Como Beija-Flor e Grande Rio viraram rivais no Carnaval de 2025 por um erro de digitação, camisas e gritos de torcida

Escultura de Laíla da Beija-Flor ganhou faixa de campeão no desfile destivo do sábado – João Salles/Riotur

“Respeita pra ser respeitado!”

Assim o presidente da Beija-Flor, Almir Reis, encerrou o discurso na arrancada do desfile da escola, antes do derradeiro cortejo do Carnaval no Sábado das Campeãs, quando o inclemente sol do verão carioca já ofuscava o povo da margem direita da Marquês de Sapucaí.

Mesmo sem citar nominalmente, o recado tinha endereço certo: a torcida da Grande Rio, vice-campeã – ou pelo menos a parcelo inconformada com o resultado que deu o título à escola de Nilópolis. E aqui no recorte pela torcida pode ser elástico, cabendo mais do que se supõe no aparente clima de respeito mútuo entre as agremiações.

Seja qual for o alvo específico do mandatário nilopolitano, o recado foi uma das últimas cenas da temporada 2025, que pode ter desdobramentos e spin offs nos próximos dias, dependendo da disposição das partes em questionar e defender o resultado das notas. Mas que já deixou uma marca de rivalidade que ajudou a apimentar um Carnaval que não dava sinais de ebulição no campo da disputa. Isso até a Quarta-Feira de Cinzas.

Para entender o que aconteceu, é preciso voltar à Segunda de Carnaval.

Grande Rio no Desfile das Campeãs de 2025 – Marco Terranova/Riotur

Os desfiles

Segunda a se apresentar no segundo dia de desfiles do Grupo Especial, a Beija-Flor arrebatou até os não-alinhados com uma apresentação que unia a bela plástica do carnavalesco João Vitor Araújo ao o que há muito não se via nos cortejos nilopolitanos: o chão forte, com o povo cantando o (grande) samba dedicado ao ex-faz-tudo, maior nome da história da escola, Luiz Fernando Ribeiro do Carmo, o Laíla. Bem do jeito que o homenageado gostava e exigia, diga-se. Tudo isso na despedida (valendo nota) de Neguinho. A Beija-Flor transcendeu. E desembocou na Praça da Apoteose aclamanda campeã informal da Segunda.

As notas, porém, passaram a ser fechadas ao fim de cada dia, o que tornou a apuração um tanto imprevisível. Até ali, o título, segundo público e crítica, estava entre Beija-Flor e Imperatriz, a “campeã” de domingo.

Até a passagem da Grande Rio. Com um desfile rico e patrocinado sobre o mito paraense das três princesas turcas encantadas, a escola de Duque de Caxias embolou a tabela, como se diz no futebol. O consenso em torno de Imperatriz e Beija-Flor fora abalado por uma adversária com força para – previa-se – causar um empate triplo.

Eis as notas

Na quarta-feira, porém, deu Beija-Flor. E foi aí que o caldo começou a ferver. No dia seguinte, a Liesa divulgou o mapa com um erro – de digitação, verificou-se – em que as notas de bateria da Grande Rio, justamente onde a escola perdeu o décimo decisivo, tinham um 10 a mais, em vez do 9.9. Se assim fosse, a escola dividiria o título com a Beija-Flor.

“Imagina… A comunidade inteira veio pra cima querendo saber”, disse o diretor de Carnaval da Grande Rio, Thiago Monteiro, ao blog.

Thiago Monteiro, diretor de Carnaval da Grande Rio, no Desfile das Campeãs de 2025 – Romulo Tesi

“Esse equívoco, e realmente foi um equívoco, fez com que estourasse alguma coisa, né? Algum barulho, algum burburinho… A fonte veio daí, e depois que foi se desenrolando”, completa o dirigente na concentração do Sambódromo, onde já era possível ver camisas saudando o que uma parcelo dos caxienses chama de “verdadeira campeã” ou “campeã do povo”. A iniciativa, informou a assessoria de comunicação da Grande Rio, não foi da escola.

