Beija-Flor anuncia enredo sobre o 2 de Julho baiano, ‘decreta’ nova data da Independência e convoca povo à luta por liberdade real ‘sem caô’

Beija-Flor, Carnaval 2023

Oficialmente, a Independência do Brasil é comemorada no dia 7 de setembro. Mas se depender da Beija-Flor, o calendário nacional vai mudar. E já no ano que vem, mais precisamente no Carnaval.

A escola de Nilópolis anunciou neste sábado (2) o enredo “Brava Gente! O grito dos excluídos no bicentenário da Independência” para o Carnaval de 2023, sobre a Independência do Brasil na Bahia, feriado comemorado no dia 2 de julho pelos baianos. Com isso, a Beija-Flor propõe a alteração: em vez de comemorarem a libertação comprada de Portugal, em 1822, os brasileiros deveriam deslocar a festa para a data baiana, de um ano depois, em 1823.

Portanto, o bicentenário da Independência, afirma a agremiação, deveria no próximo ano, não em 2022.

O carnavalesco André Rodrigues explica.

“A ideia é provocar na mente das pessoas que a Independência não deveria ser comemorada em 7 de setembro e sim em 2 de julho, pois é a data em que se celebra a expulsão das tropas portuguesas da Bahia em 1823, um triunfo nacional com forte protagonismo feminino e afro-ameríndio”, declarou Rodrigues, responsável pelo enredo com o experiente Alexandre Louzada, em declaração divulgada pela escola.

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O 2 de Julho de 1823 é a data do fim da guerra pela independência baiana, cujo povo se declarou livre de Portugal em 1921, antes de D. Pedro dar o oficialesco e romantizado Grito do Ipiranga.

A disputa com Portugal durou quase um ano e meio e custou cerca de duas mil vidas nos combates, que contaram com participação ativa da população, principalmente de negros escravizados e livres, indígenas e caboclos – estes inclusive se tornaram símbolos da data, comemorada em clima de Carnaval na Bahia, em contraste com o militarizado 7 de setembro.

“Levaremos para Avenida uma nova perspectiva destes fatos históricos, postos sob uma visão carnavalesca, sonhando com possibilidades de novos Brasis”, completa Rodrigues, uma das maiores revelações do Carnaval.

Alexandre Louzada e André Rodrigues, carnavalescos da Beija-Flor – Foto: Eduardo Holanda

Independente pra valer?

O carnavalesco foi promovido na Beija-Flor este ano após o elogiado desfile sobre a intelectualidade negra, quando formou dupla com Louzada no papel de assistente. Seguindo a linha crítica de reivindicatória de 2022, os dois voltam a provocar o público.

Segundo Louzada, outras lutas pela independência do Brasil também terão espaço

“O nosso desfile será um monumento vivo aos verdadeiros ‘Heróis da Liberdade’. Além dessa batalha, também vamos aclamar todos os movimentos sociais significativos que buscaram a libertação da nossa pátria, da Independência até hoje. Queremos entender se, de fato, desatamos as amarras em relação à Coroa Portuguesa ou só trocamos o poder de mãos. E onde o povo brasileiro estava nesse episódio, bem como os ideais de liberdade e igualdade”, explica o carnavalesco.

Convocação por independência e vida (sem caô!)

O enredo é assinado por Rodrigues e pelo professor Mauro Cordeiro, que também ficou responsável pela pesquisa e justificativa. Participam ainda da formulação do enredo a Beatriz Chaves, João Vitor Silveira e Jader Moraes, que escreveram, com Rodrigues, uma convocação para o público.

O texto abre com um lema “independência e vida”.

Por uma questão de desordem no que se diz respeito às memórias que este país constrói: VAMOS NOS UNIR, BRAVA GENTE! Esta é uma convocação aos sobreviventes deste país que não nos reconhece. Um país que ignora nossas existências. Um país que comemora 200 anos da marginalização da sua própria gente. Seremos a voz do desejo de uma nação inteira: independência e vida!

Trecho da convocação divulgada pela Beija-Flor

“Propomos, então, um novo marco para a Independência Nacional: O dia em que o povo venceu, o 2 de Julho. O triunfo popular de 1823 é muito mais sobre nós e sobre nossas disputas. O Dia da Independência que queremos é comemorado ao som dos batuques de caboclo, cantando que até o sol é brasileiro. Precisamos festejar os marcos populares em festas que tenham cheiro, cor e sabor de brasilidade, reconhecendo o protagonismo feminino e afro-ameríndio. Somos aqueles e aquelas que, excluídos dos espaços de poder, ousam ter esperança no amanhã. O Brasil precisa reconhecer os muitos Brasis e suas verdadeiras batalhas”, continua a convocação, que encerra com um “papo reto”.

O grito será por justiça e liberdade, igualdade sem neurose e sem caô.

Convocação da Beija-Flor para o Carnaval 2023

Leia a convocação e justificativa na íntegra:

CONVOCAÇÃO

Por uma questão de desordem no que se diz respeito às memórias que este país constrói: VAMOS NOS UNIR, BRAVA GENTE!

Esta é uma convocação aos sobreviventes deste país que não nos reconhece.

Um país que ignora nossas existências.

Um país que comemora 200 anos da marginalização da sua própria gente.

Seremos a voz do desejo de uma nação inteira: independência e vida!

