Homem de fé, Leandro Vieira desconstrói ‘Cristo europeu’ na Mangueira e pede passagem para seu ‘Jesus da Gente’

Leandro Vieira no barracão da Mangueira – Foto: Oscar Liberal

O Carnaval já começou para a Mangueira. Mais precisamente desde que a notícia do enredo de 2020 superou os limites da Estação Primeira de Nazaré. Foi quando a figura do Jesus Cristo mangueirense – “rosto negro, sangue índio, corpo de mulher”, bem longe do padrão loiro de olhos claros – causou estranheza em alguns, sobretudo nos ultra-conservadores. Inventaram mil pecados sobre a Verde e Rosa, que saiu para pregar e levar sua palavra bem antes da escola pisar na Marquês de Sapucaí.

“Previsível”, diz o carnavalesco da Mangueira, Leandro Vieira, em entrevista ao Setor 1.

“Meu objetivo tem sido causar reflexões através da arte”, afirma Vieira, que no ano passado faturou seu segundo título, todos na Manga, contando a saga de personagens esquecidos pela história oficial brasileira. Não sem controvérsia: uma homenagem à vereadora Marielle Franco, assassinada em 2018, fez com que grupos se colocassem contra a escola. Não deu certo.

Veja a ordem dos desfiles em 2020

Quase como um spin off (expressão em inglês para a história tirada de uma outra) de 2019, o enredo deste ano pretende desconstruir o “Jesus do Vaticano”, como afirma o carnavalesco.

“O meu é mais humano, pobretão”, afirma Vieira, um “homem de fé”, como se define o próprio, filho de pai protestante e mãe católica, ex-aluno de colégio de freiras.

“Eu não sou um homem religioso. Mas a religião me interessa porque a religiosidade é um dado importante da formação cultural brasileira”, defende o carnavalesco, que reivindica seu direito, como artista, de criar sua própria representação de Cristo.

Leia a entrevista:

Setor 1: É a terceira vez que a religião está presente nos seus enredos. Esse é um tema que parece ser muito importante para você, certo? Você é religioso?
Leandro Vieira: Eu não sou um homem religioso, embora seja uma homem de fé. Mas a religião me interessa porque a religiosidade é um dado importante da formação cultural brasileira. Por ser interessado na formação do povo brasileiro e na identidade cultural do povo, a religião acaba sendo um tema recorrente porque toda vez que eu me debruço sobre o brasileiro, acabo achando que a religiosidade brasileira nos determina como povo. A religiosidade de 2016, do candomblé e do sincretismo, me interessa. A de 2017 me interessa porque é a religiosidade festiva, plural, sincrética. A religiosidade cristã me interessa, mas agora de uma forma diferente, porque a figura de Jesus Cristo está sendo usada, na verdade não é de hoje, mas atualmente ainda mais no contexto social e político que nós vivemos, como espécie de fiador de uma política vigente. Desde o ano passado eu tento falar para o Brasil de hoje, logo isso acaba sendo um tema. Eu tenho muito mais um olhar antropológico para a religião do que um olhar religioso.

Como você tomou conhecimento de Jesus? Você frequentava a igreja na infância?
Tomei conhecimento de Jesus em casa. Minha família é religiosa, de tradição cristã, mas diversa. Meu pai é protestante. Minha mãe, católica. Tenho parentes que são devotos de Nossa Senhora.

Cristo retratado no desfile de 2017; do outro lado da escultura vinha a imagem de Oxalá – Cezar Loureiro/Riotur

Você chegou a fazer primeira comunhão, crisma, essas coisas?
Não fiz, mas estudei em colégio de freiras. Além de cantar o hino, a gente rezava o Pai Nosso.

O Carnaval da Mangueira “começou” muito antes, por conta do debate sobre o enredo. Você já deu muitas entrevistas, inclusive para veículos que não cobrem Carnaval. O enredo fez a escola se comunicar muito. Como artista, para você o objetivo já foi de alguma forma alcançado, somente por levantar o debate sobre Jesus?
Desde o ano passado, meu objetivo tem sido causar reflexões através da arte. O debate engrandece, leva ao entendimento. O objetivo já foi alcançado de alguma forma.

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Você costuma falar da necessidade das escolas se comunicarem com o público tocando nos grandes temas do momento. E o assunto do momento é a política. Dos enredos de 2020, a maioria tem algum ponto de crítica social ou política. O tempo em que a gente vive exige isso dos artistas do Carnaval? Ou há espaço para, digamos, alguma alienação ainda?
Há sim. Cada artista é um artista. Os temas de 2020 são propostos por artistas distintos. Eu acho muito ruim essa ideia do “venham por aqui”. Acho que o certo é “vamos”. Cada um com seu caminho e suas verdades.

Mas você reconhece que há uma “onda” passando?
Mais ou menos. O desfile de uma escola de samba é uma construção coletiva. Tem carnavalesco que propôs temas sem cunho político ou social, e na construção coletiva acabaram ganhando de compositores temas com críticas nessa linha. As pessoas vão somando camadas. Coisas propostas a princípio sem esse interesse, mas acontece em alguma camada acrescida ao longo do processo de criação.