Até faixa de campeão da Grande Rio apareceu, como ostentava Ari Xavier, assistente do coreógrado Bira Dance, que se deixou fotografar de corpo inteiro mostrando a peça provocativa.

Fafá só quer paz – e som melhor

Em contraste, Fabrício Machado, o Fáfa, premiado mestre de bateria da Grande Rio, limitava-se a se defender de pelo menos uma das notas 9.9 que recebeu, fatal para o resultado. Para Fafá, o som – ruim – do Sambódromo contribuiu para a avaliação do jurado de bateria.

Mestre Fafá, da Grande Rio, no Desfile das Campeãs de 2025 – Eduardo Hollanda/Rio Carnaval

“Isso aí é uma briga que as escolas tem que ter também. Já passou da hora do Carnaval do Rio de Janeiro ter seu próprio som”, clama, postado na esquina da avenida Presidente Vargas com Sapucaí enquanto era requisitado para fotos com fãs e recebia o afago de solidários ao drama caxiense. Entre eles o diretor executivo da Viradouro, Marcelinho Calil, também descontado em bateria. Também por causa de bossas inspiradas nos regionalismos dos seus enredos: Grande Rio com Pará; Viradouro, Pernambuco.

“Eu sou um cara da paz. Não me envolvo em polêmica e confusão. Sempre tento ajudar todo mundo”, disse o mestre, que aparece em um vídeo que viralizou sendo consolado por integrantes das coirmãs após a apuração na Cidade do Samba. Uma cena cândida que precedeu o rebuliço que estava por vir.

“Inclusive eu queria aproveitar esse momento para agradecer a Bruna e o Diogo [porta-bandeira e mestre-sala, respectivamente, da Mocidade Independente de Padre Miguel], que foram os primeiros a me abraçar”, disse, antes de puxar pela memória quem mais deveria agradecer: “os amigos da Imperatriz, Ciça, Lolo, Marcão, Dinho”, começando pelos colegas de batuta das outras escolas, citando ainda Ruth e Julinho, casal de porta-bandeira e mestre-sala da Viradouro, mas deixando as reticências no ar, anunciando que a lista é maior.

“Muita gente fala que foi injustiça. Mas é uma injustiça que custa o campeonato”, diz, em raro momento público de indignação. E sem cultivar a ilusão de uma mudança no resultado.

“Eu só quero que minha bateria passe hoje [sábado, 8] com muita tranquilidade, muita resiliência, muita humildade, sabedoria. E que não não tenha protesto”, concluiu, sem imaginar que, na mesma noite, o Setor 1 receberia a Grande Rio aos gritos de “é campeã”. E justamente quando a bateria se apresentava nos primeiros metros de avenida.

Clima de Maracanã

A canto foi acompanhado no gogó e nas palmas por componentes, parte da diretoria e alguns membros da equipe – Fafá fora dessa, ocupado de comandar a Invocada bateria. Assim que o volume dos gritos diminuiu, ganhou força, aos poucos, a resposta de um povo vestido de azul que já ocupava o Setor 1.

Era a turma de Beija-Flor, que devolveu com gritos de “vice-campeã!”. Estava instaurado o clima de Maracanã na curva da Sapucaí.

Almir Reis, presidente da Beija-Flor, no Desfile das Campeãs de 2025 – Eduardo Hollanda/Rio Carnaval

“Copiar o futebol está fora de cogitação”, protesta o presidente da Beija-Flor. Enquanto a Grande Rio terminava seu desfile de vice-campeã, o dirigente atendia uma fila de cumprimentos, atendendo majoritariamente os companheiros de escola, mas também gente de camisa de outras cores.

“Isso é algo que nós temos muito no Carnaval, que é a união. Não existe espaço mais democrático do que o Carnaval”, assegurou, antes de fazer um discurso inspirado pelo duelo de gritos de torcida no primeiro setor do Sambódromo.

