“Explode coração na maior felicidade”
Se o leitor já passou dos 30, é bem possível que tenha completado na rádio mental: “é lindo meu o Salgueiro”. Ou mesmo se for mais jovem, também. Isso porque os versos de “Peguei um Ita no Norte”, trilha do desfile campeão do Salgueiro de 1993, saiu da Marquês de Sapucaí para virar um dos maiores clássicos da história da música brasileira. E cujo autor, Demá Chagas, morreu nesta terça-feira (4), após anos de luta contra um câncer.
Para quem é de fora do universo do samba, Demá é um ilustre desconhecido. Mas é dele (e de parceiros) a obra que embalou – e embala – os verdadeiros testes de popularidade de um clássico fonográfico nacional: as festas de formatura, casamentos, bodas e afins, isso sem falar nos estádios de futebol. Enfim, “Ita” é um sucesso absoluto, um hit eterno. E saiu do Sambódromo para conquistar o povo ignorando polarizações.
O próprio Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição) atesta: em levantamento feito em 2021, o samba de Demá e parceiros foi a segunda música mais executada na cidade do Rio de Janeiro nos 10 anos anteriores. Só perdeu para “Parabéns pra você”, sua companheira de festas, diga-se.
“Ita” ficou à frente de “Só hoje”, do grupo Jota Quest, que completa o pódio. “Esperando na janela”, do Falamansa, e “Garota de Ipanema” completam o top 5.
Isso no Rio, mas dá pra cravar: se alguém parar na Praça da Sé, em São Paulo, às 17h de uma terça-feira, e berrar “explode coração” (respeitando a métrica da melodia original, claro), é bem provável que alguém complete “na maior felicidade”. Nem que seja mentalmente.
É a força de um clássico, que coloca Demá e demais compositores salgueirenses na história da música brasileira. Eles ajudaram a mudar o gênero, numa época em que o Carnaval das escolas de samba enfileiravam hits radiofônicos. Tempos em que, curiosamente, acabaram justamente nos anos 1990. Depois de “Ita”, talvez somente o samba da Mangueira do ano seguinte, 1994, tenha “furado a bolha” (com o perdão do clichê).
Depois, os sucessos produzidos pelo Carnaval se limitaram, cada vez mais, à chamada “bolha carnavalesca” (perdão, de novo, pelo clichê). Alguns ensaiaram voos maiores, mas não passaram dos limites da cidade. Outros até ganharam o Maracanã e os pagodes, mas os tempos já eram outros.
Recentemente, Mangueira 2019 chegou perto. Impulsionou o título da Verde e Rosa em um desfile colocado por público e crítica na prateleira dos maiores do Carnaval. O samba de Manu da Cuíca, Luís Carlos Máximo (este, pivô da última revolução no gênero) e parceiros passou a ser executado nas rodas e virou um hino reivindicatório antes de ir para a avenida, em fins de 2018, ano que dispensa maiores apresentações (né, Mário Magalhães?).
Conhecido como “Samba da Marielle”, pela menção na letra à vereadora Marielle Franco, executada em março daquele ano – em um crime até hoje sem solução -, Mangueira 2019 levou o título com o desfile sobre os personagens brasileiros ignorados pela literatura oficial. A apresentação desenvolvida pelo criativo e engajado carnavalesco Leandro Vieira impulsionou ainda mais o samba. O resto é história para acordar gente grande.
Mas voltemos à 1993. Curiosamente, “Ita” não chegou a ser um sucesso antes do desfile. Mas foi na avenida, num desfile arrebatador sobre as viagens de navio entre o norte do Brasil e o sudeste, que ele aconteceu. Cantado em uníssono pela Sapucaí, aquele momento produziu algumas das imagens mais marcantes do Carnaval: o povo nas arquibancadas com mãos para o alto, enquanto na pista os componentes quicavam ao som do novo hit pop brasileiro. Se você nunca viu, vá ao YouTube para entender algo difícil de ser explicado em palavras.
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Aí sim, com a devida bênção do povo, “Ita” passou pela Praça da Apoteose já consagrado. O samba pegou a rua Frei Caneca e viajou para o Brasil e o mundo, rebatizado como “Explode Coração”, verso do refrão mais popular de todos os sambas de enredo.
Explode coração
Na maior felicidade
É lindo o meu Salgueiro
Contagiando, sacudindo essa cidade
Esses quatro versos fizeram com que as escolas de samba – incluindo o Salgueiro – passassem o restante daquela década (e parte da seguinte) buscando um novo “Ita”, com mais ou menos talento, na tentativa de promover uma catarse como a de 1993, mas sem chegar perto do sucesso da turma de Demá. Estes, porém, já estavam com os nomes cravados na MPB.
Demá teve oito sambas como trilha dos desfiles do Salgueiro, incluindo o do último Carnaval este ano, e é um dos compositores mais vitoriosos do Carnaval.
Depois de “Explode Coração”, somente o samba da Mangueira de 1994, sobre os “Doces Bárbaros” Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Maria Bethânia, do mestre David Corrêa (outro produtor de grandes êxitos eternos do Carnaval) conseguiu sucesso semelhante, cantado antes e depois da Quarta-Feira de Cinzas nas festas e arquibancadas. Mas perde na avenida, com um desfile sem o mesmo brilho do campeão anterior.
Ah, não sabe qual é esse samba da Manga? É aquele: “Me leva que eu vou, sonho meu…” (Eu sei que sua rádio mental completou)
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