxerga o final do trabalho e tem antecedência no projeto, você sabe onde sua mão alcança. Você consegue fazer as previsões de realização em um percentual alto, de 80%. Se muda, é um detalhe que só nós percebemos. A estrutura do macro já ganhou vida, e ganhamos campo para concessão ao detalhe do artista, do diretor de Carnaval ou do assistente. E o João é super acessível a isso. Alguns profissionais morrem abraçados ao projeto, e isso é falta de inteligência e perspicácia. João tem o mesmo tirocínio da Rosa Magalhães, de enxergar o todo. Alguns só veem a parte.
João Vitor: E não conseguem finalizar. Eu já trabalhei com um carnavalesco chamado Paulo Barros, que aparentemente é uma pessoa difícil, mas é um artista que não se aperta. E ele me fez ver outra forma de construir o Carnaval. Se eu tivesse trabalhado com o Paulo antes de ser carnavalesco da Viradouro, eu não teria deixado acontecer o que aconteceu em 2015, que não foi culpa minha [nota do blog: João Vitor foi rebaixado do Especial com a Viradouro após um desfile problemático]. Mas eu peitaria muito mais para que não chegasse aquele ponto. No ano seguinte eu fui trabalhar com ele [Paulo Barros] e praticamente tudo que aconteceu na Viradouro em 2015 se repetiu na Portela em 2016 [sobre interferências], só que ele não deixou se concretizar.
Como aconteceu?
A solução (de Paulo Barros) foi ‘pé na porta’, altivez e palavra firme. Na época eu fiquei tão grato pela Viradouro ter me mantido no posto depois de ser campeão [em 2014] que acabei fazendo tudo que eles queriam. Eles me fizeram de ‘gato e sapato’, eu não me enxergava como um profissional necessário.
É exagero falar que agora é sua estreia pra valer no Especial?
É a minha estreia. Existe um João Vitor Araújo antes e outro depois da Viradouro. Eu me vejo como artista, me sinto íntimo disso tudo [aponta para desenhos na parede] e sou respeitado. Eu tenho aquela alegoria, que vai ter aquela cor e acabou. Diferente daquela época, quando entravam na minha sala e diziam: ‘esse verde é horroroso, tem que ser vermelho’. E eu, com medo, aceitava.
A chuva no desfile foi um detalhe…
Sim. Era uma tragédia anunciada. No fim a corda arrebentou para o lado mais fraco, que era eu. Em 2017 eu surgi muito mais forte, ainda que super subestimado, ao assumir a Rocinha.
Esse desfile tem uma importância especial para você, não?
É o melhor desfile da minha vida [sobre o carnavalesco Viriato Ferreira]. Não tem campeonato de 2014, vice-campeonato de 2013 [Viradouro] e ‘O eldorado submerso’ [Delírio Tupi-Parintintin, enredo da Unidos de Padre Miguel em 2018, assinado por João Vitor, que valeu o vice-campeonato a Série A].
Como você chegou ao Carnaval?
Tenho 34 anos de idade e 20 de Carnaval. Comecei muito cedo, como aderecista. Se você me perguntar o que eu sei fazer dentro de um barracão, vou dizer: praticamente de tudo. Passei por cada setor, e acho isso extremamente necessário para quem quer ser carnavalesco. Foi uma jornada longa, sofrida, regada de lágrimas e sorrisos, com muitas portas batidas na cara. Dentro da minha casa mesmo. Ouvi muito que era difícil, que ‘é uma máfia’, um ‘funil’… Hoje eu entendo o receio da família. A cada amizade que você ganha, perde 10.
Onde você começou?
Na Portela, com o Alexandre Louzada, em 2000 para 2001. Tinha 14 anos. Em 2015 participei de uma mesa de debates na Escola de Belas Artes com ele e fiquei muito emocionando. O Louzada nem lembrava disso (risos). Depois trabalhei na Mangueira por cinco anos, primeiro como aderecista, depois como chefe de adereços. Em seguida trabalhei com o [carnavalesco] Fábio Ricardo quando ele assumiu a Rocinha. Tive uma passagem com o Paulo Barros na Viradouro em 2007. Também trabalhei com o Luiz Calos Bruno na Rocinha e na Unidos da Tijuca. Fui assistente do Edson Pereira na Renascer de Jacarepaguá… Fiz muita coisa até chegar à Viradouro. Tem coisas que nem lembro. Fiz Unidos do Cabuçu na Intendente Magalhães, por exemplo.
Quais são as suas maiores influências no Carnaval?
