Ilha, Beija-Flor, favela, saúde e fé: a nova encruzilhada de Laíla

Laíla fica contrariado quando dizem que ele não sorri. Aí, sim, ele fecha a cara. “Não é tipo. Eu sou assim desde pequeno”, diz o diretor de Harmonia, para emendar um discurso que lembra o de um rapper de alguma periferia do Brasil. “Eu sou do morro do Salgueiro, sempre fui na minha, não fui criado por mãe nem pai, vivia com uma tia, não sou falso, nem hipócrita”, diz, antes de arrematar: “eu não posso ser feliz vendo o povo ser massacrado”.

O papo reto é a característica mais visível de um Laíla que, prestes a completar 77 anos, viu a carreira de mais de 50 carnavais passar por uma inesperada série de mudanças, com decepções, susto na saúde e um título que, curiosamente, o colocou em uma encruzilhada. Até uma aposentadoria chegou a entrar nos planos.

“A ideia era parar, realmente, mas aí vieram uns amigos da Ilha…”, admite Laíla, dando os nomes, um a um, de velhos conhecidos que o fizeram mudar de ideia e aceitar o convite para pilotar o Carnaval da sua vizinha União da Ilha.

Laíla na apresentação da Ilha com o carnavalesco Fran Sérgio (1º à dir.), o intérprete Ito Melodia (à esq.), o vice-presidente da escola, Marcello Vinhaes e o presidente, Djalma Falcão – Divulgação

O anúncio da contratação causou, quase na mesma proporção, euforia e surpresa. Entre os insulanos nas redes sociais, o reforço significava uma possível mudança de patamar. Mas houve quem lembrasse a diferença de estilos entre o exigente diretor e uma comunidade com fama de fazer desfiles soltos, sem tanta rigidez.

Susto

“Encontrei uma escola meio assustada. Chega um cara que dá chibatada…”, diz, ironizando a própria fama de mau, que ele nega. “E de uns tempos para cá os venenos ficaram muito piores”, brinca.

Insulanos ouvidos pelo blog admitem que a recepção foi seguida de algum incômodo, sobretudo pelo nível de exigência de Laíla sobre a comunidade.

“Na minha apresentação, fui muito direto em relação à minha maneira de trabalhar. Eu não aceito determinadas interferências, principalmente por pessoas que falam por falar, que não sabem e dão pitaco, que querem assumir aquilo que você sabe fazer”, afirma.

União da Ilha 2019 – Fernando Grilli/Riotur

Torcedores ouvidos pelo blog contam, em geral, que a fama de escola brincalhona atribuída à Ilha causa desconforto há algum tempo em certas alas, que sonham com uma escola competitiva. Em outras, prevalece o apego a uma tradição de desfiles com temas leves e uma imagem simpática. Nesse cenário, Laíla chegou cobrando canto, presença nos ensaios e entrega. “Ele tirou as pessoas da zona de conforto”, conta um insulano.

O próprio Laíla confirma, e diz que o importante era tirar o que chama de “vícios” da Ilha. “Era desfilar sem compromisso, para satisfazer o ego de cada um. Muitos poucos pensavam no coletivo, até porque não se tinha como cobrar. Porque a pessoa pensa: ‘eu pago a fantasia, eu vou o dia que quiser'”.

A insulana Larissa Pereira vive de perto a mudança. De torcedora e componente, a estilista de 35 anos se tornou carnavalesca da Cavalinhos Marinhos, escola mirim da União da Ilha, e passou a integrar este ano, junto de Felipe Costa, Anderson Netto e Allan Barbosa, a comissão de Carnaval liderada por Laíla. “É maravilhoso trabalhar com o Laíla. Ele entende de todas as partes de uma escola de samba. Estou aprendendo muito com ele. Ele dá até ensinamento musical para a gente”, conta Larissa, em sua estreia no barracão.

“A escola sempre quis o Laíla na direção de Carnaval”, conta.

Fran Sérgio, Felipe Costa, Larissa Pereira, Laila, Allan Barbosa, Anderson Netto e Cahê Rodrigues: a comissão da Ilha – Divulgação

Enredo e samba

A mudança inicial de Laíla foi vestir toda a comunidade, sem alas comerciais. Depois veio a discussão sobre o enredo. “A primeira grande discussão”, como classifica.

Uma das últimas a anunciar o tema do desfile de 2020, a União da Ilha se limitou a divulgar um título, sem sinopse e com explicações orais sobre o que o diretor queria com “Nas encruzilhadas da vida, entre becos, ruas e vielas, a sorte está lançada: Salve-se quem puder!”, o título do enredo.

