A Paraíso do Tuiuti divulgou neste domingo a sinopse do enredo “O Salvador da Pátria”, tema do desfile da escola no Carnaval 2019, assinado pelo carnavalesco Jack Vasconcelos.
O protagonista do enredo é o bode Ioiô, um dos personagens cearenses mais famosos localmente, mas pouco conhecido fora do estado. O bicho chegou a Fortaleza em 1915, seguindo os passos dos retirantes que se mudaram para a capital para escapar da seca. Na cidade, ficou tão famoso pelas andanças que ganhou a simpatia das pessoas – sobretudo pelos boêmios, e dizem que até cachaça ele bebia. Em 1922, com as eleição em cédulas de papel, Ioiô foi eleito vereador, como forma de protesto da população. Mas, apesar do desejo popular, o bode nunca tomou posse.
No entanto, a sinopse faz menções a outro famoso e controverso personagem político brasileiro: o ex-presidente Lula, mesmo sem citar o petista uma vez sequer no texto. Mas as referências podem ser lidas no texto: tal como Ioiô, Lula foi retirante e saiu do interior com a família em busca de sobrevivência.
“Vocês que fazem parte dessa massa irão conhecer um mito de verdade: nordestino, barbudo, baixinho, de origem pobre, amado pelos humildes e por intelectuais, incomodou a elite e foi condenado a virar símbolo da identidade de um povo. Um herói da resistência!”, diz o carnavalesco no texto, usando trecho de “Admirável Gado Novo”, de Zé Ramalho e apresentando o bicho com algumas das características que cabem numa descrição do ex-presidente – dependendo do ponto de vista -, atualmente preso em Curitiba.
Em seguida, a referência mais explícita cita um argumento defendido pela força-tarefa da Lava Jato para condenar Lula no processo da triplex do Guarujá: “Não posso provar, mas tenho total convicção da autenticidade de tudo o que a ele atribuíram…”.
Como é sabido inclusive pelos entusiastas da operação, e repetido pelos defensores do petista, não há provas materiais contra o ex-presidente no processo que levou o juiz Sérgio Moro a condená-lo. A pena depois foi revista e aumentada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região para 12 anos e um mês, pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro.
O próprio título do enredo é o mesmo da novela da TV Globo, que foi ao ar em 1989. De autoria de Lauro César Muniz, “O Salvador da Pátria” contava a história de Sassá Mutema (vivido por Lima Duarte), um simplório e humilde boia-fria que é manipulado por aproveitadores e eleito prefeito da fictícia Tangará. Pela proximidade com as eleições presidenciais, a novela foi acusada na época de fazer referência a Lula, então candidato pelo PT, derrotado no segundo turno por Fernando Collor.
Torcida
Em 2019, a Tuiuti defenderá o vice-campeonato conquistado este ano, com o já clássico enredo sobre os 130 anos da abolição da escravatura no Brasil, após a assinatura da Lei Áurea, em desfile que rendeu críticas à Reforma Trabalhista e o presidente Michel Temer. Este, representado por um vampiro.
No próximo ano, a pegada crítica e política será mantida. Pelo jeito, com o reforço da mesma torcida à esquerda conquistada depois da apresentação antológica e polêmica sobre a escravidão. Mais: quando a Tuiuti entrar na Sapucaí, o Brasil já terá um novo presidente, recém-eleito. Para saber o que está na cabeça do inventivo e instigante Jack Vasconcelos, só na avenida. E a sinopse já alerta, em caixa alta: “VOTAR EM ANIMAIS É E SEMPRE SERÁ POSSÍVEL”.
Em tempo: Ioiô morreu em 1931 – alguns dizem que de cirrose. Foi empalhado e doado ao Museu do Ceará, onde está em exposição até hoje.
Leia a sinopse na íntegra:
O SALVADOR DA PÁTRIA
JACK VASCONCELOS – CARNAVALESCO
Vocês que fazem parte dessa massa irão conhecer um mito de verdade: nordestino, barbudo, baixinho, de origem pobre, amado pelos humildes e por intelectuais, incomodou a elite e foi condenado a virar símbolo da identidade de um povo. Um herói da resistência!
Não posso provar, mas tenho total convicção da autenticidade de tudo o que a ele atribuíram…
Não se sabe muito bem de qual paragem veio aquele cabra, ou melhor, bode. Dizem que era retirante da grande seca no sertão cearense imortalizada pela escritora Rachel de Queiróz, em O Quinze. Naqueles tempos de República quase balzaquiana, o Governo interceptava as procissões de fugitivos da miséria. Com medo de uma invasão furiosa, devido à fome que consumia aqueles esquecidos teimosos em se fazerem lembrar, pastorava o povaréu num campo de concentração antes que chegassem até a cidade. Porém, como o sertanejo é, acima de tudo, um forte, quando viu a terra ardendo e sentiu a baforada do Zé Maria no cangote o bode bumbou até Fortaleza com a coragem e a cara.
Penou, mas chegou.
