O ator Demerson D’Alvaro como Exu na comissão de frente da Grande Rio – Fabio Motta/Riotur

Só os clichês dão conta de certos momentos. Vale para o histórico desfile da Grande Rio dedicado a Exu, que cruzou a Marquês de Sapucaí na madrugada de domingo 24 de abril, e que credenciou a escola ao título.

O mais aguardado Carnaval que se tem notícia deve ser também um marco de mudança estética e conceitual. O que vem a partir de agora deve ser influenciado pelos exus de Gabriel Haddad, Leonardo Bora e Vinícius Natal. Dificilmente a festa será a mesma após essa turma abrir novos caminhos para o Carnaval.

“Fala, Majeté! Sete Chaves de Exu” já é, no mínimo, o maior desfile da história da escola e um dos maiores do século, mostrando que o orixá não é esse diabo que pintam, traduzindo o orixá protagonista e levando a mensagem: Exu está em tudo.

“Conhecimento não é só livro. Como Exu mostra, o conhecimento está na rua, no samba, nos batuques, em todos os lugares que a gente gosta e transita”, disse Natal, o enredista, em live em junho de 2020, após o lançamento do enredo.

E foi esse o Exu onipresente exibido pela Grande Rio, desde as origens africanas, como na comissão de frente, até suas personas urbanas. Está nos bate-bolas e até no Gil do Vigor de frevo – porque quem dança frevo parece estar com Exu no corpo. É Seu Sete da Lira, é o povo da rua em movimento e energia.

Abre-alas de Grande Rio 2022 – Fabio Motta/Riotur

Tudo isso apresentado com originalidade e coragem sem precedentes no Carnaval. Nada é óbvio na Grande Rio de 2022 e seu Exu – ou seus, porque ão muitos.

O título deveria ser um mero detalhe, mas nesse caso, não. Pela terceira vez, a Grande Rio aparece como franca favorita ao campeonato inédito, uma obsessão em Duque de Caxias desde os anos 1990, quando, mesmo jovem – a escola é de 1988 -, já tinha a “marra” de veterana. Pode ser agora. Exu já sabe.

“Ferreira, chega aí”

Martinho da Vila no desfile da Vila Isabel – Marco Antonio Teixeira/Riotur

Há, porém, uma gigante a ser batida. A Vila Isabel, que veio em seguida, fechando o Carnaval, entrou com Martinho da Vila e um samba arrebatador, que clama: “canta forte que o mundo vai melhorar”. A mensagem ecoou pela Sapucaí com um sopro de esperança em tempos (ainda) sombrios.

Mesmo sem o mesmo arrojo da Grande Rio, a Vila do carnavalesco Edson Pereira entregou um desfile competente, cobrindo de alguma forma toda a vida do homenageado. Pode ter faltado alguma coisa. Talvez. Mas é que Martinho não cabe num desfile como o tamanho dos de hoje. Provavelmente daria mais certo nos 1990. Mas então que venha os spin offs de Vila 2022. Há ainda muito a ser contado sobre o sambista que carrega a escola no nome e, muitas vezes, no colo.

Na cabeça da escola, um Martinho coroado – e vacinado – lembrava quanto é “bom cantarolar que o mundo renasceu”, como diz o samba de André Diniz, Evandro Bocão, Dudu Nobre a parceiros, defendido com garra por Tinga, Gera e o time do carro de som da Vila. O mesmo som por onde o patrono da agremiação, Ailton Guimarães Jorge, o Capitão Guimarães, discursou para exaltar o amigo comunista. Coisas do Carnaval difíceis de explicar. Talvez Exu consiga.

Vila Isabel 2022 – Marco Antonio Teixeira/Riotur

Espécie de eminência parda da cartolagem do Carnaval carioca, Capitão confirmou o primeiro movimento da dança das cadeiras das escolas, com a volta do carnavalesco Paulo Barros à Vila após breves passagens por Viradouro (2019), Unidos da Tijuca (2020) e Paraíso do Tuiuti, onde fez seu primeiro enredo afro na carreira.

“O enredo afro te limita. Não pode usar determinas cores, por exemplo, dependendo do orixá”, disse Barros ao blog minutos antes de abrir o sábado com “Ka Ríba Tí Ÿe: Que Nossos Caminhos Se Abram”.

O carnavalesco desfilou pelo Tuiuti já com notícia da saída tornada pública. Educado, Barros não confirmou. Vai primeiro tirar merecidas férias em Orlando e Miami. Na volta pensará na nova casa, no novo enredo, em novo regresso às agremiações por onde já passou.

Pode ser a chance de renovar o brilho no olhar, como mostrou na Viradouro vice-campeã de 2019, de inegável beleza. Em 2022, o desfile relacionado famosas figuras e personagens estrangeiros como Barack Obama, Beyoncé e o Pantera Negra a orixás para falar sobre as lutas negras não funcionou como esperado. Não dá para dizer, porém, que o artista que revolucionou o Carnaval nos 2000 não tenha assinatura.