“Tem compositor que não pega a ideia nem com sinopse. Acontece”, diz Márcio André, ex-presidente da União da Ilha e compositor, que voltou a se aproximar da agremiação após um breve afastamento. Para dar o que alguns chamam de “sacudida” na escola, Laíla convidou autores de sambas-enredo de fora da escola ou que estavam longe para participar da disputa – entre eles Márcio André, que acabaria campeão pela nona vez na Ilha.

“As sinopses às vezes deixam os compositores presos. Com o tempo ficou algo muito rígido, sem muito espaço para a criatividade”, comenta Márcio, que assina o samba de 2020 com outros cinco autores: Marcio André Filho, Rafael Prates, J. Alves, Daniel e Marinho.

Escola cantando

No pré-Carnaval, o samba não chegou a figurar entre os mais queridos nos júris de sites especializados. Mas na Ilha, garante Laíla, a obra é amada pela comunidade. Para fazer a escola cantar dentro dos seus severos padrões de exigência, o diretor chegou a ensaiar na rua sem carro de som, com o intérprete Ito Melodia empunhando apenas um megafone. A intenção era justamente ouvir o povo cantando.

Ensaio de rua da União da Ilha – Lucas Dellatorres

“Logo no primeiro ensaio de rua ficou todo mundo assustado. Eu inverti tudo [a direção do cortejo]. Lá tem um prédio do lado direito, do outro, um paredão. Ali eu senti a acústica da bateria, senti o que a escola poderia me render auditivamente”, explica Laíla. “Senti que a escola inteira estava cantando, embora com mudanças de tom, mas esse é o belo da avenida, quando você tem o contraste de vozes”, diz.

Logo depois, Laíla marcou uma reunião e, com a ajuda de um telão, apresentou os erros do ensaio. “Aquilo veio abaixo, todo mundo aplaudiu. Vieram me falar: ‘a Ilha mudou com você!’. Não, a Ilha mudou por ela mesma”, afirma.

“Eu conheço essa história”

O enredo, sobre a vida dura nas favelas, é o quarto defendido por Laíla, em quatro agremiações diferentes, nos últimos três anos, com perfil engajado. “Toda escola que tem uma pitadinha política, chega na avenida e acontece”, entrega, atento aos ventos da mudança no Carnaval. Mas o cria do morro do Salgueiro diz que buscou na sua origem humilde inspiração para o enredo da Ilha.

“Eu conheço essa história de trás pra frente”, gaba-se. “Desde os sete anos, lavava galinheiro. entregava compra no morro, trabalhei em armazém. Pedindo a Deus para chegar aos 14 anos de idade para arrumar um trabalho de carteira assinada. Isso fazia com que você não fosse para outros lados”, diz, referindo-se à vida no crime.

Joãosinho Trinta na Sapucaí em 1989 – Estadão Conteúdo

Laíla atribui às escolas de samba sua salvação. No Salgueiro, fez de tudo, além de conviver com Fernando Pamplona e ajudar a lançar Joãosinho Trinta, como gosta de contar. “A gente chegou a dormir o chão do Pavilhão de São Cristovão para aprontar Carnaval”, conta. Depois, foi praticamente junto com o carnavalesco maranhense para a Beija-Flor, onde atuariam para colocar a então pequena escola de Nilópolis entre as grandes, com um tricampeonato entre 1976 e 1978.

“Protetor”

A relação com Joãosinho seria marcada também por rusgas. Até hoje, Laíla se mostra ressentido pelo carnavalesco, morto em 2011, a autoria da ideia sobre a frase do Cristo Mendigo censurado de 1989. Os dois saíram juntos de Nilópolis após o Carnaval de 1992: Joãosinho passou um ano longe do Carnaval, por conta de problemas em seu projeto social, para em 1994 se mudar para a Viradouro; o diretor foi para a caçula Grande Rio.

O retorno à Beija-Flor não demorou. Após o Carnaval de 1994, voltou ao barracão da escola para mais uma série de títulos, quando implantaria um “modelo de gestão”, concentrado na atuação do corpo de desfilantes, que seria sua marca até hoje. Foram mais nove títulos até 2018, oito deles com o pupilo Fran Sérgio.

Fran Sérgio na União da Ilha: perto de Laíla desde 1994

“Ele é protetor”, define Fran, carnavalesco que conheceu Laíla aos 19 anos, em 1994, no barracão da Beija-Flor. Ele era um jovem desenhista quando começou a trabalhar com o “professor”, como ele se refere ao tutor.

