Danyllo Gayer, 67 anos, não esconde a animação ao contar uma das muitas histórias que conhece sobre Joãozinho da Gomeia. “Lembro dele com um tacho de cobre e fogo na cabeça. Ou andando imponente pelas ruas de Duque de Caxias, com mais de 20 ogãs atrás, todos negros. Dava para ouvir de longe o som do tamanco de madeira batendo no chão. E ninguém mexia. Era magnífico”, narra.
O gestos e a entonação de Gayer, destaque da Grande Rio e zelador de orixá – como gosta de dizer -, ao falar sobre o Rei do Candomblé entregam o entusiasmo com o enredo da agremiação caxiense para 2020, sobre o líder religioso que ajudou a colocar a cidade da Baixada Fluminense no mapa. “A Grande Rio estava para fazer enredo afro havia muito tempo”, afirma.
Na turma do samba, o anúncio do desfile dedicado a Tata Londirá (como Joãozinho também era conhecido) foi recebido primeiro com surpresa. Depois, entendido como um retorno às origens da Grande Rio, que se fixou no Grupo Especial com enredos afro ou de cultura popular, mas que em seguida se rendeu a temas de menor relevância – com alguma frequência patrocinados. Mais: ganhou a pecha de escola dos famosos e apelidos como “Unidos do Projac”, em referência complexo de estúdios da TV Globo.
“Não dou a mínima”, diz o mesmo Danyllo sobre as piadas, enquanto organiza pilhas de fichas de artistas que desfilarão na escola. A última entregue a ele durante a entrevista é do ator sírio Kaysar Dadour, ex-participante BBB. “O Kaysar já é de casa”, diz ele, presidente dos destaques da escola e que mantém um perfil no Facebook com centenas de fotos ao lado de celebridades.
Um dos fundadores da Grande Rio, Danyllo, frequentador da Goméia na juventude, denuncia a injustiça das críticas. E reivindica o direito da escola, por tradição própria, contar com os famosos no Carnaval. “Sempre estiveram aqui como foliões, não como artistas”, defende.
De fato, Grande Rio e as celebridades estão juntas praticamente desde o nascimento da escola, fundada em 22 de setembro de 1988. Resultado da fusão de várias agremiações de Duque de Caxias, a escola estreou no ano seguinte no que era na época a terceira divisão do Carnaval, na avenida Rio Branco. Vice-campeã, garantiu um lugar no Grupo A, o antigo Acesso, e pisou pela primeira vez na Marquês de Sapucaí. Foi quando os artistas desembarcaram em Caxias.
“Eu estava cortando cabelo em um salão de Caxias quando chegou o Milton Perácio [um dos fundadores da escola] me dizendo que o Jayder [Soares, presidente de honra] queria falar comigo sobre a criação de uma ala de artistas”, narra o advogado Sylvio Guerra, 60 anos, sobre como ganhou a incumbência de levar a classe para a Grande Rio.
Amigo de juventude de Soares, Guerra se notabilizava na época como o “advogado dos famosos”. Começou com um cliente de peso – com duplo sentido: Tim Maia e seus mais de 10 processos. Nos shows do cantor, Guerra conheceu as celebridades que tão logo passariam a contratar seus serviços advocatícios. Mais tarde, a mesma turma estaria na chamada Ala dos Artistas, assim batizada oficialmente para o primeiro desfile da Grande Rio no Sambódromo.
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“O barracão ficava em [Vila] Sarapuí [bairro de Duque de Caxias]. A gente trazia os carros durante a madrugada. Saía às 10 da noite e chegava às 6 da manhã do dia seguinte, todos em reboques de carro de rua. Nos misturávamos ao trânsito na avenida Brasil. Ainda não existia a Linha Vermelha (via expressa que liga a Baixada ao Centro)”, relembra Guerra.
“A quadra era pobrezinha. O camarote era coisinha baixa, com um murinho baixo, onde cabiam umas 10 pessoas”, lembra Gayer, amigo de Susana Vieira, com quem diz ter passado muitas madrugadas no barracão da escola ajudando a aprontar o desfile. “Ela já era famosa. A gente ficava no barracão velho bordando, colando com cola quente, enquanto o motorista dela esperava. E ela já era ‘estrelíssima'”, conta.
Susana estava na primeira leva de artistas que Guerra levou para a Grande Rio, junto de Vera Gimenez, Hugo Gross, Raul Gazolla, Daniela Perez, Gerson Brenner e outras estrelas da época.
O mesmo boca a boca que encheu seu escritório também ajudou a formar uma ala com 150 pessoas, entre artistas e familiares. O grupo cresceu tanto que, lembra Guerra, num determinado pré-Carnaval foi preciso organizar caravanas com seis ônibus para levar a turma da Zona Sul até a quadra em Caxias.
“O Wolf Maia levava a novela toda. Teve uma hora que tinha um ônibus por novela. Dentro era servido refrigerante, sanduíche, cerveja.. Eles iam para o camarote, assistiam ao ensaio, se enturmavam e aprendiam o samba”, conta o advogado, que chegou a ficar responsável por nomear as rainhas de bateria da agremiação, mas que atualmente longe do Carnaval e se dedicando ao seu terceiro livro, sobre direito autoral na internet.
Na pista, a Grande Rio tentava se firmar entre as grandes depois de um tombo na estreia no Grupo Especial. Com um confuso enredo sobre a evolução da humanidade, a escola foi rebaixada em último e voltou para o acesso. O desfile foi marcado por problemas, com direito a bateria passando direto pelo segundo recuo e componentes desmaiando na concentração por conta do calor – a apresentação foi a primeira, às 18h, com horário de verão em um ano com 16 agremiações.
