Crianças da capa de “Patota de Cosme” relembram foto com Zeca Pagodinho e revelam histórias de vida

Crias da Mangueira e neta de Elson do Forrogode relembram bastidores da foto da capa do segundo disco de Zeca Pagodinho e narram suas histórias pessoais

Num fim de tarde de outono carioca em 1987, Mussum percebeu um burburinho familiar no morro. Ao se aproximar, confirmou a suspeita: Zeca estava na Mangueira.

“Ele não saía daqui”, lembra, referindo-se a Zeca Pagodinho, que fazia mais uma visita à Mangueira, agora com a missão de posar para a foto da capa do seu novo disco, “Patota de Cosme”.

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Mussum estava saindo da escola quando se deparou com o sambista, já uma estrela da música brasileira, cercado de gente. O menino tirou a camisa da escola e se misturou as outras crianças na algazarra causada pela presença de Zeca e equipe, formada pelo fotógrafo Oskar Sjostedt e o produtor Milton Manhães, entre outros.

“Eu nem sabia que era pro disco”, conta Mussum, cujo rosto acabou estampando, junto de outras quase 40 crianças, numa das capas mais famosas do samba.

O Setor 1 localizou três delas, que revelaram as lembranças do dia da foto e suas histórias pessoais.

CARLOS

Zeca Pagodinho, Patota de Cosme
Mussum, em destaque na foto

Carlos Antônio Costa da Silva era um garoto de 10 anos quando foi parar na capa do “Patota”. Ganhara o apelido de Mussum dos vizinhos, por causa da semelhança com o sambista dos Originais do Samba e humorista dos Trapalhões. Mas o sonho mesmo do menino era ir ao programa da Xuxa.

“Eu sempre falava isso: ‘um dia eu vou na Xuxa'”, lembra Mussum.

A presença na capa do disco valeu a notoriedade no morro. Passou a ser conhecido, junto das outras crianças, como o garoto que estava no LP do Zeca. Mas até descobrir que estava famoso, levou tempo.

“Quem me avisou da capa foi o titio Delegado”, recorda Mussum, informado pelo célebre mestre-sala mangueirense que ele era um dos rostos do “Patota”.

Zeca Pagodinho, Patota de Cosme, Mussum
Mussum em foto atual – Acervo pessoal

“Eu andava pelo morro e uns brincavam: ‘olha lá o artista! Tá famoso, vai pra Europa!’ Teve gente que achou que estava rico”, diverte-se.

A família de Mussum não tinha dinheiro para comprar o LP, muito menos uma vitrola. Morava numa casa de família numerosa, de muitos irmãos, e sem televisão. Para assistir às novelas, aos jogos do Flamengo e ao Xou da Xuxa, só na casa da Dona Lea, figura importante da Mangueira.

Na época, proibido pela mãe linha dura de frequentar a quadra da Mangueira, pulava muro pra ver a bateria da Verde e Rosa em ação. De tanto insistir, virou ritmista da recém-fundada Mangueira do Amanhã, tocando surdo. Rapidinho deixou as categorias de base e foi tocar no time de cima, quando conheceu o compositor Ivo Meirelles.

Anos depois, o músico, com trânsito no mundo do samba e no pop rock nacional, recrutou um grupo de jovens para uma série de ensaios na sua casa.

“Ele juntou a garotada e disse: ‘isso aqui vai mudar a vida de vocês'”, narra Mussum, um dos escolhidos para formar o grupo Funk’n’Lata.

Clipe de “Mangueira”, do Funk’n’Lata com Seu Jorge; Mussum é o de camisa do Flamengo

“A gente começou a chorar”, lembra o músico, já um jovem adulto – e com algum dinheiro para, enfim, comprar o “Patota de Cosme”, mas já em CD.

Com o sucesso do Funk’n’Lata nos anos 1990, concretizou a profecia dos vizinhos e viajou pelo mundo, incluindo a Europa. E realizou o sonho de ir à Xuxa – não na plateia, mas como músico, mais do que o menino de 10 anos imaginava.

“Foi o dia mais feliz da minha vida”, diz.

CLÁUDIO

Zeca Pagodinho, Patota de Cosme

Até 1999, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) ocupava um prédio (implodido em 2018) na Mangueira. Era por ali que ficava Claudinho na infância, jogando bola e eventualmente ganhando um refrigerante dos funcionários do órgão federal. E era justamente lá que ele estava quando alguém passou avisando: estavam dando doce no morro. O garoto largou a bola e subiu a favela correndo, e deu de cara com o bololo de gente brigando para sair na foto com Zeca.

“Eu nem sabia quem era Zeca Pagodinho”, admite Cláudio Pereira, que tinha oito anos quando foi parar, sem saber, na capa do “Patota”.

“Mandaram as crianças se juntarem pra foto do lado da casa do titio Delegado”, conta Claudinho, hoje com 42 anos, lembrando da residência do mestre-sala como referência.

Só quando o álbum saiu é que Claudinho descobriu que estava na capa. E como o amigo Mussum, foi avisado pelos vizinhos, porque também não tinha dinheiro para comprar o LP.

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“Na época falaram que a gente estava famoso, que tinha ficado rico”, relembra Claudinho, que nem vitrola em casa tinha. O disco mesmo só foi comprar quando estava na casa dos 18 anos, em CD, e já não morava mais na Mangueira.

