Em dias consecutivos, o mês de abril reservou à música brasileira, em três décadas, efemérides de tristeza e alegria. Paulo César Pinheiro, um dos nossos maiores compositores, nasceu há 72 anos, em um dia 28. Entre 1991 e 1995, sua data natalícia ficou ensanduichada por duas perdas do tamanho de sua obra – Gonzaguinha e Raphael Rabelo, respectivamente em 29 e em 27 de abril.
Produtivo, transitando entre a tradição e experimentos com novos compositores, Paulo César Pinheiro é poeta e letrista de qualidade e produção esplêndidas. Tem milhares de canções compostas; e se uma parte é de amplo conhecimento popular, a maior quantidade, pelos números feéricos e pelo estilo pouco comercial que a indústria fonográfica classificou suas composições. Em mais uma coincidência, é casado com a irmã de Raphael, a cavaquinista Luciana Rabello.
Raphael Rabello foi um virtuose precoce. Muitos lhe pespegam o rótulo de gênio. Adolescente, já era profissional e tocava ao lado dos grandes nomes da música brasileira. Começou tocando violão de seis cordas; mas, ainda criança, apaixonou-se pela sétima corda do violão de Dino Sete Cordas – o violonista que atuou por décadas e foi a grande referência de Raphael. O discípulo superou o mestre; se com Dino e outros o sete cordas era instrumento de acompanhamento, com os contrapontos a tornar mais densa e grave a harmonia de sambas, choros e canções – com Raphael tornou-se mais do que um instrumento de acompanhamento. Ele o transformou, e se transformou, em solista. E fez o caminho até o proscênio, dividindo, de igual para igual, o palco e as capas de discos com cantores. Teve uma vida trágica, pelo que recebeu o epíteto de “o Mozart do violão”; morreu aos 32 anos, internado em uma clínica de reabilitação.
A obra de Paulo Cesar Pinheiro, eclética mas com boa parte fincada no samba, é a partitura de um estilo triste, melodioso, com letras a emprestar-lhe significado contrário a carnavalização do samba. Nos anos 60, Nelson Cavaquinho atraiu a admiração de jovens que se encantavam com a mensagem de seus sambas, com sua história de vida, com seu carisma. Um deles, Paulo César, em pouco tempo se tornar um dos mais profícuos e talentosos compositores da música brasileira. Em 2003, Pinheiro lançou o CD O Lamento do Samba, com catorze músicas inéditas, todas de sua autoria, letra e melodia, sem parceiros. Sua voz rouca, que muitos dizer ser parecida com a de Nelson, empresta mais dolência às interpretações. O samba de abertura, que dá título ao CD, não apenas reafirma os ensinamentos de Noel, Candeia e Vinícius – mas o radicaliza: a beleza do samba é o seu lamento, sem ele o samba perde sua força, deixa de ser verdadeiro, torna-se superficial, falsamente alegre. E vai além: faz da falsa alegria do samba um libelo contra sua carnavalização.
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O menino muito magro, quase diáfano, que desceu o Morro do São Carlos para cantar a vida revelou seu talento no início dos anos 1970, na geração que emergiu imediatamente após a Era do Festival. É difícil afirmar qual o melhor disco do Gonzaguinha, posto que sua obra sempre foi permeada pela qualidade. A fase mais interessante de sua carreira foi entre o fim dos anos 1970 e início dos anos 1980, quando conseguiu encontrar o ponto de equilíbrio que o levou a facetas diferentes e ao mesmo tempo complementares: o compositor político, o cronista da sociedade, o lirismo das canções românticas, o impressionista que via o mundo pelas suas experiências pessoais. “De volta ao começo”, lançado no distante 1980, é uma obra esplendidamente representativa dessa conciliação que, por estranho que hoje pareça, foi difícil a Gonzaguinha. Quando suas letras tinham mais conteúdo político, foi tachado de macambúzio; quando elaborou a arte da canção romântica, criticaram-no por ser muito popular e derramado. Morreu aos 45, em acidente de caro. Eis a letra de “De volta ao começo”:
E o menino com o brilho do sol
Na menina dos olhos
Sorri e estende a mão
Entregando o seu coração
E eu entrego o meu coração
E eu entro na roda
E canto as antigas cantigas
De amigo irmão
As canções de amanhecer
Lumiar e escuridão
E é como se eu despertasse de um sonho
Que não me deixou viver
E a vida explodisse em meu peito
Com as cores que eu não sonhei
E é como se eu descobrisse que a força
Esteve o tempo todo em mim
E é como se então de repente eu chegasse
Ao fundo do fim
De volta ao começo
Ao fundo do fim
De volta ao começo
Gonzaguinha e Raphael Rabello voltaram ao começo.
Bruno Filippo – Jornalista, sociólogo
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