Compositor da Mangueira exalta Marielle e prevê pressão da extrema direita: ‘samba terá que ser resistência’

Deivid Domênico – Reprodução/Facebook

Brasil, chegou a vez de ouvir Devid Domênico e seus parceiros. Em tempos de disputas de samba-enredo que podem custar até um apartamento, a turma do compositor, “todos duros”, como o próprio diz, decidiu fazer diferente para superar as barreiras do Carnaval e colocar a obra na boca do povo. E conseguiram conquistar corações e mentes tanto de mangueirenses como dos torcedores de outras escolas – inclusive de quem mal sabe onde fica a Mangueira.

A vitória consagradora veio no último sábado. No dia seguinte, a notícia de que o “samba da Marielle” será o hino da Mangueira em 2019 se espalhou, virou febre de compartilhamentos e a obra fez o voo decisivo para ganhar o Brasil – e criar polêmica.

Mesmo sem ser citada na sinopse do enredo sobre heróis esquecidos, a vereadora Marielle Franco, assassinado em março deste ano, foi lembrada pelos compositores. Sem dinheiro, sem lenço, nem documento, a parceria superou gente de peso (e muitos recursos) e alguma oposição política para vencer.

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“Nós percebemos que a história precisava ser contada de uma maneira real e verdadeira, mas de jeito fraterno. Que a gente conseguisse combater o ódio que tem sido plantado no Brasil. E a Marielle foi assassinada muito por causa desse ódio”, explica Domênico, 41 anos, em entrevista ao Setor 1.

“Ela está na história que não está na história”, diz o compositor para justificar a presença da ativista letra. A homenagem, prevê o funcionário dos Correios, futuro vovô, pode trazer consequências nos próximos meses, a depender do resultado nas eleições.

Censura? “Eu tenho certeza que isso pode acontecer”, afirma. E se a extrema-direita vencer? “O povo do samba terá que voltar a ser resistência. Talvez o samba volte a subir o morro para se refugiar e retorne mais forte”, responde o compositor, que assina o samba com Tomaz Miranda, Mama, Marcio Bola, Ronie Oliveira e Danilo Firmino.

Marielle Franco – Divulgação

Leia a entrevista na íntegra abaixo:

Conversando com algumas pessoas, alguns se referiam ao samba de vocês não como o “samba do Domênico”, mas como o “samba da Marielle”. Como é isso para você?
Eu imaginei que alguma coisa nesse sentido poderia acontecer, não necessariamente ser considerado o “samba da Marielle”, mas nós entendíamos que a Marielle ser incluída seria um diferencial, que geraria discussão. A gente tinha algum receio de colocar o nome dela e as pessoas não entenderem e dizerem que nós estávamos sendo oportunistas. Realmente ouvimos muito sobre isso. Na verdade, quando pegamos a sinopse e o Leandro (Vieira, carnavalesco da Mangueira) fez a explanação do enredo, nós percebemos que a história precisava ser contada de uma maneira real e verdadeira, mas de jeito fraterno. Que a gente conseguisse combater o ódio que tem sido plantado no Brasil. E a Marielle foi assassinada muito por causa desse ódio.

Dentro da democracia, você não poder fazer críticas, não conseguir desenvolver uma luta contra a desigualdade, pelos direitos humanos, contra a repressão do povo pobre e negro das favelas, e ser calada com assassinato, é muito semelhante à história de Luiz Mahin, Maria Felipa, Dandara e outros heróis do passado que ficaram escondidos.

No nosso samba, tem um trecho que diz que “tem sangue retinto pisado atrás do herói emoldurado”. Isso quer dizer que muitos dos heróis que estão em praças públicas, que viraram nomes de rua, imortalizados pela história oficial, nas mãos deles tem sangue de gente que lutou pela verdade. Hoje nós temos na nossa história contemporânea: uma pessoa que não deve virar nome de rua, nem praça… Uma simples placa da Marielle foi destruída por um candidato que acabou sendo eleito, mostrando que de fato as pessoas que lutam são silenciadas. Hoje um deputado acaba sendo um herói emoldurado, com “sangue retinto pisado” nas mãos.

Toda pessoa que renega ou relativiza a morte da Marielle, tem o sangue dela nas mãos. Por isso colocamos o nome da Marielle no samba. Ela é o símbolo da mulher que luta diariamente contra a opressão, a desigualdade, o machismo, a homofobia, e que é silenciada pela sociedade hipócrita ou pelo sistema.

Samba lindo, torcida contagiante e parceria dedicada. É CAMPEÃO!!!

Posted by Victor Nunes on Sunday, October 14, 2018

E a Marielle nem está na sinopse.
Mas ela sempre esteve no enredo. É só fazer a interpretação. A gente não quer exaltar a vereadora do PSOL, com uma ideologia… Nós exaltamos uma mulher negra, que saiu de comunidade, que quebrou o paradigma que o Paulo Freire sempre colocou, de que “quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor”. Ela virou uma vereadora, representante das mulheres, das negras, dos homossexuais, dos oprimidos, da luta contra a desigualdade, da favela. E ela foi morta por causa disso. Logo ela está dentro da “história que a história não conta”. Inclusive a história não conta quem matou Marielle.

