O centenário de Zé Kéti (1921-1999), neste inverno de 2021, não poderia cair em arco temporal mais modelar para a celebração de sua vida e obra. Mais de cinco décadas separam-no do Brasil que, dividido social, política e musicalmente, ele tentou unir, com certo êxito, por meio de seus sambas.
Nascido no Rio em 16 de setembro de 1921, acompanhou, já com o dom da música aflorado, a revolução musical provocada pela bossa-nova; e, sendo um sambista do morro ligado as escolas de samba, enxergou oportunidade de aproximar dois universos que, para ele e alguns luminares do bossa-novismo, poderiam dar liga – não obstante a objeção de críticos radicais, como Jose Ramos Tinhorão.
Esse adito aconteceu. Zé Kéti, compositor que retratava as mazelas do povo pobre em canções recheadas de críticas sociais – o que ia de encontro à estética poética da bossa-nova, calcada no barquinho, no amor, no sorriso e na flor; mas, ao encontrar-se com Carlos Lyra, ambos compuseram “Samba da Ilegalidade”. Foi de Lyra a ideia de que uma moca da Zona Sul Carioca, em casa com vista para o mar, poderia grava-lo, por ser um sambista de morro. Nara Leão foi a escolhida. Gravou “Diz que fui por aí” em seu primeiro disco, em 1964. O samba é um sucesso que acompanhou, a ele e a ela, ao longo de toda a carreira deles.
Nara Leão e Zé Kéti, ao lado de Joao do Vale, participaram do show “Opinião”, em 1964, para cujo título Kéti compôs um samba em que a letra dizia: “Podem me prender/Podem me bater/Que eu não mudo de opinião”. Foi o primeiro grande espetáculo de contestação ao recém-instalado regime civil-militar. “Opinião” nomeou um jornal de oposição, um grupo de teatro e o segundo algum de Nara Leão.
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Não obstante tanto êxito, Zé Kéti foi criticado por (supostamente) embranquecer-se, por aliar-se à classe artística burguesa; assim como Nara Leão sofreu com essa aproximação – como se a arte não fosse capaz de conciliar e consolidar mundos na aparência opostos – mas com pontos de aproximação, principalmente estéticos e, a partir de um certo momento, social.
O centenário de Zé Kéti é um alerta: hoje, com o pensamento dominado pelo pós-modernismo indenitário, talvez a atitude Nara Leão fosse classificada de “apropriação Cultural”, ou de não estar no “lugar de fala” adequado, uma vez que não era sambista de morro. O Brasil dos anos 1960 já ficou para trás; suas ferramentas de exclusão para resumir-lhe o povo, sofisticaram-se.
*Bruno Filippo é jornalista e sociólogo.
Este texto não reflete necessariamente a opinião do Setor 1.
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