Pandemia, negritude, orixás e Martinho da Vila: conheça os enredos das escolas de samba do Rio em 2022

Viradouro campeão de 2020. Escola defende o título em 2022 com enredo inspirado na pandemia de Covid-19. Veja os enredos das escolas
Desfile campeão da Viradouro de 2020 – Fernando Grilli/Riotur

As escolas de samba do Grupo Especial do Rio de Janeiro vão, enfim, pisar na avenida para os desfiles oficiais do Carnaval fora de época. Após o cancelamento de 2021 e o adiamento de fevereiro deste ano, por causa da pandemia de Covid-19, as 12 agremiações se apresentarão nos dias 22 e 23 de abril, no feriadão de Tiradentes. Os enredos as escolas vão desde homenagens a artistas, louvações a orixás, exaltação da negritude e defensa dos povos indígenas, cobrindo alguns dos temas de maior relevo no Brasil atual.

Confira a ordem dos desfiles do Carnaval 2022

Veja abaixo os enredos das escolas para o Carnaval de 2022 e ouça os sambas:

IMPERATRIZ LEOPOLDINENSE

Título: “Meninos, Eu Vivi… Onde Canta o Sabiá, Onde Cantam Dalva e Lamartine”

No retorno da Imperatriz ao Grupo Especial, a escola fará uma homenagem ao carnavalesco Arlindo Rodrigues, morto em 1987. Arlindo é considerado um dos maiores artistas da história dos desfiles, mas é menos conhecido com do que Joãosinho Trinta e Fernando Pinto, para ficar em dois exemplos de contemporâneos. Uma das mentes por trás da chamada “Revolução Salgueirense” dos anos 60, Arlindo fez história em pelo menos mais duas gigantes: Mocidade Independente de Padre Miguel e a própria Imperatriz, onde é apontado como o responsável por dar uma identidade estética à escola. Foram oito títulos na carreira, sendo cinco no Salgueiro, dois na Imperatriz e um na Mocidade. O desfile leva a assinatura de uma aluna de Arlindo, a multicampeã Rosa Magalhães, que está de volta a Ramos.

MANGUEIRA

Título: “Angenor, José & Laurindo”

No sexto desfile seguido assinado pelo inventivo carnavalesco Leandro Vieira, a Mangueira olha para si e dedica o desfile de 2022 a uma trinca de baluartes: Cartola, Jamelão e Delegado. Recebido como uma reparação histórica, após a escola deixar passar outras oportunidades de homenagear os dois primeiros da lista – em 2008 e 2013 -, o enredo se torna uma oportunidade de jogar luz sobre o terceiro, personagem pouco popular fora da chamada “bolha carnavalesca”. O artista tem uma história que se confunde com a própria escola, com mais de 35 anos defendendo as cores da Velha Manga como mestre-sala – o maior da história segundo a crítica especializada. Em 2021, Delegado faria 100 anos, mas como o dançarino só faz aniversário em 29 de dezembro, a homenagem ainda será feita dentro do centenário. Tá valendo.

SALGUEIRO

Título: “Resistência”

Terceira a desfilar na sexta-feira (22), o Salgueiro vai exaltar locais e personagens importantes da história de resistência negra no Rio de Janeiro. E aí entram espaços mais populares no imaginário da cidade, como a Praça XI, um dos berços do samba, até o Baile Charme de Madureira, evento que reúne jovens ao som de música black sob o Viaduto Negrão de Lima desde os anos 1970 – um recorte nada óbvio, mas que promete criar mais um laço de identificação com o povo carioca. O desfile é assinado pelo carnavalesco Alex de Souza, e o enredo conta com a pena da professora Helena Theodoro.

SÃO CLEMENTE

Título: “Minha vida é uma peça”

A São Clemente é uma das escolas que mudou o enredo no meio da pandemia de Covid-19. Inicialmente, a escola havia anunciado “Ubuntu” – filosofia com origem nos povos bantus que significa “humanidade” e trata da importância dos laços entre as pessoas. Depois da morte do ator Paulo Gustavo, vítima da Covid, em maio de 2021, a agremiação de Botafogo rapidamente decidiu dedicar o desfile ao artista. A sugestão foi dada pelo ex-carnavalesco, atualmente comentarista da Globo, Milton Cunha. A promessa é de uma apresentação que não somente exalte a figura de Paulo Gustavo e seus personagens, mas que faça uma defesa da comunidade LGBTQIA+. O desfile é assinado pelo carnavalesco Tiago Martins.