“Tenho que respeitar, né? Eu aprendi e levo para a minha comunidade que a gente tem que respeitar as coirmãs. Ora, se isso não acontece com outros, não posso fazer nada”, declarou, já dando sinais do que viria. “A torcida vai pelo que ela vê dos seus dirigentes”, completou, em frase que poderia ter saído da boca de Laíla.

Filha do enredo

Autointitulada “Filha do Enredo”, Laísa é filha de Laíla, como o avatar entrega. E enquanto os dirigentes se mexiam nos bastidores, ela foi a face mais combativa e debochada da guerra de memes do X (antigo Twitter), Instagram e toda rede social que pudesse se tornar em campo de batalha virtual.

Longe da formalidade e polidez do trato entre os líderes das escolas, na internet o jogo é mais bruto. E foi nele que Laísa travou sua guerra particular em defesa de Nilópolis, reagindo com escárnio aos ataques que iam desde ao simples questionamento pelo resultado até acusações, sem prova, de manipulação.

Os posts de Laísa variavam entre análises da conjuntura do Carnaval, demonstração de solidariedade às demais escolas e a pura e simples zoeira. Num deles, a “filha do enredo” posou sobre uma moto, de óculos escuros, emoldurada por pilhas de latas de cerveja e o caminhão pintado de ouro da marca de bebida patrocinadora do Grupo Especial. Como cenário, a quadra da Beija-Flor em situação de “pós-festa”.

Tudo para responder uma detratora que acusara a escola de gastar todo dinheiro para comprar o título, sem ter sobrado algum para comprar cerveja premium. “Latão é f…”, publicou a rival.

“Gente, agora tô ligando pra [marca de cerveja] escontroladamente porque a [nome da adversária] não achou de bom tom a CAMPEÃ ter latões. Vou ter que mandar voltar até esse caminhão dourado. Desculpa, amiga!”, ironizou Laísa.

“Minha rotina está sendo beber cerveja dourada e responder o pessoal na internet”, brinca. “Eu só queria curtir meu título, mas parece que algumas pessoas não entenderam isso”, completou Laísa, sem fugir do estilo do pai. Queria paz, mas é boa na guerra. “Eu só queria levantar meu troféu, beber uma cerveja, ficar sem voz, gritar… E é isso que eu estou fazendo”, arrematou, fazendo questão de dizer que não atacou as coirmãs, apenas se limitou a defender o pai e a Beija-Flor, que já desfilou na Grande Rio e tem amigos em todas as escolas.

“Estou feliz pela Beija-Flor e pelo mai pai, que mesmo falecido foi campeão”, diz, com uma observação: “Acho que ele teria mandado eu sair da internet, mas para ele falar no meu lugar”.

E lá foi Laísa, uma das diretoras de bateria da Beija-Flor, para o bis do gurufim de Laíla. No carro de som, Neguinho da Beija-Flor se prepara para o canto final no posto de intérprete oficial da escola. Entoa o oportuno “Mulher”, motivado pela efeméride, parte previsível do setlist dos esquentas. Em seguida, vai de “O Mundo Místico dos Caruanas nas Águas do Patu-anu”, enredo campeão de 1998 baseado em um mito do Pará. Justamente o enredo da Grande Rio de 2025.

Neguinho da Beija-Flor no Desfile das Campeãs de 2025 – Eduardo Hollanda/Rio Carnaval

Romulo Tesi

Romulo Tesi Jornalista carioca, criado na Penha, residente em São Paulo desde 2009 e pai da Malu. Nasci meses antes do Bumbum Paticumbum Prugurundum imperiano de Aluisio Machado, Beto Sem Braço e Rosa Magalhães, em um dia de Vasco x Flamengo, num hospital das Cinco Bocas de Olaria, pertinho da Rua Bariri e a uma caminhada do Cacique de Ramos, do outro lado da linha do trem. Por aí virei gente. E aqui é o meu, o nosso espaço para falar de samba e Carnaval.

Adicionar comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.