Claudinho perdeu a mãe cedo, morta aos 28 anos, deixando o menino órfão aos 10. Com isso, teve a história da própria vida reconstituída pelas tias.

“Contam que minha mãe era uma negra bonita, do samba, moradora da Mangueira. Meu pai era branco, português, e morava na Tijuca. Ele frequentava a quadra da escola de samba, onde conheceu minha mãe e se apaixonou”, narra. Dessa paixão nasceu Cláudio.

Zeca Pagodinho, Patota de Cosme, Claudinho
Claudinho hoje, aos 42 anos

Quando a paixão acabou, a mãe trocou o português por outro amor. E a vida seguiu, com o pai mantendo o pagamento da pensão até o filho completar 21 anos. Mas a vida não era fácil para um garoto órfão de mãe na Mangueira.

Primeiro Claudinho foi morar com a avó, mas não deu certo. E a Mangueira, de algum jeito, acabou salvando o menino.

“Eu jogava futebol na Vila Olímpica da Mangueira. Lá conheci o Luiz André, um advogado que era diretor da escola. Ele viu minha situação e me convidou para morar com a família dele no [bairro do] Flamengo”, conta.

A vida mudou radicalmente. O menino teve acesso a um mundo bem diferente, e ganhou a oportunidade de trilhar um caminho quase inacessível para a maioria das crianças nascidas na Mangueira dos anos 1980.

“Não sei o que seria de mim se não fosse essa família”, diz.

Claudinho completou os estudos e fez faculdade de Educação Física. Mesmo fora do morro, manteve-se perto das raízes. Voltou a frequentar a Mangueira em 1997 e ingressou no Camp Mangueira. O projeto social fez o meio-de-campo para o primeiro emprego na Gilette, como menor aprendiz, conquistado via convênio da escola de samba.

“Foi quando comecei a ganhar meu dinheirinho”, lembra Claudio, que voltaria a residir na Mangueira em 2005, já casado.

“Eu moro a uns 200 metros de onde tiraram a foto do ‘Patota'”, diz Claudinho, hoje de volta à Vila Olímpica da Mangueira, mas como treinador da categoria sub-9 do futsal e professor de um projeto no alto do morro.

CLARISSA

Patota de Cosme, Zeca Pagodinho

Clarissa Cruz da Silva perde a conta ao enumerar os sambistas com quem conviveu.

“Arlindo Cruz, Neguinho da Beija-Flor, Dhema, Reinaldo, Dicró… Ih, foram muitos muitos!”, diz. Entre tantos, algumas das memórias mais vivas são do avô, Elson do Forrogode, e de Zeca Pagodinho, com quem estrela, com destaque, a capa do “Patota”.

Clarissa era só um bebê de no máximo nove meses quando foi pega no colo pelo sambista para a foto do LP, convocada pelo próprio cantor.

Zeca Pagodinho, Patota de Cosme, Clarissa, Elson do Forrogode
Clarissa no colo do vovô Elson – Acervo pessoal

“Na minha família todo mundo conta essa história”, diz ela, hoje com 36 anos. “Onde eu ia, se tinham o disco, me mostravam”, completa.

A história começa pela mãe, Claudia, cantora que fazia coro nos shows de Zeca. Em uma sessão de gravação do “Patota”, no estúdio Transamérica, no Engenho Novo, bairro da zona norte do Rio, o compositor viu Clarissa com Claudia e exigiu a presença de menina na foto da capa.

“O Zeca ficou encantado com a Clarissa. Gravamos e fomos pra Mangueira”, lembra a mãe, filha e backing vocal de Elson, cantor de vários sucessos como “Talismã” e “Jeito Atrevido”, e voz de vinhetas famosas da rádio Globo.

Clarissa foi morar com os avós em Pedra de Guaratiba, na zona oeste do Rio, quando a mãe se separou do pai, Washington, diretor de harmonia em algumas escolas de samba, incluindo a Grande Rio, que fará o enredo de Zeca no Carnaval 2023.

Zeca Pagodinho, Patota de Cosme, Clarissa, Elson do Forrogode
Clarissa atualmente – acervo pessoal

Ainda novinha, junto da mãe, Clarissa passou a fazer parte da trupe que viajava para os shows de Elson. A bordo de uma espaçosa Furglaine, modelo de utilitário popular entre as décadas de 1980 e 90, a família cruzava o Rio de Janeiro.

Foi nessa época que a menina conheceu o mundo do samba, e o avô coruja passou a chamar a neta de Clarissa do Forrogode, emprestando o sobrenome artístico.

Elson morreu em novembro de 2017. Na ocasião, Zeca entrou em contato com Clarissa. E como faz metade da turma do samba, mencionou a capa. “Ele lembrou que eu estava no colo dele”, conta.

Romulo Tesi

Romulo Tesi Jornalista carioca, criado na Penha, residente em São Paulo desde 2009 e pai da Malu. Nasci meses antes do Bumbum Paticumbum Prugurundum imperiano de Aluisio Machado, Beto Sem Braço e Rosa Magalhães, em um dia de Vasco x Flamengo, num hospital das Cinco Bocas de Olaria, pertinho da Rua Bariri e a uma caminhada do Cacique de Ramos, do outro lado da linha do trem. Por aí virei gente. E aqui é o meu, o nosso espaço para falar de samba e Carnaval.

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