VIRADOURO

Título: “Não há tristeza que possa suportar tanta alegria”

Com um dos enredos “filhos” da pandemia, a atual campeã Viradouro vai tentar o bi seguido – e terceiro título da sua história no Especial do Rio de Janeiro – com um dos desfiles mais aguardados desde o anúncio, sobre o mítico Carnaval de 1919 no Rio, o primeiro após outra pandemia, tal qual o de 2022, só que da chamada Gripo Espanhola. O enredo em si, da dupla de carnavalescos Tarcísio Zanon e Marcos Ferreira, parecia caminhar para ficar datado, mas ganhou nova força com a comoção com que a comunidade do samba aguarda a chance de, enfim, voltar a desfilar depois do cancelamento de 2021. Mas talvez a maior força da escola de Niterói resida no samba, um chiclete digno dos sucessos radiofônicos que, apesar de dividir opiniões, tem pelo menos duas virtudes: o arrojo do formato de carta, uma sacada do compositor Felipe Filósofo, os versos que resumem o sentimento de sambistas e sambeiros: “Carnaval, te amo/Na vida és tudo pra mim”.

BEIJA-FLOR

Título: “Empretecer o pensamento é ouvir a voz da Beija-Flor”

Caso houvesse um título de pré-Carnaval, talvez ele fosse dado à Beija-Flor de Nilópolis. Em uma festa acostumada a ver um descompasso entre discurso e prática, a “escola mais preta do Carnaval”, segundo as palavras do ator Milton Gonçalves a autor deste blog, transcendeu. O enredo sobre a valorização dos feitos e dos pensadores negros, muitos escondidos na história oficial (olá, Mangueira 2019), foi colocado em prática em Nilópolis desde os primeiros trabalhos. Começando pela contratação do carnavalesco André Rodrigues, uma das grandes revelações dos desfiles, que aos 30 anos está no rol de artistas que tem o que falar. Na Beija-Flor, André trabalha com o veterano e multicampeão Alexandre Louzada.

Outro nome de relevo da escola, a porta-bandeira Selminha Sorriso empunhou outra bandeira, a da lei 11.645, sobre a obrigatoriedade do ensino da História e cultura afro-brasileira e indígena nas escolas. A apresentação deve começar com um velho clichê, totalmente justificável para o contexto: o Egito antigo – ou melhor, Kemet. De um jeito, portanto, original. A sinopse mistura Frantz Fanon, o rapper Emicida e o compositor Cabana, e a tradução de como tudo isso se dará em fantasias e alegorias é uma das maiores expectativas da temporada. Fora o samba, que já dá uma pista com o verso “arte negra em contra-ataque”.

PARAÍSO DO TUIUTI

Título: “Ka Ríba Tí Ye – Que nossos caminhos se abram”

O retorno de Paulo Barros ao Tuiuti, onde despontou em 2003, no acesso, marca o primeiro enredo afro do aclamado carnavalesco. Outra escola que mudou o tema do desfile, o Tuiuiti havia primeiro anunciado um enredo sobre a defesa dos animais. A agremiação de São Cristovão mudou para o “Ka Ríba Tí Ye”, que, segundo o próprio texto de apresentação, promete contar “histórias de luta, sabedoria e resistência negra”. Como toda apresentação de Paulo Barros, só na hora do desfile será possível descobrir o que saiu da cabeça do carnavalesco em sua primeira incursão com a temática afro. Mas se sabe que referências do cinema e da cultura pop em geral são aguardadas, como um carro alegórico sobre o herói dos quadrinhos e filmes Pantera Negra.

PORTELA

Título: “Igi Osè Baobá”

Um ano antes do seu centenário, a Portela vai homenagear os próprios ancestrais com um desfile dedicado ao baobá – árvore sagrada de origem africana que, para a escola, carrega diversos significados – a começar pelas raízes fortes. Na apresentação do enredo, a escola já deu spoilers de como pretende relacionar a árvore aos seus baluartes – entre eles Monarco, que morreu em novembro de 2021. O desfile leva a assinatura do veterano casal Marcia e Renato Lage, na segunda apresentação deles pela Portela. “O baobá é o alicerce, a representação da distância, da dor, da saudade, da incerteza e da esperança de voltar. Além disso, simboliza resistência. Por tudo isso é considerada a árvore da vida”, disse o presidente da Portela, Luís Carlos Magalhães.

MOCIDADE

Título: “Batuque ao Caçador”

A Mocidade em 2022 vai homenagear seu orixá padroeiro, Oxóssi, para quem toca sua bateria. Aliás, a escolha do enredo passa por ela. Em 2020, notas baixas para a escola no quesito, e com justificativas que não “desceram” para os independentes, motivaram a escolha. Isso depois de o presidente da agremiação ter anunciado um enredo sobre o azeite “pro lado afro”. Virou meme. Mas deu tempo de ajeitar as coisas, e a Mocidade vai exaltar a própria bateria – como entrega o título do enredo, concebido pelo jornalista Fábio Fabato. O carnavalesco Fábio Ricardo ficou com a missão de desenvolver o desfile, que contará com um dos sambas mais festejados da temporada, com um irresistível refrão. “Arerê Arerê, Komorodé/Todo ogã da Mocidade é cria de Mestre André”, diz a letra, que menciona um mítico mestre de bateria da escola e que virou adjetivo nas redes sociais: areretizado.