Sentiu a brisa fresca do litoral acariciar aquela carcaça sofrida, castigada. Deixou para trás o passado capiongo, quando foi comprado por José de Magalhães Porto, representante do industrial Delmiro Gouveia, correspondente da empresa britânica que comercializava couros, peles, sementes de algodão e borracha, a Rossbach Brazil Company, localizada na Rua Dragão do Mar, Praia do Peixe. Dali virou mascote com direito à liberdade de ir e vir que, aliás, era bem praticada. Apreciava o movimento de barcos e jangadas enquanto perambulava entre os pescadores e seguia o aroma dos tabuleiros das merendeiras, tanto que os populares da região logo se afeiçoaram ao bichim. Dizem até ter remoçado em sua nova vida à beira-mar.
Ao cair da tarde, arribava pra Praça do Ferreira sassaricar com os artistas e intelectuais, herdeiros da Padaria Espiritual, no Café Java. Os boêmios acreditavam ser o poeta Paulo Laranjeira, reencarnado depois que o cabrão reagiu ao ouvir uma composição feita pelo desencarnado em homenagem a sua decepção amorosa. Desde então, o bode caiu nos braços da boemia. Bebericava, pitava, serestava pelas ruas, vielas e mafuás, botando boneco noite a fora.
De tanto vai e vem passou a ser chamado de Ioiô.
E lá se ia o bode Ioiô bater seus cascos Belle Époque alencariana adentro, sem a menor cerimônia, entre as modas copiadas do estrangeiro pelas “pessoas de bem” da sociedade. Passeou de bonde elétrico, frequentou o Theatro José de Alencar, participou de saraus literários e até comeu a fita inaugural do Cine Moderno.
Sentiu as Mademoiselles espilicutes exalando um perfume de civilidade europeia quando saíam da Maison Art-Nouveau em direção ao Passeio Público. Doce aroma que era constantemente interrompido pelo peculiar cheirinho de certo bode que dava rabissaca pro Código de Conduta imposto que, dentre muitas medidas disciplinadoras, proibia animais soltos nas ruas. Um Dândi sertanejo tão incômodo como as camadas pobres e marginalizadas as quais o poder desejava esconder por debaixo dos tapetes chiques para não atrapalharem o savoir-vivre nas avenidas, confeitarias, jardins, clubes e salões. Assim, velhos hábitos considerados de gente subdesenvolvida deveriam ser substituídos por novos costumes, os bons modos. Tanto cidade quanto população careciam ser modificadas, remodeladas num choque de aformoseamento. Afinal, para a elite, as maravilhas do mundo moderno não harmonizavam com a matutice do povo.
Povo, aliás, que já era mamulengo nas mãos dos poderosos, há muito tempo. A política republicana havia herdado antigos sistemas coloniais que se consolidaram em influentes famílias tradicionais e no domínio dos coronéis latifundiários, pois a prática do “manda quem pode e obedece quem tem juízo” era um tiro certeiro. Cabia à população ser tratada como gado trazido em cabresto curto, quais as aves de rapina direcionavam para onde quisessem, e cativos em currais eleitorais para que ela mesma sustentasse o sistema que a prejudicava.
Com um cenário governamental mais parecido com um covil repleto de animais nocivos ao interesse público e a feérica intervenção de aculturamento, a insatisfação popular só crescia. Até que a resposta do povaréu veio em forma de protesto no mais inesperado momento: nas eleições. Ao abrir a urna eleitoral se ouviu o berro do povo escrito nos votos que elegeram o bode Ioiô para vereador na Câmara Municipal de Fortaleza. Um deboche com os poderosos. Molecagem porreta! Sem ter feito campanha um animal ruminante era eleito pelo povo como seu representante! E, de fato, há muito já era um símbolo da identificação sertaneja que a elite (ameaçada pelas cédulas de papel) queria suprimir.
Contam que o fuá já estava instalado quando os poderosos articularam um golpe para que o bode Ioiô sofresse um impedimento e não assumisse o cargo ao qual foi eleito legitimamente, em processo democrático. Porém, a justificativa jurídica de incompatibilidade de espécie não livrou os políticos daquele vexame retumbante e só alimentou o monstro: Ioiô saiu da vida pública para entrar na história.
O bode mitou. Até hoje seus admiradores o defendem como ícone de empoderamento popular, representatividade dos marginalizados. Segue comandando a revolução do inconformismo seja nas lembranças dos memorialistas, nos cordéis, nos livros, na sala de um museu ou pelos blocos carnavalescos. Ioiô é a imagem da resiliência de um povo que faz graça até da própria desgraça e, com esse jeitinho inigualável, nos revela o genuíno salvador da nossa pátria: o bom humor.
[Isso aqui, Ioiô, foi um pouquinho de Brasil].
LEMBRETE:
VOTAR EM ANIMAIS É E SEMPRE SERÁ POSSÍVEL.
Ioio bem que podia se metamorfosear em metade de um touro bem bravo a chifrear os assentos de prefeituras, de governos , do congresso e das 13 cadeiras togadas do judiciario.
Ahhhhh quem dera se o povo tivesse a coragem de ioio : (6