O dia em que Zeca Pagodinho subiu a Mangueira para uma foto com a ‘Patota de Cosme’

Tem gente que diz que o Zeca não é lá muito pontual. “Não é verdade…”, defende o amigo Milton Manhães que, ainda assim, levou um chá de cadeira (de bar) do cantor naquela tarde de 1987, enquanto aguardava o sambista para uma sessão de fotos. Depois de mais de uma hora de espera, Zeca apareceu no botequim em Del Castilho, zona norte do Rio, onde marcou de encontrar com a turma da gravadora RGE. A ideia era pegar o caminho para a Mangueira, onde fariam a imagem da capa do disco “Patota de Cosme”. A missão, porém, foi abortada.

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“Ele chegou já era mais de 12h e pediu uma cerveja. Aí é aquilo, né? Pede mais uma, e outra… Eu também gosto de uma cerveja, comecei e beber com ele”, relembra o fotógrafo Oskar Sjostedt, escalado para mais uma capa da RGE.

“Quando eu vi já era mais de duas horas da tarde. Virei pro Manhães e disse: ‘não dá pra fazer mais foto não, amigo…'”, completa Oskar.

Tatuagem de Cosme e Damião

O fotógrafo talvez não imaginasse o desafio que encararia dali uns dias, para fotografar a já estrela da música Zeca Pagodinho cercado de crianças no Buraco Quente da Mangueira, e fazer a imagem que ilustraria a capa do álbum.

A ideia nasceu da devoção do sambista por Cosme e Damião, os santos gêmeos protetores das crianças, que ele mandou inclusive tatuar no lado esquerdo do peito.

“Eu estava com ele no dia da tatuagem”, lembra o produtor Marcos Salles, coordenador de produção do “Patota”. “Foi a seco. Ele gritava, e eu ali do lado dele”, recorda Salles.

O disco

Zeca nos anos 1980, já com a tatuagem de Cosme e Damião – Reprodução/Instagram

Gravado em abril e maio de 1987, “Patota de Cosme” foi o segundo disco solo de Zeca. O compositor foi alçado ao sucesso como cantor, mesmo a contragosto do artista, após uma estreia estrondosa em 1986, com um disco homônimo que teve praticamente todas as faixas executadas nas rádios. Um fenômeno não só do samba, mas de toda música brasileira.

“Ele não queria cantar”, lembra Manhães, que, depois da descoberta feita por Beth Carvalho, botou Zeca em estúdio para gravar “Raça Brasileira”, disco de 1985 que reuniu mais quatro sambistas: Elaine Machado, Jovelina Pérola Negra, Pedrinho da Flor e Mauro Diniz. Todos garimpados nos pagodes do Rio de Janeiro e Baixada Fluminense.

“Tinha samba todo dia no Rio, em tudo quando é canto. Eu e o Milton [Manhães] íamos com o gravador para os pagodes pra registrar as músicas”, lembra Salles, parceiro de andanças de Manhães.

Nessas, descobriu a turma do “Raça Brasileira”, talvez o maior “pau de sebo” da história do samba, apesar da descrença dos executivos da gravadora.

“A gente conheceu esses sambistas nos pagodes do Rio, como o do Cacique de Ramos”, lembra Manhães, que renega a denominação jocosa para os discos que reúnem vários artistas. “Eu nunca chamei de ‘pau de sebo’. Pra mim é disco de categoria”, reclama Manhães, responsável por produzir Fundo de Quintal, Almir Guineto, Arlindo Cruz, Dona Ivone Lara e outros da parte funda da piscina do samba.

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Depois do sucesso do “Raça”, o produtor viu suas crias serem assediadas pelos concorrentes do mercado fonográfico. Um dia entrou na sede da gravadora e mandou o papo reto para os chefes: ou contratam todos ou vão perder dinheiro. Para convencer os executivos, contou ainda com a ajuda do então chefe de vendas da RGE, chamado Zé Luis, um homem conhecido pelo faro para o sucesso.

Frenesi e sutiãs no palco

Deu certo. Zeca Pagodinho explodiu com o disco de estreia, e o menino franzino e discreto que gostava de sossego e liberdade no subúrbio passou a circular pelas rádios e programas de TV.

“A gente fazia três, quatro shows por noite, principalmente em São Paulo”, recorda Salles, também integrante da banda formada para acompanhar Zeca. “As mulheres jogavam sutiãs no palco. Era tipo Beatles! E ele, magrinho, olhando aquilo tudo, não entendia nada”, narra.

Era esse Zeca, já famoso e prestes a encarar ao desafio do segundo disco, que subiria o morro da Mangueira para fazer uma foto que entraria para a iconografia da MPB em 1987.