O Estado brasileiro foi erguido sobre um conjunto de mitos e símbolos que justificam as violências que ainda hoje são implementadas contra nós. Não é por acaso o apagamento do verdadeiro protagonista da história nacional: o povo brasileiro. Esta é a brava gente que está ausente dos atos cívicos que celebram nossos mitos fundadores. Excluídos.

Se as pautas fundamentais para uma nação soberana, independente e justa são trabalho digno, moradia, alimentação, participação popular, igualdade de direitos e liberdade plena, a grande pergunta é: este é o Brasil em que vivemos?

Propomos, então, um novo marco para a Independência Nacional: O dia em que o povo venceu, o 2 de Julho. O triunfo popular de 1823 é muito mais sobre nós e sobre nossas disputas. O Dia da Independência que queremos é comemorado ao som dos batuques de caboclo, cantando que até o sol é brasileiro. Precisamos festejar os marcos populares em festas que tenham cheiro, cor e sabor de brasilidade, reconhecendo o protagonismo feminino e afro-ameríndio. Somos aqueles e aquelas que, excluídos dos espaços de poder, ousam ter esperança no amanhã. O Brasil precisa reconhecer os muitos Brasis e suas verdadeiras batalhas.

É a partir desta data que provocamos uma nova comemoração da independência do Brasil. A independência do povo para o povo. Faremos, então, um grande ato cívico em louvação aos 200 anos de luta dos brasileiros, herança dos heróis e heroínas que forjam dia a dia, através de suas batalhas, uma nação verdadeiramente livre e soberana.

Reivindicamos e nos orgulhamos das lutas históricas e sociais daqueles que nos precederam nesta incansável batalha pela cidadania.

Juntem-se e vistam suas fantasias, pois será um grande carnaval quando em praça pública declararmos nossa própria independência. NÓS, O POVO! Juntando tudo e todes. O novo Brasil ditará as ordens a partir da folia. Alegria e manifestação! Nossa bandeira será um grande mosaico do que somos de verdade, feita a partir do retalho do que cada um tem a oferecer daquilo que lhe representa.

A cultura é o nosso poder, e, é através dela que lutamos pela transformação social, colocando o povo no pedestal que lhe é de direito. Por isso fazemos carnaval, é a nossa missão, sempre construindo o país que acreditamos, e lutando para que ele seja um dia, realidade. O grito será por justiça e liberdade, igualdade sem neurose e sem caô.

Nilópolis, 02/07/23. Dia dos 199 anos da Independência do nosso Brasil

JUSTIFICATIVA

O G. R. E. S. Beija-Flor de Nilópolis irá apresentar no carnaval de 2023 o enredo “BRAVA GENTE! O GRITO DOS EXCLUÍDOS NO BICENTENÁRIO DA INDEPENDÊNCIA”.

O bicentenário da Independência é um momento propício para um debate profundo acerca dos rumos e do próprio sentido do país. O carnaval carioca, alegria e manifestação, não poderia ficar de fora desta ampla discussão. A festa consolidou-se como um espaço privilegiado para reflexão e a disputa de questões de importância fundamental em um espetáculo artístico de inegável dimensão política e caráter pedagógico.

Através do seu desfile, um ato cívico, nós propomos que a independência é um processo, defendemos um novo marco para a emancipação política brasileira, destacando o protagonismo popular enquanto denunciamos o caráter autoritário, tutelar, excludente e desigual do Estado, desde sua gênese até a atualidade.

Ao invés de celebrar ritualísticamente o mito fundador da pátria – o grito do Ipiranga no 7 de setembro, argumentamos em favor de um novo marco, capaz de oferecer um sentido que consideramos mais próximo da verdade histórica de uma independência que foi conquistada; não proclamada. Este marco é o 2 de julho de 1823, data da vitória das tropas brasileiras na conflagração instalada na Bahia.

Ao mesmo tempo, iremos rememorar esses duzentos anos a partir da perspectiva das camadas populares apontando as mazelas, contradições e limites da construção nacional.
Heroico é o povo que constrói a sua própria autonomia através da luta. Esta é a nossa história: nada nos foi dado; cada um dos nossos avanços foi obtido pelos nossos próprios esforços.

Se o Estado brasileiro se ergueu como um instrumento para conservação de uma ordem patriarcal, escravocrata e latifundiária, o povo brasileiro, mesmo alijado dos espaços institucionais, insiste em disputar no Brasil sem temer nem a luta, nem a morte.

Este enredo é um grito que ecoa do Brasil profundo e se faz ouvir aos quatro cantos. Das aldeias, guetos, terreiros e favelas um brado em uníssono se faz clamor: independência e vida! Este é o nosso grito.

Autores do Enredo: André Rodrigues e Mauro Cordeiro
Desenvolvimento: André Rodrigues, Mauro Cordeiro e Alexandre Louzada
Convocação: André Rodrigues, Beatriz Chaves, João Vitor Silveira e Jader Moraes.
Pesquisa e Justificativa: Mauro Cordeiro

Romulo Tesi

Romulo Tesi Jornalista carioca, criado na Penha, residente em São Paulo desde 2009 e pai da Malu. Nasci meses antes do Bumbum Paticumbum Prugurundum imperiano de Aluisio Machado, Beto Sem Braço e Rosa Magalhães, em um dia de Vasco x Flamengo, num hospital das Cinco Bocas de Olaria, pertinho da Rua Bariri e a uma caminhada do Cacique de Ramos, do outro lado da linha do trem. Por aí virei gente. E aqui é o meu, o nosso espaço para falar de samba e Carnaval.

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