Selma quase não acreditou ao ver o pai de pé pela primeira vez. Já era madrugada de terça-feira de Carnaval de 1999 quando ela se deparou, em uma televisão ligada no Terreirão do Samba, com Candeia levantando da cadeira de rodas e sambando na Marquês de Sapucaí.
“Me deu um tremor muito forte. Achei que fosse receber um caboclo. Comecei a chorar muito”, conta a filha de Candeia, emocionada, 20 anos depois de rever o pai na pele de um dos integrantes da comissão de frente da Mangueira. “Tive que beber mais umas cervejinhas para acalmar”, diverte-se.
Junto do portelense, outros 13 dos maiores sambistas já mortos foram “trazidos de volta” pelo coreógrafo Carlinhos de Jesus, seu time de bailarinos, o figurinista Luiz de Freitas e o maquiador Vavá Torres – este responsável por reproduzir de forma perfeita, com máscaras, alguns dos protagonistas do enredo. Essa turma faria uma apresentação tão célebre quanto emocionante, causando um choro generalizado no Sambódromo – e que só aconteceria uma vez.
“Ecoa no céu, Mangueira”
Em 1998, a Verde e Rosa se preparava para tentar o bicampeonato no ano seguinte com o enredo “O Século do Samba”, uma grande homenagem ao gênero. Em uma noite da disputa para a escolha do hino da escola, Carlinhos de Jesus, indo para o segundo Carnaval na Manga, avistou uma faixa entre os torcedores no Palácio do Samba com os dizeres: “Sinhô, Ismael, Pixinguinha. Cartola, Noel, Candeia. Ecoa no céu, Mangueira. Traz todo samba pra Estação Primeira”.
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Era o refrão do meio do samba concorrente de Adalberto, Jocelino e Jerônimo.
“Eu tive a ideia na hora: vou trazer todos esses personagens, que já morreram, para o desfile. E passei a torcer por esse samba”, conta Carlinhos, que guardou segredo até do então presidente da escola, Elmo José dos Santos.
“Ele me perguntava toda hora: ‘e a comissão, Carlinhos?’. E eu respondia: ‘só depois do resultado’”, diz o dançarino, hoje na Portela.
Tão logo saiu o resultado, com a vitória do preferido de Carlinhos, Elmo voltou a cobrar. O coreógrafo apenas apontou para a faixa. “Tá vendo ali? Vou trazer aqueles personagens do céu”, anunciou.
“Como?”, perguntou Elmo. “Com máscaras”, respondeu Carlinhos, ligeiro. O empolgado presidente, então, lembrou que na rua da Alfândega, no Centro do Rio, era possível comprar máscaras de plástico de personalidades, sem fazer a menor ideia do plano ambicioso do responsável pela comissão.
Inspiração em Hollywood
As referências de Carlinhos eram os filmes Uma Babá Quase Perfeita, em que Robin Williams aparece travestido de mulher, e O Professor Aloprado, onde Eddie Murphy interpreta vários personagens. Nos dois casos, a técnica de maquiagem usada incluía máscaras feitas de foam látex, uma espécie de mousse, material moderno, que sequer era vendido no Brasil. Além disso, o produto era caro, mas que permitiria, por exemplo, recriar o nariz de Cartola e o queixo de Noel Rosa.
Indicado pela Rede Globo e responsável por escolher o material, Vavá Torres foi escalado para ir a Nova York comprar o foam látex, sugerido por um profissional americano que havia trabalhado na novela Vamp.
“Desembarquei com uns 40 kg do produto, que nunca havia sido usado no Brasil”, relembra Vavá, que trabalha atualmente na TV Record.
Um estúdio foi montado dentro do barracão, mas com acesso restrito a poucas pessoas, incluindo membros da diretoria da escola. O segredo era total, como Carlinhos fazia questão que fosse, apesar da movimentação estranha com forno e batedeiras de bolo, parte do aparato usado na confecção das máscaras.