Mangueira retrô

Carro “caixinha de música” da Mangueira, com Delegado – Marco Antonio Teixeira/Riotur

Assinatura vista no mais verde e rosa desfile já feito por Leandro Vieira. A Mangueira de 2022 foi a apresentação “mais Mangueira” da carreira do aclamado artista, expoente da última revolução após Paulo Barros, a partir de 2016. Muito verde, muito rosa, muito Julio Matos, muito anos 1980 – um bibelô em alguns momentos, como o carro das rosas e o da caixinha de som. Um presente de Vieira, que poderíamos colocar na estante de casa ou dar de presente para os filhos.

Tratado algumas vezes como um carnavalesco econômico nas cores das escolas pelas quais trabalha, Viera perfumou e pintou a avenida de verde e rosa em vários tons. Um “verde que te quero rosa”, um “rosa que te quero verde”, como diz Cartola, parcela poética da trinca de homenageados no enredo “Angenor, José & Laurindo”, que exaltava ainda o canto de Jamelão e a dança do mestre-sala Delegado.

Juntos na comissão de frente, o trio deixou um mar de lágrimas pela Sapucaí na noite de sexta-feira. O truque da troca de roupas, reeditado pelo casal de coreógrafos Priscilla Mota e Rodrigo Néri, já fora belo por si só. Mas ainda havia Cartola, Jamelão e Delegado “de volta”, numa performance que remete à histórica (com o perdão do clichê) comissão de frente de 1999 e seu time dos sonhos de baluartes. Valeu um novo Estandarte de Ouro, como acontecera em 1999 – barbada em um ano de comissões menos inspiradas, ainda que de inegável tentativa de ousadia.

Jamelão, Cartola e Delegado na comissão de frente da Mangueira – Douglas Shineidr/Riotur

A Mais Quente

É o caso da Mocidade, que abriu o desfile reproduzindo o mito mais conhecido de Oxóssi, o de quando o orixá salvou a terra da praga enviada por uma feiticeira. Na performance, um drone – outra estrela do Carnaval de 2022 – em forma de flecha era lançada na direção da bruxa, que despencava de um pedestal. A seta, porém, passava muito longe do alvo, prejudicando o efeito.

Mas passou o recado, e quem viu aprendeu sobre o orixá padroeiro da Mocidade, para quem toca a mais importante bateria da história do Carnaval, de Mestre André, Quirino, Coé, Miquimba, Jorjão, entre outros, e de Dudu.

A flecha da comissão de frente da Mocidade – Gustavo Domingues/Riotur

O mestre de bateria liderou os ritmistas apoiando o grande samba, de refrão tão irresistível que motivou a criação nas redes sociais do adjetivo “areretizado”. O desfile, grandioso, teve evolução problemática. Carros sofreram problemas, deixando buracos pelo caminho e tirando as chances de título – ou até voltar no sábado.

Em seguida, uma desacreditada Unidos da Tijuca entrou com sua doce fábula sobre o guaraná e reanimou o sambódromo com o desfile mais colorido da noite. Inspirado no cultuado carnavalesco Oswaldo Jardim, Jack Vasconcelos, o melhor contador de histórias da safra atual, narrou o mito indígena saterê mawe sobre a criação do fruto.

Não foi preciso sequer olhar o guia – estava tudo na pista. Como quem conta uma lenda para um curumim, Jack usou todos os signos da natureza selvagem amazônica para contar a história do pequeno Kaue, que, morto pela cobra ardilosa, tem os olhos transformados no fruto do guaraná. E não precisava ler o roteiro também por outro motivo: o samba doce de Eduardo Medrado, Kleber Rodrigues e Anderson Benson. Foi lírico, talvez mais do que um dos desfiles mais aguardados da noite anterior.

A Carta da Viradouro

Viradouro 2022 – Fabio Motta/Riotur

Na sexta-feira, a atual campeã Viradouro desfilou com a esperada “Carta”, como ficou conhecido o samba em forma de epístola. O arrojo valeu um Estandarte de Ouro para Felipe Filósofo, o figuraça por trás da obra, professor de filosofia e donos de um dos bordões do ano: “salve o afetos”. O compositor também entregou versos que ajudam a traduzir o sentimento de uma época – o zeitgeist sambista: “Carnaval te amo, na vida és tudo pra mim”.

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A execução da obra enfrentou um dilema sobre o andamento do samba pela bateria do premiado Mestre Ciça – a “tropa do caveira”, na sacada da roupa dos ritmistas inspirado no Caveirinha do Cordão do Bola Preta, ele próprio um sobrevivente da gripe. Se o samba passou bem ou não, os jurados darão a palavra final.

Na pista, a tradução do Carnaval de 1919 se deu com um trabalho de pesquisa soberbo, que rendeu alegorias e fantasias de flagrante beleza, mas um pouco mais de pimenta poderia reproduzir de forma ainda mais fiel o sentimento de urgência de uma festa que poderia ter sido a última dos foliões sobreviventes da Gripe Espanhola. A Viradouro, porém, contou a história. Como fez a Beija-Flor.

