Em tempos de divulgação de sinopses e de escolha de sambas nas escolas, o comentarista Bruno Filippo analisa a relação entre enredo e samba.
Bruno Filippo*
Em 1984, ano de grande importância simbólica para o moderno desfile das escolas de samba porque marcou a inauguração do Sambódromo, a Vila Isabel desfilou com enredo que fazia referência ao próprio universo do carnaval. A letra do samba de Martinho da Vila retratava o processo orgânico do ciclo de criação de um desfile que não se esgota na simples execução técnica de tarefas manuais – e é perpassado por um sentimento passional que envolve centenas de componentes humildes e anônimos. Os primeiros versos de Pra tudo se acabar na quarta-feira rendem homenagem ao compositor de samba-enredo:
A grande paixão
Que foi inspiração
De um poeta é o enredo
Que emociona a velha-guarda
Lá na comissão de frente
Como a diretoria
Nestas três décadas, a velha-guarda foi para o fim do desfile. Cedeu lugar às apresentações teatrais, por vezes pirotécnicas, que fazem das atuais comissões de frente uma atração à parte. Porém a grande paixão do poeta – ou seja, a fonte de inspiração do compositor de escola de samba – continua sendo o enredo. Sem o tema proposto pela escola para ser desenvolvido no dia do desfile, o samba-enredo perde sua especificidade e não se fixa como gênero musical singular no Ocidente, pela preponderância da narrativa épica em detrimento do subjetivismo lírico presente na música popular.
Como construção histórica do substantivo composto, a junção do samba com o enredo fez trajetória inversa à que desuniu velha-guarda e comissão de frente. À época dos primeiros desfiles, no início da década de 30, não existia samba-enredo como se conhece hoje: não havia a obrigatoriedade de atrelar o samba ao enredo. Essa prática era característica dos ranchos, a principal atração do carnaval do Rio até a ascensão das escolas de samba, cujas músicas tocadas, as marchas-rancho, aludiam ao tema com que desfilavam. E, à maneira do partido-alto, muitos sambas tinham apenas a primeira parte, que era entoada pelas pastoras, sendo a segunda improvisada pelos compositores. Além disso, admitia-se que as escolas pudessem cantar mais de um samba ao longo do cortejo.
Em pesquisas sobre o período, é fácil deparar com sambas cujas letras destoam inteiramente do título do enredo. No vitorioso carnaval de 1935, por exemplo, o enredo da Portela, agremiação que ainda se chamava Vai Como Pode, foi O samba conquistando o mundo. A escola cantou dois sambas no desfile: Alegria tu terás, de Antônio Caetano, obra que fala da paixão do malandro pela cabrocha; e Linda Guanabara, de Paulo da Portela, que exaltava a beleza da Cidade Maravilhosa. Mas isso não era obrigatório. Houve escolas – como Mangueira nesse ano 35, com A Pátria, e a própria Portela em 1939, com Teste ao Samba – que fugiram à regra e apresentaram sambas de acordo com o enredo, com a segunda parte fixa, sem improvisações. A prática foi-se tornando corriqueira até que, em 52, o regulamento passou a determinar que os sambas tivessem adequação ao enredo. Portanto, o samba-enredo como gênero musical, com primeira e segunda partes, começa a fixar-se apenas nos anos 50.
Pouco antes, em 1949, o Império Serrano apresentara Exaltação a Tiradentes, de Mano Décio, Penteado e Estanislau Silva. Trata-se de um samba curto, com letra e melodia fáceis de memorizar, daí o sucesso que fez, pouco tempo depois, como música de carnaval, dividindo espaço no rádio com sambas carnavalescos e marchinhas. Pelas suas características, é um samba interpretativo – aquele que fala do enredo sem apegar-se aos detalhes, atendo-se apenas às suas ideias principais.
