Caju 2024: como o samba da Mocidade fez gênero entrar na era viral e rendeu enredo com Lula e ‘quiprocó’ noventista pacificado por Paes

Bruna, porta-bandeira da Mocidade no desfile de 2024 – Dhavid Normando/Rio Carnaval

O samba da Mocidade Independente de Padre Miguel havia acabado de encarar os jurados na Marquês de Sapucaí, na noite da última segunda-feira de Carnaval (12), e o cantor da escola, Zé Paulo Sierra, recebia os cumprimentos de amigos e fãs pelos caminhos do Sambódromo. Era o fim de uma saga do “caju”, como ficou singelamente conhecido o samba-enredo que serviu de trilha para o desfile de 2024, sobre o fruto.

De cabelo pintado com um desenho de um caju e a palavra “laroyê”, saudação ao orixá Exu, Zepa, como também é conhecido, comemorava.

“Eu me diverti muito”, disse.

Parece pouco, mas, no caso da Mocidade, a felicidade do intérprete e do restante da escola era a virada que a turma independente sonhava para 2024. Isso depois de dois desfiles problemáticos. O plano tinha dado: enredo e samba sobre um tema bem brasileiro que desse liga com torcida. Antes, porém, a batida quase azedou.

Zé Paulo Sierra, cantor da Mocidade – Foto: Romulo Tesi

“Vai dar merda!”, reagiu o mestre de bateria Dudu, lembrando a reação no anúncio do enredo, em meados de 2024 – a Mocidade foi a última a divulgar o tema para o Carnaval 2024.

Dudu inclusive diz que não estava sozinho na trincheira contra o caju. “Eu falei na época: ‘tem que dar a volta por cima falando de caju?’ Eu fiquei preocupado, já que a gente vinha de dois carnavais complicados”, completa o músico, usando um eufemismo para definir os desfiles de 2022 e 2023.

“Desfile mais triste da história”

No primeiro desfile pós-pandemia de Covid-19, a Mocidade dedicou o desfile a Oxóssi, padroeiro da escola. A expectativa era grande, mas a escola “desintegrou” ainda na armação, com problemas em acoplamentos do abre-alas, comprometendo toda a apresentação. No ano seguinte, a escola falou sobre os artistas discípulos de Mestre Vitalino, em Alto do Moura, mas terminou em penúltimo, colocação que a tirou do sorteio da ordem de desfiles e botou com a inglória missão de abrir o segundo dia de Carnaval do Grupo Especial. Algo precisava ser feito.

Fora da pista, assistindo à sorumbática apresentação de 2023 das frisas, o jornalista Fábio Fabato ligou o sinal de alerta após testemunhar o que chama de “um dos desfiles mais tristes da história da Mocidade”.

Autor do aclamado enredo sobre Oxóssi, Fabato, no papel de enredista, foi convidado a voltar à escola para ajudar a resolver a encrenca.

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“Eu falei: a gente tem que fazer diferente. Por que não apostar num tema transversal, que não tem sido feito? Acho que o fato da extrema direita ter saído do poder faz com que estejamos mais relaxados e possamos recuperar a conexão com a brasilidade. A aposta foi essa. Bora morder a carne de caju pra sentir o sabor do Brasil?”, propôs Fabato, que também é biógrafo da Mocidade.

Ideia entregue, e imediatamente veio a oposição – inclusive de gente importante, como o do já citado mestre de bateria. “Muita gente falou que não dava, nem para o samba, nem para o enredo. ‘Não pode mais isso, é muito fraco’. Eu insisti que dava. Tudo pode, são formas diferentes de ver o Brasil”, declarou o enredista, que, junto do aliado, o carnavalesco Marcus Ferreira, venceu a pendenga.

Assim, o caju nasceu batizado com o título sacana de “Pede Caju que Dou… Pé de Caju que Dá”. E a história absolveu Fabato.

Caju viral

O samba escolhido, assinado por um dream team de compositores formado por Cláudio Russo, Diego Nicolau, Marcelo Adnet, Paulinho Mocidade entre outros nomes conhecidos do meio, furou a bolha, como dizem quando uma obra ganha o público de fora do Carnaval. O “Caju” se tornou inclusive o primeiro samba de enredo viral no Spotify, que, por analogia, seria como uma música do gênero ficar entre as mais tocadas no rádio nos anos 1980 e 90.

“É um privilégio para nós, que estamos cantando esse samba, mas também para todo o Carnaval. O samba viralizou, furou a bolha, algo que não acontecia desde os anos 1990. A gente ter essa chance de retornar ao cenário musical brasileiro como protagonista é muito legal”, analisa Zé Paulo.

Mocidade 2024 – Alex Ferro/Riotur

Na primeira vez no Sambódromo, no ensaio técnico de 7 de janeiro, o som pifou justamente na hora da Mocidade se apresentar. Teve apresentação, mas com o som falhando. O clamor foi tanto que a escola ganhou uma nova data para ensaiar, e o caju fez com que a Liesa se mexesse para comprar um trio elétrico novo, mais moderno.