Inicialmente, o coreógrafo se escalou para encarnar Cartola, mas acabou vencido pela diretoria, que preferia vê-lo na avenida como Carlinhos. A nobre missão foi dada a Dudu, filho do dançarino, e assim foram definidos os 14 integrantes da comissão. Entre eles também estava o pernambucano André Câmara, que já havia participado do desfile campeão de 1998. Só que o desafio agora era muito maior: reviver o portelense Candeia, inclusive numa cadeira de rodas.
“Eu pensei: ‘O Carlinhos tá de sacanagem comigo, só por que eu não sambo direito?’”, diverte-se André.
Na casa de Candeia
Carlinhos fazia questão que André ficasse na cadeira desde o momento que chegasse no portão de entrada de uma das sedes da escola na rua Frederico Silva, no Centro, onde aconteciam os ensaios.
“Eu dizia para ele não sair da cadeira nem para ir ao banheiro”, conta o coreógrafo. “Foi um desafio muito grande. Levei muito tombo”, recorda o ator, atualmente diretor de novelas da Globo.
Não satisfeito com os ensaios, André, decidido a incorporar o personagem, como pedia Carlinhos, decidiu ir mais fundo nas pesquisas. Por duas vezes, foi até a casa onde Candeia morou e fez muitos sambas, no bairro da Taquara, na Zona Oeste do Rio. Na segunda visita, diante do imóvel desocupado, tomou coragem e pulou o muro.
A experiência foi decisiva para o processo de imersão na vida do homenageado. “Eu sentia o Candeia muito perto de mim. Era algo quase mediúnico, uma energia muito forte. Fui criado no kardecismo [linha do espiritismo que segue os escritos de Alan Kardec] e sabia o que estava acontecendo”, conta.
Autorização espiritual
A espiritualidade foi parte importante do trabalho de preparação, como Carlinhos relembra. O coreógrafo chegou a se consultar com um pai de santo para pedir autorização para reviver os sambistas já mortos. “Eu estava lidando com eguns [como são chamadas nas religiões de matriz africana as almas de pessoas já falecidas], então precisava realizar alguns preparos”, admite.
André lembra inclusive que, durante um ensaio, no momento que o elenco dança jongo na coreografia, uma das bailarinas esteve perto de receber uma entidade. Ele mesmo conta que, em um desses treinos, acompanhado pela bateria, sentiu algo diferente.
“O resto do grupo me perguntou o que estava acontecendo. E nem eu sabia”, recorda André, que, como único ator do grupo, ajudou os demais na construção dos personagens.
A dificuldade, em um mundo sem YouTube e com internet ainda incipiente no Brasil, era conseguir imagens dos sambistas. No caso de Nelson Cavaquinho, por exemplo, diante da escassez de informações, o jeito foi apelar para os animais.
“Pedi ao bailarino que me trouxesse referências de bichos para a gente copiar. E ele levou a de um cachorro vira-latas. Curiosamente, nas pesquisas, descobrimos que o Nelson costumava acordar de bebedeiras na rua cercado de cachorros”, diz.
No barracão, Vavá fazia os moldes para os bailarinos de forma minuciosa, tentando ser o mais fiel possível aos personagens. “Para testar, eu chamava o [Alexandre] Louzada pedia para ele reconhecer os rostos. Se ele acertasse, então eu estava fazendo direito”, conta o maquiador, que teve como maior desafio recriar o queixo de Noel Rosa, marcado pelo parto a fórceps do sambista de Vila Isabel.
A última parte da missão de Vavá foi a mais cansativa: aplicar as máscaras nos integrantes da comissão. O trabalho começou na manhã da segunda-feira do desfile, em uma sala montada no Juizado de Menores, ao lado do Sambódromo, e só terminou perto dos desfiles.
Como as máscaras entravam pela boca dos bailarinos, só era possível se alimentar com pastosos e líquidos. Mastigar era impossível.
A chegada, vindos do céu
A entrada do grupo no Setor 1 da Sapucaí também fugiu do comum. A pedido de Elmo, Carlinhos produziu um ato teatralizado para apresentar os personagens, que contaria com a participação do presidente.