O artista é mais um a derrubar o mito do “homem que não sorri”, mas admite que vê Laíla “muito mais tranquilo” atualmente. “São anos de vivência. Ele foi mudando”, diz ele, cuja relação com o diretor foi além dos barracões. “Somos amigos”, afirma o carnavalesco, que acompanha o professor nas escolas por onde passou pós-Beija-Flor: Unidos da Tijuca, a paulistana Águia de Ouro, ambas em 2019, e agora a Ilha.

Fran não estava na Beija-Flor na ocasião da turbulenta saída de Laíla da escola. Mas, como cria de Nilópolis, o carnavalesco garante que a comunidade até hoje clama pelo seu retorno.

“Foi ruim, depois de tantos anos, deixar uma comunidade que ele criou. Ele ficou muito chateado porque já não estavam dando tanto ouvido a ele. Você faz um grande trabalho, transforma uma escola em uma grande potência, e depois é jogado de lado. Isso é péssimo para o profissional. Mas ele ama muito a comunidade, e é recíproco”, declara o carnavalesco, que assina o desfile da Ilha também com Cahê Rodrigues.

Beija-Flor em 2018 – Raphael David/Riotur

A despedida foi com o título de 2018, o primeiro da última série de enredos críticos promovidos por Laíla. Na pista, a escola passou com o visual bem diferente do antigo padrão – luxuoso, detalhista e opulento, para ficar em poucos adjetivos. No lugar, carros alegóricos e fantasias de estética mais pobre, mas com mensagem mais direta, como uma escola depredada. No lugar de gente sambando, atores encenando uma matança, com um caixão cenográfico na frente. No chão, os componentes berraram o aclamado samba, área de influência de Laíla. Quem é do ramo percebeu a divisão da escola, justamente no momento em que o eixo de poder da escola começava a se deslocar do patrono Anísio Abraão David para seu filho, Gabriel David, então com 20 anos.

Adeus, Beija-Flor

As diferenças internas ficaram evidentes tão logo Jorge Perlingeiro anunciou a última nota da Beija-Flor na Praça da Apoteose.

Laíla e Neguinho da Beija-Flor comemoram título – Fábio Motta/Estadão Conteúdo

“Gabriel é meu amigo, mas ele precisa ser conduzido para o caminho correto. Ele precisa entender que administrar finanças é uma coisa, e administrar Carnaval é outra”, declarou Laíla após a apuração de 2018. “O meu povo sofreu muito esse ano no barracão com determinadas atitudes. E eu fui homem para c… para segurar a onda e não deixar entrar em crise”, disse, quase aos berros e com palavrões, ao descer do palco. Hoje, Laíla garante que não teve problemas com Gabriel, que por sua vez nega qualquer desavença. “Nunca tive qualquer briga ou discussão com ele”, contou o jovem ao jornalista Anderson Baltar, do UOL.

Aos 22 anos, Gabriel tenta reerguer a escola após o 11º lugar do ano passado, o pior da Deusa da Passarela em toda sua história no Grupo Especial. “Fizemos um desfile sem diretor de Carnaval. Não colocamos ninguém no lugar do Laíla. Isso deixou um gap na comissão de Carnaval”, diz, usando um termo em inglês estranho ao mundo do Carnaval.

Gabriel David, da Beija-Flor, antes do desfile na Sapucaí em 2018 – Romulo Tesi

“Galera respeita”

O legado de Laíla na Beija-Flor, porém, não se limita ao estilo de desfile. Aos 20 anos, a filha Laísa não sabe o que é estar em outra escola. Nascida praticamente dentro da agremiação, a herdeira se diz torcedora “doente” da agremiação, que passou a frequentar com quatro anos de idade e onde tornou diretora de bateria.

“Aqui a galera respeita muito ele”, garante Laísa, que pelo segundo ano terá a experiência de “enfrentar” o pai na Sapucaí. “Espero que ele tenha um ótimo Carnaval, mesmos sendo rivais na avenida, mas quero o título para a gente”, diz Laísa, aos risos. Rivalidade não chega a ser uma novidade entre os dois: o pai é vascaíno, enquanto a filha é torcedora do Flamengo. “Ele já tentou me levar a São Januário, mas eu não aceito”, conta ela, que foi para a Beija-Flor apesar da resistência paterna no início.

“Fui por minha própria vontade, e acabei seguindo o caminho dele, na parte musical, em vez de querer ser passista, por exemplo. Depois ele me ensinou tudo”, lembra ela, aluna da Escola de Música Villa-Lobos. E foi tocando na Sapucaí que Laísa teve o que chama “o pior dia da sua vida”.

Laísa e o pai, Laíla – Arquivo pessoal

A bateria da Beija-Flor se preparava para atravessar a avenida no ensaio técnico de 2017 quando chegou a notícia de que Laíla estava passando mal. Uma crise hipertensiva grave o fez ser levado para o hospital, onde passou quatro dias internado.