Joãosinho Trinta e Viriato Ferreira. São os dois amores da minha vida. E na atualidade é o Alex de Souza [carnavalesco do Salgueiro]. E ele sabe disso. É a pessoa mal-humorada que mais amo (risos). Não só a pessoa, mas também o profissional.
E de fora do Carnaval, quais são suas influências?
O que despertou meu interesse pelo figurino foi [o estilista e apresentador] Clodovil Hernandes. Na escola meu apelido era Clodovil, porque sempre gostei de moda. Eu ficava chateado, com vergonha de mostrar meus desenhos para não ser zoado. Na época não se falava em bullying, mas eu sofri muito por volta dos 8 ou 9 anos de idade.
Como você se defendeu disso?
Ficava na minha, fazia escondido, e sobrevivi.
Você é o único carnavalesco negro assinando um enredo no Grupo Especial. Isso é uma questão importante para você? Como você lida?
Eu me sinto a mosca no leite. Estou numa tigela branca regada de leite, e de repente uma mosca preta pousa em cima. Logo ela chama atenção, só que na maioria das vezes para o pior. Ela incomoda, é questionada, é colocada em prova o tempo todo. Você acaba não sendo modelo, sem o rótulo de artista. Muitos dizem que meu trabalho é refinado. De fato gosto do estilo, porque aprendi com os carnavalescos com quem trabalhei. Se você pegar um detalhe de um trabalho meu e perguntar numa enquete de quem é, ninguém vai marcar meu nome. Tudo que faço é sempre uma surpresa. As pessoas estranham tudo que seja feito por alguém de pele preta.
Por que você acha que isso ainda resiste no Carnaval?
Porque as pessoas se acostumaram com esse cenário. Tudo que é diferente gera estranheza. Vou te falar uma bobagem: uma vez fizeram uma enquete sobre o carnavalesco mais bonito da Série A e fiquei em último. Tudo bem que não sou um galã, mas pelo amor de Deus… Fiquei indignado! [Jorge Silveira, da São Clemente, foi o vencedor] De repente para os fãs ter o cabelo liso, pele mais clara, lábios finos, nariz fino seja mais interessante.
Hoje há muitos carnavalescos que vieram da academia, fizeram Escola de Belas Artes. Você acha que a dificuldade dos negros no Brasil terem acesso à educação acaba tendo influência nessa situação de terem poucos carnavalescos de pele preta?
A vida do negro sempre foi mais difícil, pela herança escravocrata. O negro não teve direito ao ensino, educação, dignidade… E isso continuou com o passar dos anos. Eu tive que começar a trabalhar com 11 anos de idade para ajudar a colocar comida dentro de casa e pagar as contas. Nunca tive o privilégio da minha mãe – não fui criado com o meu pai – falar para mim que eu só iria estudar. Eu tive que trabalhar também. Enquanto a maioria dos meus colegas só estudaram, viajaram, conhecem o mundo. Não é uma indignação. É para entender que as oportunidades não são iguais.
Com o que você trabalhou na adolescência?
Fui empacotador da Sendas [extinta rede de supermercados], era ‘marrequinho’ [como a empresa chamava os jovens que trabalhavam empacotando compras]. Eu precisei ganhar dinheiro com 11 anos. Também trabalhei na C&A (rede de lojas), já entreguei quentinha… Tudo que você possa imaginar.
Mas você fez cursos na área do Carnaval?
Entrei para o Instituto do Carnaval quando era na Estácio (universidade). Hoje está na Veiga de Almeida. Eu tive que pagar. Não tive pai para bancar. Me virei nos 30 o tempo todo. Escola de Belas Artes era para quem podia. Bato palma para quem está ou passou por lá. Hoje a situação está muito melhor. O sistema de cotas vem permitindo que os negros tenham acesso à academia, mas na minha época não era assim.
Você acha que esse cenário pode mudar?
Não sou exemplo de vida para ninguém (risos), mas espero que alguém esteja se espelhando em mim, pela força de vontade e determinação, porque é o que não me falta.
Ouça o samba de 2020 do Paraíso do Tuiuti:
“O SANTO E O REI – ENCANTARIAS DE SEBASTIÃO” (Autores: Moacyr Luz, Cláudio Russo, Aníbal, Píer, Júlio Alves e Alessandro Falcão)
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Embora não entenda nada de Carnaval, acho que o caráter crítico do enredo, é muito importante, na medida que provoca discussão em torno dele, faz as pessoas debaterem sobre o assunto.
Não sabia desse ressentimento do João com a Viradouro. Bem triste isso :/
Respeito muito o trabalho dele!