“Montamos um túnel que desembocava no Setor 1, de onde saíram os sambistas. O [ator] Milton Gonçalves fazia a minha voz e a do Elmo, em que ele me cobrava: ‘Carlinhos! Cadê a comissão?!’. Eu apontava para o alto. Ele insistia e me empurrava, e eu repetia: ‘calma, Elmo, eles estão vindo do céu!’. E aí o [pianista] Luís Carlos Vinhas tocava um trecho de ‘As rosas não falam’. Nisso saía uma fumaça do túnel e surgia o Cartola. O público nem acreditava. Depois veio o Pixinguinha, ao som de ‘Carinhoso’”, narra Carlinhos.
E assim, sucessivamente, era revelada a misteriosa comissão de frente da Mangueira. Completavam o time de bambas: Clementina de Jesus, Tia Ciata, Clara Nunes, Mestre Fuleiro, Noel Rosa, Sinhô, Donga, Nelson Cavaquinho, Natal, Ismael Silva, Carmen Miranda e o Candeia de André. Cada um portando um objeto que servia como marca pessoal e uma espécie de amuleto de incorporação. Em alguns casos, originais, como os óculos de Cartola.
“Eu visitei Dona Zica e pedi os óculos, dando a desculpa que o carnavalesco queria algo do Cartola para fazer uma escultura”, lembra. A viúva do poeta mangueirense suspeitou, mas emprestou. Do jornalista Sérgio Cabral (pai do ex-governador do Rio), levou a piteira de Donga, feita de osso e com detalhes em ouro, que ainda tinham as marcas dos dentes do sambista.
“Pelo amor de Deus, depois você me devolve isso!”, cobrou o jornalista, que também colaborou com a pesquisa.
Choro coletivo
No desfile, Carlinhos lembra de ver muitas pessoas chorando na avenida. Na transmissão da TV Globo, o comentarista Haroldo Costa, com a voz embargada, não consegue falar. No camarote do Estandarte de Ouro [prêmio do jornal O Globo], Lygia Santos, filha de Donga, tenta se aproximar, em plena apresentação para os jurados, para pedir a benção ao pai, tendo que ser contida. Waldir 59 queria saber do parceiro Candeia o paradeiro de um samba feito pelos dois e escrito numa conta de luz. Tudo isso depois do atraso do bailarino que viveu Ismael Silva, justamente como acontecia várias vezes com o homenageado.
Na outra ponta da escola, Selma era impedida de chegar perto da comissão. Vindo de um princípio de AVC, a filha de Candeia foi aconselhada a não ver o grupo. “Eles ficaram com medo da minha reação”, relembra. Durante o desfile, ela estranhou a choradeira generalizada e as incontáveis congratulações. Só entenderia o motivo da comoção horas depois, ao ver o pai na TV vivido por André.
“Eu só me lembrava do meu pai na cadeira de rodas. Nunca tinha visto ele de pé, ainda mais sambando”, diz, emocionada, 20 anos depois.
A coreografia ainda incluía detalhes pessoais de alguns sambistas. A distraída Clementina de Jesus, como revelou os familiares, por exemplo, era propositalmente deixada para trás momentaneamente. Carlinhos tinha que buscá-la, estupefata com a Passarela do Samba, no momento da apresentação aos jurados.
“Ela ficava olhando abestalhada, girando em torno de si. Eu saía para buscá-la e voltava me desculpando com os jurados por ter esquecido aquela personalidade. Ela fechava o leque, dava adeusinho para os julgadores e me dava o braço para seguir”, relembra Carlinhos.
Matando a saudade
Dias depois, o programa Fantástico, da TV Globo, reuniu os integrantes da comissão, devidamente montados, e familiares dos sambistas para uma reportagem. Foi quando Selma, enfim, “reencontrou” o pai.
“Eu comecei a tremer, a suar gelado. Quase caí dura. Deu vontade de levar pra casa”, conta Selma. André recorda que, diante das demonstrações de carinho, decidiu seguir no personagem e retribuir.
“Ela e o irmão diziam ‘pai, que saudade de você’, e eu falava ‘eu também, meus filhos, eu também’”.
Na mesma ocasião, Dona Zica finalmente reviu Cartola, interpretado por Dudu. E protagonizou uma cena curiosa, como relata Carlinhos.
