A Mangueira vai para o Carnaval de 2019 novamente cercada de expectativa. Assim acontece desde 2016, na estreia campeã do carnavalesco Leandro Vieira – com a homenagem a Maria Bethânia. Depois de falar sobre religião e refletir sobre a própria festa, Vieira agora vai jogar luz sobre personagens – ou heróis – esquecidos pela História do Brasil. Gente como Dandara, Zumbi dos Palmares, Cunhambebe e Luiza Mahin, excluídos da narrativa oficial, mas que serão protagonistas do desfile da segunda-feira de Carnaval, 4 de março, na Marquês de Sapucaí.
“Ele [enredo] nasce da discussão a respeito do [projeto de lei] Escola Sem Partido. Que pensamento é esse que não quer que sejamos pessoas críticas? Essa narrativa oficial quer nos ninar, nos adormecer – daí o título”, diz Leandro ao Setor 1, sobre “História para ninar gente grande’.
E como a Mangueira faz esse Carnaval questionador, apresentando personagens desconhecidos? Segundo o carnavalesco, pela fresta – pelos poucos espaços cedidos pelos desfiles das escolas de samba para a reflexão.
“Os desfiles hoje estão vinculados a uma máquina burocrática que envolve Estado, dependência financeira, questões ligadas à práticas que não são carnavalescas. Eu tenho feito carnavais pelas frestas”, diz. No caso da Mangueira, arrombando as frestas.
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Leia a entrevista abaixo:
Recentemente vi um meme que dizia que a situação política brasileira, com o avanço da extrema-direita, poderia “salvar” a música popular brasileira. É uma brincadeira, mas de que forma essa fase política vai ser recebida pelo Carnaval?
Essa questão pode ser olhada em vários aspectos. Quando você fala em Carnaval, eu não limito aos desfiles das escolas de samba. Acho inclusive que onde se faz menos Carnaval hoje em dia é nos desfiles das escolas de samba. O Carnaval, nessa ideia da livre manifestação, se dá muito mais na rua, com os blocos. A situação política do país favorece o espírito de galhofa e de resistência no Carnaval. As manifestações populares associadas à liberdade sempre foram melhores e maiores nos momentos de repressão. Talvez o meme tenha ligação com isso. Toda essa pressão existente e acaba reverberando de alguma forma. Nos desfiles das escolas de samba isso mais difícil. Poucas são as brechas, ou para fazer uma menção ao [historiador Luiz Antônio] Simas, raras são as frestas para que a festa se manifeste dessa maneira.
Por que?
Porque os desfiles hoje estão vinculados a uma máquina burocrática que envolve Estado, dependência financeira, questões ligadas a práticas que não são carnavalescas. A transmissão da TV não é uma prática carnavalesca. O desfile deixou de ser uma atividade televisionada para ser uma atividade televisiva, e assume outras identidades que não são carnavalescas. Eu tenho feito carnavais pelas frestas. Não posso falar pelos outros, mas se você avaliar o que eu proponho em termos de enredo, a Mangueira está numa fresta.
Mas a Mangueira é muito grande. A repercussão do que ela faz…
Quando a Mangueira passa pela fresta, ela arromba.
O Crivella de Judas em outras escolas talvez não tivesse a mesma repercussão. Aliás, em qual medida você acha que o desfile de 2018 influenciou na relação do prefeito com a Mangueira? Depois da prisão do Chiquinho [ex-presidente da escola], ele citou o episódio ao falar da desistência do Uber…
Total. O Crivella deve ter ficado muito sentido com isso. Recentemente ele mencionou o enredo da Mangueira de 2019. Quando ele disse que esse ano deveria ser apresentado nas escolas como herói. De alguma forma ele sabe… Existe toda essa restrição pelas gestões conservadoras porque eles sabem exatamente o papel e o valor do Carnaval. Rir deles sempre foi o maior medo deles.
Você vai rir muito deles esse ano?
Acho que sim. As pessoas comentam comigo: “você faz carnavais políticos”. Eu não acho. Eu defendo a minha visão a respeito das coisas. Político, sim, mas não partidário. Para mim, defender uma população que tenha juízo crítico, isso não é político. É fundamental. Defender manifestações populares como Carnaval não é político, é fundamental. Apresentar um Carnaval que fala do protagonismo popular que foi silenciado não é político, é urgente. Exaltar a luta indígena não é política, é urgente. Exaltar a luta quilombola é urgente. Eu tenho obsessão com a questão da hipervalorização das coisas populares.
A Mangueira vai falar de quilombolas e índios, por exemplo, grupos que estão sob ataque no momento, pelas frestas…
Sim. Mangueira é isso. Para mim, a Mangueira é o Brasil. E o Brasil inteiro cabe na Mangueira, O morro da Mangueira é um DNA do Brasil, é onde as lutas indígenas e dos negros foram parar. Lugar da mãe solteira, de famílias negras que não tiveram lutas reconhecidas. A Mangueira que eu acredito só pode se colocar a favor disso. Não à toa a escola se reconhece muito nas coisas que eu apresento.
Como surgiu a ideia do enredo?