Que tipo de opiniões contrárias, e de quem, vocês ouviram sobre a inclusão da Marielle no samba?
A gente ouviu muita coisa… Nem vale a pena citar nomes, porque essas pessoas não merecem. Eu sinto vergonha alheia. O problema não é concordar com a política partidária da Marielle. Outra coisa é negar a capacidade que ela tinha de lutar. E pior: relativizar o assassinato dela. Isso me incomoda. Mas quem fala demais dá bom dia a cavalo. Prefiro não debater, elas não merecem.

Esse samba parece ter força suficiente para a Mangueira falar para fora da “bolha” do Carnaval, e chegar a pessoas que estão mais distantes desse universo. Como foi com Tuiuti em 2018. Você concorda? Gostaria que você comentasse.
Quando a gente começou a construção do samba, eu não sabia se disputaria na Mangueira. Disputar samba-enredo é muito difícil, seja em escola grande, pequena ou até em bloco. É preciso uma estrutura financeira. Gasta-se algo em torno de dois carros zero km ou até uma casa própria, isso para ser minimamente competitivo. Sou funcionários dos Correios, ganho pouco, e todos meus parceiros são duros. E tem um cara na Ala de Compositores da Mangueira que é multicampeão, que é o Lequinho, grande compositor, com patrocinador… Eu sou militante de esquerda, filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT), e me diziam que meu espaço na escola seria reduzido por causa das minhas opiniões políticas. Mas o presidente Chiquinho sempre tratou a Mangueira acima de tudo, sem misturar o mandato dele como deputado estadual com a agremiação. A Mangueira sempre foi muito democrática. Eu já tinha apresentado um projeto para tornar a disputa na escola menos custosa, mas foi durante o processo (de escolha) e acho que nem foi apreciado. Eu pensei: nesse momento preciso dar uma de cientista maluco e testar o experimento em mim mesmo.

Luiza Mahin, líder da Revolta dos Malês – Reprodução

Como vocês planejaram enfrentar esse sistema?
Com o tempo, as escolas deixaram de conquistar as pessoas pelos sambas. Criou-se uma padronização dos desfiles em que o gênero samba-enredo foi prejudicado com uma pasteurização, e deixou de furar a bolha do Carnaval. Antigamente você reconhecia de onde era o samba pelas suas características. Hoje parece tudo igual. Se você perguntar a uma pessoa que gosta de música gospel qual samba ele gosta, ele vai responder “Explode Coração”. Eu falei para os meus parceiros: “nós não temos grana, vamos para a disputa contra uma parceria várias vezes campeã, merecidamente querida na escola, numa concorrência em que os ouvidos estão viciados; a gente só tem uma chance: fazer o samba da nossa vida, nos descontruindo como compositores, acabar com as manias dos sambas-enredo, para fazer algo novo, que desperte a atenção das pessoas e tenha alguma chance de conquistar o público externo que abrace nossa obra, e que a gente possa competir. Era algo altamente ousado e utópico, mas como sou um maluco, os parceiros abraçaram a ideia. Quando terminamos o samba, a gente sabia que ia dar o que falar. É a obra da minha vida, explodiu as portas da Mangueira e conquistou adversários históricos da escola. Muitos portelenses foram para a quadra torcer por nós, as pessoas abraçaram a causa do samba. A gente não tinha bandeira, letra em papel caro e só investimos mesmo em um palco forte, com (os intérpretes) Wantuir e Pixulé. Já ouvi gente dizendo que esse samba é a música mais bonita do ano em todos os gêneros. E olha que ela ainda nem ganhou formato fonográfico para a divulgação oficial.

Você tem ideia de quanto vocês gastaram na disputa?
É difícil responder, porque muitas pessoas ajudaram, e mudava a cada semana. Fizemos uma espécie de financiamento público com amigos. Mas seria algo em torno de R$ 20 mil O que posso dizer aos compositores que não contam com estrutura financeira é: acreditem no samba e tenham coragem de fazer uma obra diferente.

O samba de vocês pode quebrar esse paradigma de que só vence quem tem dinheiro?
Esse samba já quebra pelo menos um paradigma dentro da Mangueira, porque foi campeão. Se ano que vem volta tudo ao normal, não sei. Acho que se a Mangueira for campeã com esse samba, muda o Carnaval.