UNIDOS DA TIJUCA

Título: “Waranã, a reexistência vermelha”

A Unidos da Tijuca tem um daqueles enredos resumíveis em uma palavra: guaraná. Mas, claro, o combativo carnavalesco Jack Vasconcelos vai partir do mito indígena, da comunidade Sateré-Mawé, sobre a criação da fruta, passar pela defesa dos povos originários e chegar na bebida doce, ligada aos festejos de Cosme e Damião e aos erês. O título do enredo, uma mistura das palavras “resistência” e “existência”, foi inspirado na lenda sobre o curumim Kauê. Conta-se que um casal de índios, após clamar a Tupã, teve um filho que se mostrou muito valente desde pequeno. O indiziozinho, que gostava de desbravar a mata em busca de alimentos, despertou a inveja de Jurupari, entidade maligna que tramou uma emboscada para o jovem. Jurupari se transformou em cobra e matou o jovem com uma picada. Os pais então decidiram seguir as ordens de Tupã e planos olhos do filho, nascendo daí a árvore que dava frutos que se pareciam com os olhos humanos. Assim nasceu o guaraná. O samba, um dos queridinhos de parcela da chamada “bolha carnavalesca”, será defendido na avenida por Wantuir e Wic, pai e filha. Tanta doçura promete emocionar.

GRANDE RIO

Título: “Fala, Majeté! Sete Chaves de Exu”

Se há cerca de uma década alguém sugerisse um desfile integralmente dedicado a Exu, o dono da ideia seria tratada com no mínimo alguma incredulidade – dado o injusto estigma em torno do orixá cultuado no Candomblé e na Umbanda. Mas a surpresa fica ainda maior com a escola que levará Exu para a avenida: a Grande Rio. Conhecida como uma escola próxima ao jet set carioca e responsável por enredos de relevância questionável – quando não patrocinados -, a agremiação de Duque de Caxias consolida a guinada iniciada em 2020, com o desfile sobre o pai de santo Joãozinho da Gomeia, e leva Exu para o maior espetáculo da Terra. No Brasil de 2022, o enredo por si só já é uma ousadia. Mas a dupla de carnavalescos Gabriel Haddad e Leonardo Bora, que já havia assinado o desfile de 2020, condensou as várias facetas do orixá, indo de referências populares até personagens marginalizados, como Estamira, a catadora de lixo protagonista do documentário homônimo. O título do enredo, inclusive, foi tirado do filme. Grande Rio 2022 é um dos eventos culturais imperdíveis do ano.

VILA ISABEL

Título: “Canta, Canta, Minha Gente! A Vila é de Martinho”

Vai acontecer: Martinho da Vila será enredo da escola do coração e que lhe dá sobrenome. O mais esperado desfile de 2022 ainda será, em definição por sorteio – ou ação dos deuses do samba, vai saber – o último, já na manhã de domingo. Ou seja, o caberá a Martinho e a Vila fecharem o primeiro Carnaval após a pandemia de Covid-19. Na comunidade do samba, já há quem aguarde inclusive o arrastão pós-desfile – quando o público invade e pista e “desfila” até a Praça da Apoteose. O que passará na avenida, dizem alguns, tem menos importância que o próprio evento da homenagem. Mas se sabe que haverá menções às obras do sambista, a Angola e às comunidades de Vila Isabel. O samba, de melodia nada óbvia e letra com belas imagens, como o Martinho de chinelo de dedo pelo boulevard 28 de Setembro, promete ser uma atração a parte. “Ferreira, chega aí”, diz a letra de André Diniz, Evandro Bocão e parceiros. Enfim, chegou.

Romulo Tesi

Romulo Tesi Jornalista carioca, criado na Penha, residente em São Paulo desde 2009 e pai da Malu. Nasci meses antes do Bumbum Paticumbum Prugurundum imperiano de Aluisio Machado, Beto Sem Braço e Rosa Magalhães, em um dia de Vasco x Flamengo, num hospital das Cinco Bocas de Olaria, pertinho da Rua Bariri e a uma caminhada do Cacique de Ramos, do outro lado da linha do trem. Por aí virei gente. E aqui é o meu, o nosso espaço para falar de samba e Carnaval.

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