Ele nasce da discussão a respeito do [projeto de lei] Escola Sem Partido. Não é uma resposta, mas nasce disso. Que pensamento é esse que não quer que sejamos pessoas críticas? Essa narrativa oficial quer nos ninar, nos adormecer – daí o título do enredo. A narrativa oficial é uma escolha de lados. Ela tem o interesse em popularizar feitos e escolhe quais devem se popularizados, e escolheu popularizar os feitos das elites, dos representantes militares, do Estado, e escolheu não dar voz, nem vez, nem representatividade aos feitos populares. É a narrativa que coloca bandeirante como herói e o índio como vencido, dá protagonismo a princesa Isabel, mas nega o protagonismo a Dandara. Dá contorno heroico à independência promovida por Dom Pedro e não populariza a luta pela independência na Bahia, que quase ninguém conhece. Isso é uma escolha. O que proponho é uma versão, é escovar a história a contrapelo, muito mais focado em teses e estudos que aprofundam a história do que esse conhecimento superficial que narra uma sequência de fatos, que foi o que as escolas de samba ao longo de quase um século fizeram.
Inclusive a Mangueira.
Eu adoro contradição. A Mangueira agora canta “tem sangue retinto pisado atrás do herói emoldurado”, mas já cantou “caminhando pela mata virgem, bravo bandeirante encontrou” [No Reino da Mãe do Ouro, 1976].
Contradições do Carnaval…
Com raríssimas exceções, os carnavalescos historicamente sempre assinaram embaixo da narrativa oficial. Nos anos 60, o Fernando Pamplona apresentou à sociedade brasileira a figura de Zumbi dos Palmares, no Salgueiro. Zumbi foi popularizado pelas escolas de samba antes de despertar o interesse acadêmico. Isso é uma exceção.
Você teve contato com os personagens do enredo no colégio?
Tive excelentes professores de História. Quando prestei vestibular eu só tinha como opção passar para uma universidade pública. Minha vontade era fazer Belas Artes, e foi o que fiz, mas fiz vestibular para outras universidades para história, muito pelo fascínio que meus professores despertaram em mim. Eram aulas que me levaram ao pensamento crítico.
Como você escolheu os personagens?
A partir da ideia de representatividade. Se o Brasil vive uma onda machista, eu elejo figuras femininas para dar protagonismo. Dos heróis da luta da causa negra, eu selecionei Dandara, Luiza Mahin, Tereza de Benguela, Mariana Crioula, Aqualtune, Zeferina… Mas não descartei homens. Chico da Matilde, Luiz Gama, por exemplo, estão no enredo. Outra questão muito forte é que sou apaixonado pela cultura indígena. O Brasil tem uma dívida muito grande com a comunidade negra, mas a dívida com a comunidade indígena é maior ainda. Além de sofrer o massacre físico, o índio sofreu um apagão da memória. Eu dedico boa parte do meu desfile à estética indígena. Dos meus cinco setores, dois são dedicados ao universo indígena. Essa coisa de falar “se gosta de índio vai para a Bolívia” me incomoda muito [a declaração é do deputado estadual mais votado do Rio, Rodrigo Amorim, do PSL], porque nega que somos índios. É terrível.
E como os indígenas serão apresentados no desfile?
Eu busco referências arqueológicas, com cerâmica marajoara e tapajônica, e nomes. É preciso dizer nomes. Falar de um índio tamoio chamado Cunhambebe. Um guarani chamado Sepé Tiaraju. Falar que os índios lutaram no 2 de Julho na Bahia, que organizaram uma confederação de resistência que reuniu índios de uma região enorme do Nordeste, que para ser vencida foi preciso desviar as tropas que combatiam os negros quilombolas de Palmares. É preciso dizer isso, escolher índios, negros e pobres. É importante contar a história de uma negra como Carolina de Jesus. Dizer que Aleijadinho e Machado de Assis, por exemplo, eram negros, e não brancos, como tentam pintar até hoje. Assim como a história de vida de Marielle Franco, não a vereadora assassinada, mas a mulher negra moradora da favela da Maré, que se formou doutora e vereadora. Dar notoriedade a isso é importante. É falar do melhor do Brasil, que é o povo.
O samba desse ano fala em nomes. Era seu preferido?
Sim, desde o princípio, e por uma série de questões, mas principalmente por falar nomes.
Fala da Marielle, que não estava no enredo até…
Estava sim. Não estava dita, mas um compositor sensível é um sopro de vida para um carnavalesco. Claro que ela estava presente no enredo. A luta da Marielle não é diferente da luta da Dandara, por exemplo. É por causa disso que tenho admiração por Martinho da Vila, Cabana, Silas de Oliveira, Dona Ivone Lara, pela sensibilidade de entender além do que está escrito. Foi o que o Domênico e os parceiros [autores do samba de 2019] fizeram.
Entrevistei o Domênico no ano passado (leia aqui), e ele se mostrou preocupado com a possibilidade do samba ou da própria escola ser alvo da extrema-direita. Ele disse inclusive que o samba, de uma maneira geral, teria que ser resistência. O que você acha disso?
O Júlio Mattos [ex-carnavalesco da Mangueira] uma vez terminou um desfile e disse numa entrevista: “a Mangueira é povo, é povo, é povo”. Eu só estou reafirmando algo que ele disse: a Mangueira é povo.
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