Depois de escolhido o título do disco, Zeca teve a ideia da foto com as crianças. E acionou “Magalhães”, como ele chamava Manhães. “O Zeca me procurou e disse pra fazer a foto na Mangueira, juntando as crianças do morro”, conta o produtor.

“Só as crianças!”

A segunda tentativa deu certo. Zeca não se atrasou, e a equipe rumou tranquila para o morro. Subiram de carro até onde foi possível. Depois, só a pé. Escolheram o local, perto de uma birosca, e lá permaneceram enquanto a produção cuidava de organizar – ou tentar – a confusão que se formou em torno do sambista.

O primeiro desafio: deixar apenas crianças no enquadramento da câmera Hasselblad de Oskar. Este, por sua vez, berrava com o assistente em busca de ajuda para tirar de perto os bicões – no caso, os adultos.

“Eu tinha que ficar gritando: ‘pessoal, SÓ AS CRIANÇAS!”, lembra o fotógrafo.

“Todo mundo queria aparecer na foto”, confirma Manhães.

O tempo foi passado e, com ele, a boa luz da tarde. O relógio bateu 17h, e o lusco-fusco mangueirense só deixava as coisas ainda mais complicadas para Oskar, que ainda tinha dispensado o auxílio do tripé. “A foto estava marcada para mais cedo. Não imaginei que ia precisar”, conta.

As condições no local ajudam a explicar o “jeitão” da foto. “Ela ficou um pouco azulada. Não tinha mais luz. Tive que puxar o ISO do filme [sensibilidade] para 800 para conseguir fazer as fotos”, conta o fotógrafo.

Zeca, lembra Oskar, não tinha a menor paciência para fotos. Autor das imagens de várias capas da turma do pagode dos anos 1980, o fotógrafo revela que o sambista era um dos mais arredios para posar. Se tivesse que passar maquiagem então…

Duas fotos

“O Zeca dava um trabalhinho…”, diverte-se. “Ele chegava no estúdio já reclamando: ‘ô, Branco [como ele se referia a Oskar], vamos fazer logo esse negócio aí porque não tenho muito saco pra foto!'”, revela.

Mas naquele dia o “modelo” estava incrivelmente paciente. De boné azul, o homem mandou distribuir doces para as crianças e aguardava com um sorriso no rosto, sem se preocupar com o caos em volta.

“Todo mundo se acotovelando pra ficar do lado dele, inclusive os adultos, um monte de penetra! E ele lá no meio só rindo”, diz Oskar, que bateu 10 das 12 foto do filme. Como já previa, quase todas tremidas, e poucas se salvaram: só duas. Assim, conseguiu a imagem da capa e a da contracapa. (Ufa) Mas não sem as marcas do tumulto.

Contracapa do Patota de Cosme, com a foto que “sobrou” e a imagem de Cosme e Damião

“Quando puxa muito o ISO, a imagem perde um pouco da cor e granula. Dá pra ver que a foto não é uma baita de uma foto, mas porque as condições não foram das melhores”, lembra Oskar, que não voltaria a fazer as capas de cantor depois que ele trocou de gravadora. E nunca mais levou chá de cadeira – de bar ou de estúdio – do sambista. O que, aliás, garante o amigo Salles, está longe de ser uma marca do cantor.

“Comigo ele sempre foi pontual. O Zeca gosta de acordar cedo”, defende o produtor, que lembra: “ele sempre diz: ‘chego antes pra ver quem vai chegar atrasado'”.

Ah, e o Patota foi mais um sucesso. “Todas as músicas estouraram”, diz Salles. E lá foi Zeca para mais uma peregrinação em programas de rádio e TV. Só que dessa vez, amadurecido, já lidando melhor com a fama.

“Um dia eu disse pra ele: agora não tem mais jeito, você vai ser o maior sucesso desse país”, narra Manhães, que comemora a escolha de Zeca para enredo da Grande Rio no Carnaval 2023.

O Setor 1 localizou três crianças presentes na foto da capa do “Patota de Cosme”. Leia aqui em breve.

Romulo Tesi

Romulo Tesi Jornalista carioca, criado na Penha, residente em São Paulo desde 2009 e pai da Malu. Nasci meses antes do Bumbum Paticumbum Prugurundum imperiano de Aluisio Machado, Beto Sem Braço e Rosa Magalhães, em um dia de Vasco x Flamengo, num hospital das Cinco Bocas de Olaria, pertinho da Rua Bariri e a uma caminhada do Cacique de Ramos, do outro lado da linha do trem. Por aí virei gente. E aqui é o meu, o nosso espaço para falar de samba e Carnaval.

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