“Ele me abraçou, e vi que estava com os olhos vermelhos. Naquele momento pensei que fosse perder meu pai. Meu chão caiu”, conta Laísa.

Filho de Xangô

O susto fez Laíla mudar alguns velhos hábitos. Hoje o diretor pega leve na comida e na bebida para aguentar o tranco do trabalho no barracão, mas admite que ainda toma uma “cervejinha de vez em quando, mas seguro minha onda”. Ele faz acompanhamento médico periódico para evitar novas crises. Ainda assim, segundo o próprio, a saúde “dá susto toda hora”. “Passei mal só uma vez nesse período de Ilha”, minimiza.

Cismado, Laíla afirma, com certeza inabalável, que os problemas de saúde não causados somente pela idade ou do estresse do trabalho, mas também por certo olho gordo sobre ele.

“Eu sinto. Falo categoricamente: a minha fé e religião que me tiram dos problemas. Há pessoas que te fazem mal sem você saber, mas minha fé é muito grande. Não saio de casa sem rezar. Eu chego aqui e, se estiver acontecendo alguma coisa, lá na porta eu já estou sabendo”, garante Laíla, seguidor da umbanda, frequentador assíduo do centro espírita e que se diz um “filho de Xangô osso duro de roer”.

Laíla na Unidos da Tijuca, em 2019 – Wilton Júnior/Estadão Conteúdo

Não à toa, Laíla evita economizar nas críticas ao atual prefeito do Rio, Marcelo Crivella. O bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, Crivella promoveu seguidos cortes de verba das escolas de samba, atraindo a ira da mesma comunidade carnavalesca que o apoiou durante a campanha eleitoral de 2016. O prefeito nega motivação religiosa, mas não convence Laíla.

“É um momento de provação do Carnaval. Quando resolveram apoiar o prefeito aí, eu falei: ‘vai dar problema’. Eles pensam de maneira totalmente diferente”, conta.

Povo armado?

Apesar de tantos enredos recentes com explícita crítica social, Laíla diz não gostar de política. Afirma não ter votado em Bolsonaro e condena algumas das principais bandeiras do presidente. “Armar o povo para quê? Para irmão matar irmão?”, questiona. Do governador do Rio, Wilson Witzel, critica a política de segurança pública e o que chama de “foco só em cima do povo de menor possibilidade financeira das favelas”.

“O cidadão sai para o trabalho e tem intervenções, troca [de tiros].. A comunidade sofre. O estado tem que dar o caminho bom para todos, e tem que começar pela educação”, diz. “Abri o jornal semana passada e fiquei triste. Era uma página inteira falando da construção de presídios verticais, com cinco prédios. Isso é fábrica de quê? Não poderiam ser cinco universidades? O que o jovem vai esperar disso? Isso não é a salvação”, protesta. “Por isso precisamos dar um grito de alerta”, completa, sobre o enredo da Ilha.

“Eu estou mais pra lá do que pra cá de idade, mas o que será dos outros?”, diz questiona Laíla, que dá sinais de ter desistido totalmente da aposentadoria.

“Ele vai até o fim”, prevê Fran Sérgio.

Mesmo Laísa, que viveu de perto o drama de 2017, não imagina Laíla parado. “Não consigo imaginar meu pai fora do Carnaval. Ele não vê fora, não conseguiria ficar longe”, garante a filha.

No dia da conversa com o blog, uma tarde abafada de janeiro na Cidade do Samba, Laíla se queixou de uma crise de labirintite. Em determinado momento, ele se aproxima e bate no meu joelho, como se pedisse atenção antes de falar algo que julga importante. “Deixa eu te falar um negócio”, avisa. “Se eu chegar à conclusão do que eu quero, não tem nhem nhem nhem“. afirma. Vale para o trabalho, vale para a vida.

Ao levantar para uma foto, Laíla pede para posar ao lado de uma imagem de Iemanjá – pregada na parede da sala de imprensa do barracão – e sorri.

Laíla e Iemanjá – Romulo Tesi

Romulo Tesi

Romulo Tesi Jornalista carioca, criado na Penha, residente em São Paulo desde 2009 e pai da Malu. Nasci meses antes do Bumbum Paticumbum Prugurundum imperiano de Aluisio Machado, Beto Sem Braço e Rosa Magalhães, em um dia de Vasco x Flamengo, num hospital das Cinco Bocas de Olaria, pertinho da Rua Bariri e a uma caminhada do Cacique de Ramos, do outro lado da linha do trem. Por aí virei gente. E aqui é o meu, o nosso espaço para falar de samba e Carnaval.

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