Joaquim José da Silva Xavier
Morreu a vinte e um de abril
Pela independência do Brasil
Foi traído e não traiu jamais
A Inconfidência de Minas Gerais
Foi traído e não traiu jamais
A Inconfidência de Minas Gerais
Joaquim José da Silva Xavier
Era o nome de Tiradentes
Foi sacrificado pela nossa liberdade
Este grande herói
Para sempre há e ser lembrado
O samba interpretativo difere do samba descritivo, que detalha o enredo, tornando-o longo, normalmente com mais de 20 versos, o que deu origem ao termo “samba-lençol”, por cobrir-lhe toda a história. Apesar do sucesso de Exaltação a Tiradentes, é o samba descritivo que vai predominar entre as décadas de 50 a 70. E, encontrando a inspiração em nomes como Silas e Oliveira e Mano Décio da Viola, fará do mesmo Império Serrano o celeiro de grande repertório não só do samba-lençol, mas de todo o gênero samba-enredo. Obras como Cinco Bailes da História do Rio e Heróis da Liberdade figuram em qualquer antologia como algumas das mais belas e representativas composições do carnaval carioca. De outras escolas pode-se citar, como protótipos, Chico Rei, do Salgueiro em 1964, de autoria de Geraldo Babão, Djalma Sabiá e Binha; e Memórias do Sargento de Milícias, com o qual Paulino da Viola, em sua única incursão em disputa de samba-enredo, contribuiu para o campeonato da Portela de 1966.
A forma do samba-lençol, com andamento cadenciado e melodia dolente, coadunou-se com o conteúdo ufanista dos enredos. Os enredos nacionalistas já eram uma tendência desde os primeiros desfiles. Entretanto, ao contrário do que o senso comum estabeleceu, a obrigatoriedade de desfilar com temas nacionais passou a constar do regulamento somente a partir de 1946, quando Getúlio Vargas já havia sido deposto. Não fora, portanto, imposição do Estado Novo. O louvor entusiástico às personalidades históricas e aos fatos relevantes da história oficial brasileira afastou o desfile da temática próxima dos segmentos sociais que compunham o universo das agremiações, e a linguagem poética dos sambas-enredo tornou-se barroca, com palavras e expressões grandiloquentes, muito distantes da coloquialidade da música popular brasileira.
Esse cenário sofreria alteração paulatina a partir da segunda metade dos anos 60. As escolas de samba elevavam-se à atração principal do carnaval; e isso, somado ao enfraquecimento dos blocos e das demais manifestações de rua, acabou por empurrar a classe média para as suas hostes. O samba-enredo transforma-se, então, no principal gênero de música carnavalesca e em filão da indústria fonográfica, que a partir de 1968 lança anualmente o vinil das escolas de samba.
Já em 1964, momento de transição, Aquarela Brasileira, do Império Serrano – um dos sambas-enredos mais conhecidos de toda a história -, demonstrava sinais dessa mudança. A obra de Silas de Oliveira, que no início não dispensa o opulento “episódio relicário”, passeia pelas manifestações culturais do Brasil, com versos curtos sobre cada uma delas.
Martinho da Vila promoveu modificações na estrutura dos sambas-enredo da Vila Isabel em Carnaval das Ilusões (67), Quatro séculos de modas e costumes (68) e Iaiá do cais dourado (69), fazendo-os mais dinâmicos, porém mantendo características descritivas. Mas o marco da transição para os sambas atuais foi o samba de Zuzuca Festa para um rei negro (conhecido pelo refrão Olê-lê/Olá-lá/Pegano Ganzê/Pega no Ganzá) com o qual o Salgueiro conquistou o carnaval de 71. O samba, próximo do ritmo fluminense do caxambu, fez sucesso até no exterior. É preciso, no entanto, distinguir: Martinho, assim como o Silas de Oliveira de Aquarela Brasileira, mantém as estruturas descritivas, torna-lhe a letra menos didática; já Zuzuca encurta-o, modifica-o totalmente.