“Aquilo precisava acontecer para os organizadores entenderam o tamanho do Carnaval”, afirma o diretor musical da Mocidade, André Felix, arranjador do samba e autor do “oi, oi, oi” da introdução.

“Pela badalação que estava em torno do samba, se a gente começa com o mesmo caminhão, ia parecer que era marra. Iam dizer: “começou na hora que quis”. E não foi isso”, se defende. O caju sobreviveu, e continuou dando o que falar fora da bolha carnavalesca.

A letra continha uma polêmica pronta pra explodir: a citação a um certo Luiz Inácio, o pescador que plantou o que, dependendo do estado, é considerado o maior cajueiro do mundo, no Rio Grande do Norte. A confusão com o presidente Lula foi instantânea – e era parte do plano, como entrega Fabato.

Vou erguer um monumento para seu Luiz Inácio

Trecho da letra do samba da Mocidade de 2024

“Óbvio que tem um duplo sentido”, admite o jornalista, presente na festa promovida pelo prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, que tinha como principal convidado o próprio presidente da República. A casa de Paes, na Gávea Pequena, foi o palco para Lula, enfim, ouvir o samba que o citava sem citar, executado pela bateria e o cantor da escola, ao vivo.

“O Lula adorou, ficou apaixonado. Foi um negócio de doido”, lembra Fabato. “Eu achava que o Lula não sabia, ele ficou surpresíssimo. E a [primeira-dama] Janja confirmou que torce para a Mocidade”, completa o jornalista.

O quiprocó

A festa do prefeito também serviu para resolver um quiprocó entre sambistas, que colocou de lado opostos a galera da Mocidade e o carnavalesco da Imperatriz, Leandro Vieira.

Dias antes, a revista piauí publicou um perfil de Vieira, que, ao falar de como imagens vazadas de alegorias nos barracões podem influenciar as notas dos julgadores, citou o samba do caju como exemplo.

“Em qualquer ano, [o samba da Mocidade] seria considerado um samba ruim, digno de notas baixíssimas, mas teve um ótimo marketing digital da escola e é apontado como um dos favoritos desse Carnaval. Talvez os jurados tenham medo de tirar pontos em função do que se tornou consenso antes do desfile”

Leandro Vieira à piauí

De uma vez só, Vieira desagradou torcedores da escola e a numerosa fandom do samba. Virou guerra assumida.

Mas Paes, um político conhecido também pela habilidade em realizar conexões políticas, promoveu a paz entre as partes – com o perdão do trocadilho com o nome do prefeito.

“O Leandro disse que não era bem assim… Ficou aquela implicânciazinha gostosa de Carnaval, bem noventista, bem Mocidade x Imperatriz. Mas já passou e que bom que estão resolvidas”, diz Fabato.

Fábio Fabato, enredista da Mocidade autor do caju – Foto: Romulo Tesi

“A frase na revista está muito infeliz. Falei isso para o próprio Leandro, que me ligou no dia em que explodiu a polêmica. Ele falou que não tinha feito aquilo, que ele ama o caju e a Mocidade”, completa o jornalista.

“Foi ótimo”, diz Leandro, que se diz um admirador da turma da Mocidade.

“Foi a oportunidade de bater papo, ate porque sou fã de todos eles. Sou fã do trabalho do Zé Paulo, do mestre Dudu”, declarou. “Às vezes existem alguns mal entendidos que a gente só resolve pessoalmente. Tá resolvidíssimo. Muita coisa é treta de internet, e as tretas da internet nem sempre existem no mundo real”, declarou Leandro na noite de segunda na Sapucaí, quando Imperatriz e Mocidade já haviam desfilado.

Caju tendência

O trelelê, como o trash talk dos lutadores de boxe para promover os combates, acabou deixando o samba ainda mais famoso.

“Ele atacou uma coisa que está dando certo. O samba voltou ao protagonismo. A Imperatriz tem um dos melhores sambas do Carnaval, mas o da Mocidade bagunçou a cabeça de todo mundo, saiu da bolha e vai mudar o Carnaval para o próximo ano”, prevê Félix.

Zé Paulo Sierra em ação na Sapucaí em 2024 – Sad Coxa/Rio Carnaval

Um veterano das disputas de samba-enredo, multicampeão em várias escolas, o compositor Cláudio Russo, um dos autores do caju, tem a mesma opinião: “ano ano que vem teremos mais enredos nesse estilo”. O que não é necessariamente uma boa notícia para o frontman Zé Paulo.

“O problema é que no Carnaval tudo vira tendência, e ano que vem tá todo mundo querendo fazer a mesma coisa, e fica tudo igual novamente”, diz. Até chegar a nova moda.

Romulo Tesi

Romulo Tesi Jornalista carioca, criado na Penha, residente em São Paulo desde 2009 e pai da Malu. Nasci meses antes do Bumbum Paticumbum Prugurundum imperiano de Aluisio Machado, Beto Sem Braço e Rosa Magalhães, em um dia de Vasco x Flamengo, num hospital das Cinco Bocas de Olaria, pertinho da Rua Bariri e a uma caminhada do Cacique de Ramos, do outro lado da linha do trem. Por aí virei gente. E aqui é o meu, o nosso espaço para falar de samba e Carnaval.

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