Sapucaí empretecida

No Carnaval dos enredos pretos, a escola de Nilópolis falou de si, mas com a cabeça no mundo, para exaltar os feitos dos negros na história da humanidade e reivindicar o reconhecimento. A importância do momento, com o denso debate antirracista em pauta, fez da apresentação do povo da Baixada – com seu “Empretecer o Pensamento é Ouvir a Voz da Beija-Flor” – um dos momentos sublimes dos dois dias.

Claudinho e Selminha – Douglas Shineidr/Riotur

E isso partindo de um velho clichê das escolas de samba – o Egito. Ou melhor, de Kemet, reivindicando para os pretos alguns dos maiores feitos da vida humana na Terra. O imponente desfile, com a tradicional altivez nilopolitana, ainda emocionou com momentos como a homenagem ao Laíla, morto por Covid-19 em 2021. E com o papo reto da dinastia Beija-Flor, levado para a avenida com pensamentos de Lélia Gonzales, Frantz Fanon, Nei Lopes, Cabana e outros.

O segundo carro da escola, porém, demorou a entrar na avenida e passou com componentes faltando.

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Em um dos momentos mais comentados do desfile, componentes derrubavam estátuas de racistas, enquanto uma bandeira homenageava os verdadeiros heróis brasileiros, como Neguinho da Beija-Flor – este que, com fôlego de iniciante, provou que é hoje o cantor mais importante do Carnaval e, logo, um dos mais importantes do país, ainda que com reconhecimento rarefeito fora da bolha.

Rosa & Arlindo (& João)

Como acontece com o homenageado pela Imperatriz, que abriu o Carnaval de 2022 com desfile dedicado ao carnavalesco Arlindo Rodrigues. Estrela da história da festa, Arlindo é pouco lembrado fora dela, como é, por exemplo Joãosinho Trinta – citado inclusive no desfile. A Professora Rosa Magalhães, em seu retorno a Ramos, entregou um desfile que não só homenageava Arlindo, com referências ao trabalho do artista por Salgueiro, Mocidade e, claro, Imperatriz, como a colocava dentro do enredo, no papel de aluna.

Presente no último carro, que desfilou com um telão exibindo imagens do protagonista da apresentação e do ex-presidente da escola, Luizinho Drummond, morto em 2020, Rosa arrancou lágrimas dos fãs – que não são poucos -, remetendo a carnavais passados, muitos vencidos por ela, inclusive, multicampeã da era Sambódromo.

Imperatriz 2022 – Marcelo Piu/Riotur

Títulos que sobram em Madureira, na Rua Clara Nunes. A Portela, com o enredo sobre o baobá, a árvore sagrada africana, assinado pelo casal Renato e Márcia Lage, homenageou os seus, com especial atenção a Monarco, morto no ano passado. A apresentação, bela como há muito não se via na agremiação, sofreu com problemas de evolução e em alegorias – algumas desfilando com visíveis avarias. Mas o samba, pouco cotado no pré-Carnaval, passou bem defendido pelo premiado Gilsinho.

A 23ª estrela, porém, não deve vir – quem sabe não fica para o ano de centenário, em 2023, como lembrou o presidente da escola, Luis Carlos Magalhães, elegantemente convidando as coirmãs a participarem da celebração.

SalgueirÔ

Entre elas, uma velha conhecida fez uma apresentação de abertura avassaladora. Com um enredo que é a sua cara, o Salgueiro fez mostrou a anatomia geográfica da resistência negra com o recorte do Rio de Janeiro. A Pedra do Sal, os terreiros, o Theatro Municipal – com a presença luminosa da bailarina Ingrid Silva – as próprias escolas de samba e até o funk foram lembrados. O samba rendeu bem e foi berrado especialmente no trecho que repetia o nome da escola.

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Ainda que com uma parte final pouco carnavalizada – a alegoria do viaduto, com componentes animados, mostrou-se de difícil solução estética – o Salgueiro ajudou a esquentar a pista para receber a apresentação cercada de maior expectativa fora da bolha do Carnaval.

Com a homenagem ao ator Paulo Gustavo, vitimado pela Covid-19, a São Clemente teve bons momentos com a bateria e a já conhecida entrega do cantor Leozinho Nunes. Mas o desfile mais esperado fora da bolha não mostrou o mesmo humor do protagonista. A escola teve evolução acidentada e correu no fim. Com isso, a agremiação da Zona Sul, muitas vezes canetada injustamente, deve ter mais uma apuração emocionante nesta terça (26) após 11 anos no Grupo Especial. Como deve ter a Grande Rio, mas por outros motivos.

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Romulo Tesi

Romulo Tesi Jornalista carioca, criado na Penha, residente em São Paulo desde 2009 e pai da Malu. Nasci meses antes do Bumbum Paticumbum Prugurundum imperiano de Aluisio Machado, Beto Sem Braço e Rosa Magalhães, em um dia de Vasco x Flamengo, num hospital das Cinco Bocas de Olaria, pertinho da Rua Bariri e a uma caminhada do Cacique de Ramos, do outro lado da linha do trem. Por aí virei gente. E aqui é o meu, o nosso espaço para falar de samba e Carnaval.

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