A volta ao Acesso, no entanto, foi de passagem. Com um enredo afro – “Águas claras para um rei negro”, assinado pelo carnavalesco Lucas Pinto -, a escola faturou o título e abriu uma série de desfiles com indiscutível relevância cultural no Especial. Nos dois anos seguintes, produziu dois hits do gênero samba-enredo: “No mundo da lua” e “Os santos que a África não viu”, este sobre a umbanda.
Os resultados, porém, não eram animadores. A Grande Rio cruzou os anos 1990 como um sucesso de público, mas não de crítica – ou melhor, de júri. Aos poucos, a escola passou a vender seus enredos para se tornar mais competitiva.
“Foi necessário. Só com a ajuda de patronos não dá. A autoridade de Parintins quer mostrar o bumba meu boi dele, e ele te dá um dinheiro para fazer propaganda da cidade. Ninguém consegue fazer por dois ou três anos seguidos enredos sem patrocínio”, afirma Gayer.
Assim, dinheiro raramente foi um problema para a Grande Rio nos anos 2000 e em boa parte da década seguinte, chegando perto do título inédito. Mas outro tipo de crise bateu em Caxias recentemente.
Em 2018, a quebra de um carro e consequente rebaixamento com o enredo sobre Chacrinha fizeram a escola parar no centro de uma controversa virada de mesa, promovida com a ajuda da maioria das coirmãs – somente Portela e Mangueira foram contra. A salvação contou ainda com o apoio oficial de políticos do executivo e legislativo fluminense, incluindo o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e até o desafeto das agremiações, o prefeito do Rio, Marcelo Crivella.
A manobra arranhou a imagem da escola e do Carnaval como um todo, tanto que a Liesa acabaria assinando um termo de ajustamento de conduta com o Ministério Público para impedir, com força jurídica, uma nova marmelada.
A resposta da Grande Rio foi anunciar um enredo – patrocinado por uma instituição de ensino – sobre educação. Mas com um mote que, no lugar de parecer um pedido de desculpas, soava como uma provocação: “quem nunca errou?”. Pegou mal. E o desfile amargou um incômodo 9º lugar, o pior desde 2004, exceto o ano da queda não concretizada. Algo precisava ser feito.
Primeiro chegou a dupla de jovens carnavalescos Gabriel Haddad e Leonardo Bora. Depois veio o anúncio da homenagem a Joãozinho da Gomeia.
“Desconfio um pouco se a agremiação está buscando um retorno. Mas é interessante que a crise em que a Grande Rio se meteu a fez abrir espaço para cabeças arejadas, no caso o Bora e Haddad. Esse arejar sobre a reflexão do Carnaval da escola é que traz o Tata Londirá”, avalia o escritor Luiz Antonio Simas, pesquisador das escolas de samba, autor de diversos livros sobre o assunto.
“Desde o lançamento do enredo, a gente tem sentido uma presença mais forte da comunidade em todos os ensaios e eventos. As pessoas queriam ver essa mudança, que reverberou muito forte na comunidade”, observa Haddad.
O samba, eleito por boa parte do especialistas o melhor do ano, também ajudou, segundo Bora.
“[O samba] Já entra para a história como um dos maiores da escola, produto dessa mudança de olhar para narrativa de enredo, para a ala de compositores, para cada componente, para quem tinha desejo de cantar algo que remetesse aos carnavais antigos. Não necessariamente um resgate. mas que encarasse essa memória identitária do que era a Grande Rio naqueles anos em que ela se fixou no Grupo Especial”, afirma o carnavalesco.
Curiosamente, Joãozinho – pai de santo, homossexual, negro e nordestino – não se comportou como uma figura marginal em sua época. O líder religioso atraiu o jet set brasileiro para a Gomeia na década de 1960, “ganhou” título de Rei do Candomblé pela então princesa Elizabeth, virou capa de grandes revistas e gravou disco.
“Não me parece ser um enredo na tradição de enredos sobre orixás. Joãozinho da Goméia vai muito além disso. Vejo como um enredo de encruzilhada, que dialoga com um personagem que fala de corpo, de Carnaval, sexualidade, religiosidade. Eu costumo dizer que ele foi uma um ser completo, que transitou por uma gama de experiências muito vasta”, analisa Simas.
Apesar da mudança de ares, o futuro dos enredos da Grande Rio – ou de qualquer escola – é imprevisível a partir de 2021. Um desfile com temática afro, por exemplo, foi cogitado para 2019, mas o patrocínio adiou o plano em um ano.
“De repente aparece uma empresa que produz extrato de tomate querendo virar enredo… E sabemos como funcionam as escola de samba. Mas tomara que se consolide uma tendência a partir das mentes arejadas dos carnavalescos”, afirma Simas.
A Grande Rio, porém, não abre mão de suas celebridades. Nem em 2020 ou nos próximos carnavais.
“Só por que uma pessoa é famosa ela não pode desfilar, não pode ter escola de samba? Detalhe: a Grande Rio foi quem quem começou a dar espaço para os famosos e sempre é criticada, mas hoje a maioria das escolas estão cheias de celebridades. E aí? Isso é um preconceito, bobo, sem nexo, de quinta”, reclama David Brazil, que herdou a missão de levar os artistas para Caxias.
“São meus amigos. Eles amam a Grande Rio. São artistas que outros pagariam cachê, mas pedem para sair na sua escola de samba, vão para Caxias. A comunidade da cidade, que não tem condições de pagar um teatro, que só os artistas na novela, lá tira foto com eles. E ninguém leva uma prata”, conclui Gayer.
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