“Meu filho estava sentado numa cadeira, e aí chega Dona Zica por trás e começa a alisar e massagear o ombro dele, depois desceu a mão até o tronco, dizendo ‘meu nego, que saudade de você, que tempo bom. E meu filho levantou apavorado pedindo para alguém segurá-la”.
Ainda que a comissão tenha levado as três notas 10 possíveis, a Mangueira ficou apenas na 7ª colocação e, portanto, fora do Desfile das Campeãs. Havia inclusive uma máscara sobressalente para cada um, feitas justamente para o sábado seguinte. Coincidentemente, a gravação do Fantástico só foi possível porque a escola não ficou entre as primeiras.
No entanto, Carlinhos busca uma explicação no mundo espiritual: “Era para acontecer uma vez só. Eles [sambistas] não quiseram voltar, estão lá no canto deles. Tenho esperança de que um dia eles digam para mim: ‘Carlinhos, queremos visitar a Sapucaí de novo’. Não descarto a possibilidade dessa comissão voltar com os mesmos personagens”.
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O maior desfile de todos os tempos, a comissão de frente da mangueira; emociona até quem não era mangueirense: Carlinhos de Jesus o maior coreógrafo de todos os tempos...convidará meu filho André Luiz, ator, à época, hoje Diretor da Globo, para desfilar na Comissão de frente" sigilo absoluto" sobre o tema...mas eis que de repente para espantosa emoção de toda Sapucaí, surgem os maiores sambistas, já falecidos e sob a batuta de Carlinhos, como se tivessem decido do céu dos artistas...nós intrigavam! Quem eram eles? Espíritos... não eram artistas que encarnavam os grandes artistas, cantores, letristas; enfim a plateia gritava seus nomes e eles sambando nos encantavam: E eu estupefata...procurava meu filho André Luiz, quem era no meio daqueles "espíritos" o meu filho? Eis que para meu espanto! Vi Candeia, levantar da cadeira de rodas onde brilhantemente rodopiava... levantar e sambar, na malandragem do jogo de pernas e corpo...eu o reconheci; àquela comissão de frente me fez virar mangueirense de corpo e alma. Foi o maior espetáculo de todos os tempos! Obrigada Carlinhos de Jesus, ao meu filho André Luiz, eu desejo que vocês dois , levem esse ano novamente emoção: luz? câmera ação!!!
Que lindooo!! Vontade de chorar!
Lindo, lindo, lindo!
Emocionante de ler e imagino que tenha sido algo extraordinário de se ver.
Obrigada pela excelente matéria.
Muito bem escrita e ilustrada!
E eu... fiz parte desta BELA comissão!!!! AAMMO!!!! ????
que acontecimento maravilhoso!
Cara, ainda sinto arrepios com esse desfile... Não foi só o início, a escola inteira com aquele samba lindo, a intepretação do Jamelão, a passagem nas alegorias... Inesquecível!!! Acho até hoje um pecado não ter ao menos voltado nas campeãs. O desfile mais emocionante que já assisti da Mangueira, ainda ecoando “deixa falar a nostalagia...”. Demais!!!!
Chorei litros ao assistir esse desfile. Agora, dois personagens fundamentais ficaram de fora: João da Baiana (grande amigo de Sonha e Pixinguinha) e, sobretudo, Paulo Benjamin de Oliveira, o Paulo da Portela, um dos fundadores da Majestade do Samba e, acima de tudo, o cara que foi à luta para que as escolas de samba e os sambistas passassem a ser respeitados como os(as) artistas que eram e não como os delinquentes que nossas elites acreditavam que fossem. Penso que a presença do Carlinhos de Jesus na comissão de frente era desnecessária e que a Carmem Miranda, não obstante sua relevância para a cultura brasileira, em termos de samba, não chegou nem perto dos dois ausentes. Idealmente, os 15 bambas a bem representar esse século de samba seriam esses. Agora, o brilho desse momento é indescritível. É o único desfile que assisto sempre que posso além dos da minha Portela!
Em prantos, depois de tanto tempo. lindo d+