Em entrevista ao Carnavalize, você reivindica seu direito de criar a sua representação de Jesus Cristo, e cita os pintores espanhóis como exemplo, algo como “se há o deles, também posso mostrar o meu”. Você se coloca ao lado de artistas em geral, e não somente como alguém restrito ao Carnaval. Queria que você comentasse isso, inclusive sobre sua classe de carnavalescos.
Eu nunca me coloquei dessa forma [artista só de Carnaval], até porque eu nem queria ser carnavalesco. Eu queria ser artista, e artista plástico, visual. “Deu errado”, no bom sentido, e eu acabei no Carnaval. Eu nem sabia o que era isso direito [ser carnavalesco]. Só fui saber já na faculdade e precisava trabalhar. Mas meu foco não era nos desfiles das escolas de samba. As pessoas citam que eu sou oriundo da Escola de Belas Artes, e associam a instituição ao ensino tradicional que a escola levou para o Carnaval, ou seja, cenografia e indumentária. Eu entrei na Belas Artes para fazer pintura. Desde sempre me enxerguei como um pintor que faz Carnaval, por isso eu fiz a associação com a pintura espanhola, que é minha referência.

Essa sua postura não parece ser tão comum no Carnaval, pelo menos não é a tradição. Que tipo de artista você se considera e quais são suas referências?
Eu sou um artista contemporâneo, e citaria Adriana Varejão e Vik Muniz, por exemplo, como referências. Quando saí da Escola de Belas Artes, achei que ganhar dinheiro expondo instalação em galeria de arte.

Hoje você expõe na “galeria de arte” do Sambódromo.
O tempo me mostrou isso. E eu mencionei a Adriana Varejão e Vik Muniz para mostrar o caminho de referências minhas, mas nesse contexto eu incluo o Fernando Pamplona, para citar uma referência de artista carnavalesco.

Figura de Convite I, obra de Adriana Varejão

Onde você pesquisou para encontrar esse Jesus não europeu, fora do padrão? O que você leu e viu?
Em termos iconográficos, vi toda arte universal produzida em torno da figura de Jesus Cristo. Passando pela arte medieval, bizantina, renascentista, espanhola, o barroco baiano, o barroco mineiro, o barroco português e o espanhol, que é muito exuberante… Porque a desconstrução é feita no lugar oficial.

O Jesus loiro, de cabelo liso, pele clara, infalível…
Sim, o Jesus do Vaticano. O meu é mais humano, é o da dignidade humana, pobretão.

Pecador também?
Não, mas sempre junto dos pecadores.

Crucificação, de Vik Muniz – Reprodução

A escola procurou as autoridades cristãs antes de anunciar o enredo? Ou eles procuraram a Mangueira? Como tem sido esse contato?
Não apresentei nada a ninguém. Fiz o que queria fazer. Depois que tomaram conhecimento vieram procurar saber. Há conversa, mas nada oficial. Oficialmente, a Arquidiocese do Rio se comunica muito com a liga [Liesa].

Essa onda de boatos sobre o enredo afetou seu trabalho? O que você achou?
Não afetou em nada. Achei a reação previsível. Quando você tira Jesus do altar e retira manto e coroa, sobra o homem. E é esse Jesus que interessa. É óbvio que setores mais conservadores se manifestariam. O instituto que organizou o abaixo-assinado [Instituto Plinio Corrêa de Oliveira] é integralista, ultra-conservador, que questiona inclusive o papa. Se questionam o Francisco, o que dirá de um artista que produz Carnaval.

O teólogo Leonardo Boff, inclusive, diz que a sua ideia de Jesus está próxima da do papa Francisco. O que achou disso?
Achei o máximo. Ter uma fala do Boff sobre meu trabalho é importante para mim.

Comissão de frente da Mangueira – Gabriel Nascimento/Riotur

Eu encontrei em alguns veículos mais políticos citações ao enredo da Mangueira como se fosse sobre a Teologia da Libertação…
Falaram que é uma “carnavalização da Teologia da Libertação”, o que é uma mentira, uma tentativa de politizar algo, e minha cabeça está no campo das artes. Um artista plural se debruça numa leitura vasta, e a Teologia da Libertação é também material para eu me debruçar para a produção artística. Fornece conteúdo. E é uma referência importante. Assim como a Bíblia.

Você lia a Bíblia sem fins artísticos como agora?
Como estudei em colégio católico, isso era uma tradição, como era na minha família. Então havia esse costume de estudo bíblico. E já li [a Bíblia] e tenho conhecimento bíblico por isso.

Veja o clipe do samba de 2020:

“A verdade vos fará livre” – Autores: Luiz Carlos Máximo e Manu da Cuíca

Romulo Tesi

Romulo Tesi Jornalista carioca, criado na Penha, residente em São Paulo desde 2009 e pai da Malu. Nasci meses antes do Bumbum Paticumbum Prugurundum imperiano de Aluisio Machado, Beto Sem Braço e Rosa Magalhães, em um dia de Vasco x Flamengo, num hospital das Cinco Bocas de Olaria, pertinho da Rua Bariri e a uma caminhada do Cacique de Ramos, do outro lado da linha do trem. Por aí virei gente. E aqui é o meu, o nosso espaço para falar de samba e Carnaval.

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