Forçadas pelo tempo de desfile exíguo para um contingente cada vez maior – a cronometragem do desfile é adotada no início dos anos 70 -, as escolas optam pelos sambas interpretativos, com andamento acelerado, propícios à divulgação em rádio e, consequentemente, ao sucesso de vendas do disco. E a linguagem, antes rebuscada, adapta-se à coloquialidade exigida pelos novos tempos – embora seja comum observar, até os dias de hoje, expressões pouco usuais. Concomitantemente, os enredos também passaram por mudança. Não abandonaram por completo a vertente nacionalista, que até hoje se faz presente com força nos desfiles, mas se abriram a outras temáticas – cultura popular, sátira, crítica política, temas oníricos, homenagens a cidades e estados.
A modernidade exige sambas funcionais, “pra cima”, que levante a escola, com letras e refrões fáceis de memorizar, para facilitar o canto do componente, o que afeta outros quesitos, como harmonia e evolução. Uma das fórmulas mais observáveis surgidas daí é o refrão autorreferencial (quando a letra cita o nome da própria escola e a usa como vocativo de seus componentes) e sem relação direta com o enredo. O exemplo mais citado é Peguei um Ita no Norte. Ita é um navio a vapor que saía de Belém do Pará em direção ao Rio de Janeiro, contornando antes todo o litoral brasileiro. Lembre-se do refrão de um samba tão exemplar quanto conhecido:
Explode, coração
Na maior felicidade
É lindo o meu Salgueiro
Contagiando e sacudindo esta cidade
Junto com a funcionalidade, outro mantra moderno dos sambas-enredos é o de que aqueles antigos sambas, embora belos, não se encaixam nos ditames atuais. É meia-verdade: as reedições de sambas que, desde 2004, as agremiações do Grupo Especial e de Acesso realizam provam que se pode adaptá-los à realidade atual. O que há de relevante na massificação desse discurso calcado no funcional é que ele aproxima o gênero samba-enredo da teoria da morte da canção. O crítico musical José Ramos Tinhorão criou o termo no primeiro ano deste século; Chico Buarque deu-lhe dimensão ao encampá-la em entrevista à Folha de São Paulo, três anos depois. Por morte da canção entende-se a transformação que rompeu com os alicerces que desde a década de 30 fundamentaram a música brasileira. Essa transformação é impulsionada por inovações tecnológicas e por mudanças de concepções estéticas e sociais.
Segundo o crítico José Miguel Wisnik, a canção que morreu é aquela “sofisticada melódica e harmonicamente, com letras densas e polissêmicas, intimamente entranhadas com a música, sílaba por sílaba, capaz de atingir e interessar grandes públicos, atravessar diferenças sociais, irradiando lirismo e crítica social”[1]. Assim, o rap e a música eletrônica emergem como os gêneros mais afeitos a uma época em que a canção é coisa do passado. As gerações seguintes perderam a ternura? A sensibilidade? Nossos ídolos ainda são os mesmos; a última grande geração da música brasileira foi a dos anos 60. O saudosismo, a exaltação ao passado é a tônica de espaços onde se ouve e se discute música brasileira. A morte, evidentemente, é simbólica: as canções ainda são compostas e consumidas, mas não têm o mesmo impacto, não exercem a mesma função de antes.
Da mesma forma, grandes sambas-enredos, de moldura antiga ou moderna, ainda são produzidos, embora sem a repercussão, no rádio, na tevê e na opinião pública, que havia até o início dos anos 90. Sua difusão, hoje, encontra campo fértil para debates e críticas apaixonadas no território da internet, mas com público delimitado, o que caracteriza outro fenômeno recente do carnaval carioca: a formação de um nicho composto por torcedores apaixonados, diretores e membros de agremiações, pesquisadores, jornalistas e amantes dos desfiles das escolas de samba em geral. Para estes, independentemente das mudanças havidas ao longo do tempo – e de sua própria qualidade -, o samba-enredo é e será sempre muito mais do que um subgênero do samba.
*Bruno Filippo é comentarista da BandNews FM e escreveu este artigo a convite do Setor 1.
[1] “Canto para quem?”, Folha de São Paulo, Caderno Mais!, 05/07/2009.
Texto monumental! Faça nags postagens como está!
ufa… tem que ter fôlego para ler! mas vale cada frase, cada palavra. uma aula e uma grande joia para quem ama o assunto.