Quinta escola a desfilar no primeiro dia da Série Ouro, o grupo de acesso do Carnaval carioca, a União da Ilha do Governador levou para a Marquês de Sapucaí uma apresentação dedicada a Nossa Senhora Aparecida. Em seguida, a Unidos de Bangu fez um desfile dedicado ao bicheiro Castor de Andrade – com a “presença” do próprio. Na sequência, fechando o dia, já com o sol cobrindo a avenida, a Acadêmicos do Sossego falou sobre a urgência de salvar o mundo, tendo como inspiração a obra do xamã yanomami Davi Kopenawa.
Outras quatro agremiações desfilaram na abertura do Carnaval pós-pandemia de Covid-19, mas somente esse recorte dessas três últimas já servem de cartão de visitas dos desfiles das escolas, que voltaram após um cancelamento, em 2021, e um adiamento, em fevereiro deste ano.
“A linda loucura do carnaval: hoje teremos enredos sobre duas yalorixás, duas santas católicas, um bicheiro e um xamã”, resumiu o escritor Luiz Antonio Simas em post no Twitter na noite desta quarta-feira.
Como o povo do samba gosta de dizer: só no Carnaval isso é possível.
A noite começou com um retrato de um Brasil dos anos 80, que a crise dos anos Bolsonaro tornou atual em 2022: inflação, pobreza e desamparo social – mazelas descritas no enredo da Em Cima da Hora de 1984, “33 – Destino Dom Pedro II”, reeditado este ano. O samba, que narra a vida dos trabalhadores que encaram trens lotados e patrões intransigentes, foi inclusive o grande motor de um desfile aguerrido, mas plasticamente inferior aos demais.
Em seguida, a Acadêmicos do Cubango inaugurou a série de enredos de temática religiosa com uma homenagem à atriz Chica Xavier. Mas a escola preferiu jogar luz sobre uma persona menos conhecida da artista: a de yalorixá. A escola foi alvo de boatos nos últimos dias, de que não havia entregado todas as fantasias. Mas para surpresa de pelo menos quem recebeu mensagens e áudios com as fofocas durante o dia, a agremiação passou inteira, ainda que sofresse de alguns visíveis problemas visuais. Mas a emoção foi a tônica do desfile.
Terceira da noite, a Unidos da Ponte exaltou a Santa Dulce dos Pobres, a primeira brasileira canonizada pelo Vaticano. O samba, nem tanto inspirado como da coirmã anterior, não ajudou a carregar um desfile em ritmo de romaria. Não deu em milagre. Mas o público viu uma ligação da santa com o ator Paulo Gustavo, morto em 2021 de Covid-19 e que também é enredo da São Clemente: o artista, devoto da santa, doou R$ 1,5 milhão para obras sociais e de atendimento a pessoas com câncer na Bahia.
De volta aos desfiles com temáticas afro-religiosas, a Porto da Pedra fez uma homenagem à yalorixá Mãe Stella de Oxossi. O enredo buscou cobrir boa parte da vida da religiosa, destacando os ensinamentos da candomblecista, mostrados de forma literal: escritos em alegorias e fantasias. Um imponente tigre, símbolo da escola, foi o destaque de uma abertura quente na fresca noite carioca de outono. Tudo isso embalado por um samba considerado um dos melhores da escola nos últimos anos pela crítica especializada. A apresentação colocou a Porto da Pedra entre as favoritas ao título.
No entanto, ainda tinha a União da Ilha e seu desfile-devoção à Nossa Senhora Aparecida. Rebaixada em 2020, em uma apresentação irreconhecível, a escola da Ilha do Governador entrou “mordida”, nas palavras do intérprete Ito Melodia, e mostrou que talvez seja maior que o grupo de acesso. O refrão do samba, que mencionava o nome da santa, era especialmente berrado pelos componentes, que trouxeram a letra toda na ponta da língua.
A apresentação foi praticamente perfeita, da emocionante comissão de frente, que teve a participação da atriz Cacau Protásio encarnando a própria santa, até a última ala. Um desfile para quebrar a corrente da Ilha com o acesso, como aconteceu com Zacarias, escravo libertado por um milagre de Aparecida, personagem central do enredo.
Em tempo: em mais uma da série “só no Carnaval”, a Ilha esquentou com “Festa Profana”, de 1989, de título autoexplicativo, e “Nossa Senhora” do Roberto Carlos, e foi acompanhada pelo público do Setor 1 do sambódromo.
Na montanha russa temática do Carnaval, chegou a vez da Unidos de Bangu fazer uma inusitada – e sem disfarce – exaltação ao bicheiro Castor de Andrade, tornado popular pelo patronato da Mocidade Independente de Padre Miguel e do Bangu, o clube de futebol. As duas instituições foram citadas no desfile, cada uma com um carro alegórico.
E por falar em disfarce, o que mais chamou atenção foi a “aparição” do próprio Castor – na verdade, a fantasia do mestre-sala Anderson, que incluía uma máscara do contraventor. Anderson incorporou o personagem: andou com seguranças na concentração, teve a mão beijada por presentes, saudou o público com o clássico gestual do bicheiro e, claro, dançou com a porta-bandeira Eliza. E ainda teve jogo do bicho, claro, representado pela fauna das apostas no carro abre-alas. O desfile, porém, se arrastou: a escola estourou o tempo em três minutos e deve perder 0,3 – que no jogo do bicho, é avestruz.
Por fim, a Acadêmicos do Sossego, do carnavalesco revelação André Rodrigues, levou para a avenida, já com o dia claro, o “papo reto” do alarme indígena sobre o mundo. E a escola foi buscar inspiração no trabalho de Davi Kopenawa, xamã yanomami, e seu livro “A queda do céu”. A obra, além de ser um relato do indígena sobre sua vida, reúne o que pensa o líder sobre meio ambiente, cultura e política. A Sossego e Rodrigues embalaram tudo para apresentar formas de adiar o fim do mundo, para citar outro pensador indígena, Aílton Krenak. Tudo pintado com a escala de cores mais bonita do dia, apesar do horário do desfile, na manhã do Rio de Janeiro.
Assim, o primeiro dia de desfiles acabou com um atraso de aproximadamente quatro horas, quando já eram 7h30 no relógio da Central, o mesmo do desfile da Em Cima da Hora.
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