Se o resultado das urnas confirmarem as pesquisas eleitorais, o Brasil terá um presidente da extrema-direita. Isso em um país em que o debate político perdeu espaço para um acirramento da rivalidade mais pueril e violenta, principalmente pelo lado dos apoiadores de Jair Bolsonaro. Imaginando esse cenário para os próximos meses, como você imagina que o samba da Mangueira vai atravessar o pré-Carnaval?
Eu faço duas análises sobre o que pode acontecer com o Brasil. Se acontecer (eleição de Bolsonaro), sendo bem franco, eu estou mais preocupado com a minha vida e da minha família. Estou preocupado se eu vou chegar ao Carnaval. Quando começou a resistência à ditadura militar, as pessoas eram torturadas e mortas. Eu estou para lançar um show chamado “Manifestação”, que é uma música que fiz, é minha linha musical, e nada vai me tirar o direito de gritar. Hoje vivemos numa suposta democracia e estamos prestes a eleger uma pessoa que é amante da ditadura. Pode ser que eu consiga fazer o show, sem censura, mas posso sofrer consequências. O que vai acontecer com o Domênico, um simples compositor da Mangueira? Eu estou muito preocupado com a vida da minha família. Eu tenho duas filhas e vou ser avô em abril. Eu sou uma liderança sindical nos Correios, e muitos trabalhadores lá ainda não compreenderam a gravidade do problema, o que está por vir. Eu temo que possam silenciar algumas frases do samba. Mas eu espero e acredito que esse samba vai ser o samba da resistência, que vai dar voz às pessoas, que estão acuadas com essa onda fascista.

Mangueira 2019

Então você acha que a Mangueira pode sofrer uma pressão de um eventual governo Bolsonaro para mexer na letra do samba, para censurar?
Eu tenho certeza que isso pode acontecer. Não sei os bastidores, mas esse ano o “vampiro Temer” da Tuiuti desfilou no Sábado das Campeãs sem faixa presidencial. Eu não posso ser leviano e dizer que foi uma censura, mas tenho o direito de dizer que aquilo não foi legal. De quem partiu, não sei. Mas dentro de um processo democrático, não foi normal. Agora imagine isso num governo de uma pessoa referendada pelo voto, pregando ódio e repressão.

Você sofreu alguma ameaça nesse período de disputa de samba?
Não, mas ouvi de algumas pessoas próximas da Mangueira, que não fazem parte da diretoria da escola, pedidos para “maneirar no discurso político” ou mudar uma frase no samba.

Um cenário político possível no Rio de Janeiro é de, além de um prefeito ligado à Igreja Universal, notoriamente pouco ou nada simpático às escolas, ter um governador de perfil mais conservador, o Wilson Witzel, e um presidente da extrema direita. O que você acha que vai ser do Carnaval com o Rio sob esses três níveis de poder?
Se isso acontecer, a gente volta à Idade Média, onde a religião fala mais alto que tudo. E acho que o povo do samba será perseguido. Não tenho dúvidas quanto a isso. Haverá um alinhamento ideológico e político colocado em prática, com cerceamento de direitos, da alegria e do desenvolvimento da cultura pelo Carnaval, e de censura. O povo do samba terá que voltar a ser resistência. A gente vai ter que ser forte para lutar e resistir. Talvez o samba volte a subir o morro para se refugiar e retorne mais forte. Uma coisa você pode ter certeza: pode ser o Bolsonaro presidente, pode ser o Hitler ou até o capeta, o samba não vai morrer.

Ouça o samba:

Romulo Tesi

Romulo Tesi Jornalista carioca, criado na Penha, residente em São Paulo desde 2009 e pai da Malu. Nasci meses antes do Bumbum Paticumbum Prugurundum imperiano de Aluisio Machado, Beto Sem Braço e Rosa Magalhães, em um dia de Vasco x Flamengo, num hospital das Cinco Bocas de Olaria, pertinho da Rua Bariri e a uma caminhada do Cacique de Ramos, do outro lado da linha do trem. Por aí virei gente. E aqui é o meu, o nosso espaço para falar de samba e Carnaval.

7 comentários

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  • Não achei nada de mais o samba, em termos políticos, mas achei absurda a postura do repórter dizendo que os eleitores do Bolsonaro que são violentos, sendo que nos não demos facada em ninguém, a oposição quem deu. Procure por vídeos para ver quem é que sofre violência!

  • Olha só o que os esquerdistas põe nas cabeças das pessoas mais humildes. Infelizmente, Marielle foi vítima da milícia. Essa facção que cresceu sob os olhares complacentes do partido das trevas. O samba é patrimônio cultural do nosso Brasil. Tem suas raízes embasadas no cotidiano do povo e não é partido político e nem presidente que vai mudar. Mude o disco e deixe de se vitimizar.

  • Palhaçada!
    Esse tipo de coisa não deve se misturar ao mundo do samba…
    Quando a crítica generalizada ou cômica, vale pq é pra geral curtir, agora ficar nessa do #EleSim #Elanao #seremosresistencia e blá blá blá… já deu né?
    Já bastou a mangueira se pronunciar a favor de Haddad, agora vem a palhaçada do carnavalesco?! Daqui a pouco vai vir Chiquinho fazer graça Também!
    Por favor, cada coisa em seu lugar né?