Já faz algum tempo, desde o início da pandemia de coronavírus, que Gabriel* mal consegue pagar o aluguel da casa onde mora. Quando pode, dá ao dono do imóvel uma fração do valor total, e usa o restante dos R$ 600 de auxílio emergencial para algumas contas e comprar comida. Assim tem sido a dura rotina do aderecista, que viu a renda mensal de pouco mais de R$ 2 mil, em média, desabar por causa da paralisação dos trabalhos nos barracões das escolas de samba por questões sanitárias.
“Esse mês eu dei R$ 100 ao senhorio”, disse Gabriel ao Setor 1, enquanto tenta, sem sucesso, conseguir trabalho em outras atividades.
O operário faz parte de um grupo de trabalhadores afetados pela crise instaurada nas agremiações desde que a Covid-19 avançou sobre o Carnaval. Eles atuam sem vínculo formal com as escolas, apoiados em acordos verbais, sensíveis às intempéries de um evento sazonal, expostos a eventuais calotes e órfãos de um sindicato que os abrace. Isso numa festa que exibe orgulhosa a cifra de R$ 4 bilhões de movimentação econômica em apenas quatro dias.
Em um Rio de Janeiro sem pandemia, Gabriel e outros como ele, que trabalham por empreitada, já estariam nos barracões ajudando na confecção de protótipos de fantasias, para ficar em apenas uma atividade entre tantas – onde pintar serviço, eles estarão, convocados por carnavalescos ou diretores. Acostumado a atender telefonemas com oferta de trabalho, Gabriel teve que tomar a iniciativa dessa vez.
“Eu ligo, mas a resposta é sempre a mesma: nada”, lamenta o aderecista, que tenta ser contemplado por campanhas de arrecadação de dinheiro e cestas básicas, como o Barracão Solidário, organizado pelo carnavalesco Wagner Gonçalves, da Estácio.
Sem desfiles?
No Rio de Janeiro, pelas declarações recentes de autoridades do Carnaval, os desfiles não acontecerão em 2021. A resposta final será dada em setembro, possivelmente até o dia 18, uma das datas previstas para a plenária na Liesa (Liga Independente das Escolas de Samba) que vai anunciar a decisão final sobre o próximo Carnaval. O presidente da liga, Jorge Castanheira, não deu margem para interpretação quando disse, em entrevista à Veja Rio, que sem vacina não haverá desfile. Mais: a ideia de um adiamento para o meio do ano, afirma o dirigente, está praticamente fora de cogitação.
Assim, pela primeira vez na história, o Rio caminha para ficar um ano sem ver as escolas de samba na avenida. E o telefone de Gabriel vai continuar sem tocar.
Apesar do clima fraternal no início da pandemia, em que as escolas aturam confeccionando máscaras e organizando distribuições de mantimentos, retomando uma velha tradição de rede de proteção social, a realidade agora é diferente.
A crise bateu tão forte que instituições do porte da Estação Primeira de Mangueira tiveram que se virar como puderam. A Verde e Rosa vai sortear o posto de destaque central no carro abre-alas do próximo desfile, um lugar normalmente ocupado com gente com anos de avenida e Manga. A Viradouro, atual campeã, tida como modelo de gestão e turbinada por uma volumosa subvenção municipal de cerca de R$ 2,5 milhões da prefeitura de Niterói, demitiu funcionários e reduziu salários.
Me dá um dinheiro aí
Poderia ser diferente? Talvez. Historicamente, as escolas se equilibraram entre o terreiro da tradição, o patronato da contravenção e intensas negociações com o poder público – por espaço, aceitação e dinheiro. Funcionou bem até meados dos anos 2010, mas não sobreviveu ao avanço conservador na política, que tem no Rio de Janeiro o próprio prefeito Marcelo Crivella como maior expoente, e à pandemia.
O alcaide, bispo licenciado da Igreja Universal, cortou as verbas destinadas às escolas de samba sucessivamente desde que assumiu, em 2017, até zerar a subvenção, uma tradição que é quase tão antiga quanto os desfiles, justamente no momento em que as agremiações mais precisam de ajuda.
No Brasil atual, o Carnaval passou a ter que justificar o apoio do poder público com mais argumentos que a óbvia importância cultural e histórica – uma ajuda que poderia manter pelo menos os empregos dos “heróis de barracão”. Mesmo a TV Globo, antiga parceira, segurou o repasse pelos direitos de transmissão.
Em tempos de crise, cobra-se mais das escolas do que o papel de ser a própria identidade da cidade e do país.
“Em momentos importantes, como as cerimônias de abertura e encerramento dos Jogos Olímpicos de 2016, o Carnaval foi protagonista. A imagem do Rio é muito ligada à festa, mas o aspecto cultural não tem sido suficiente na defesa do Carnaval”, diz Marcelo Balassiano, economista do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (IBRE-FGV).
“É preciso buscar novas formas de atrair dinheiro privado. O estado está quebrado. Depender muito disso é ruim, porque pode aparecer um governante que não goste de Carnaval”, completa.
E a economia do Carnaval ainda é um enigma. Os bilhões de reais anunciados pela prefeitura do Rio todos os anos reflete o resultado dos dias de folia. Mas a indústria das escolas de samba funciona durante todo o ano. No entanto, não se sabe o tamanho dela – ou, por exemplo, onde estão, quem são e quantos são os operários como Gabriel.
“A gente consegue dados da época do Carnaval, mas não do restante do ano. Quantificar isso é importante para defender a festa caso, por exemplo, um político queira cortar. Ninguém é obrigado a gostar de Carnaval, mas deve saber que ele tem importância em todas as áreas, inclusive econômica. A gente sabe que existe e que gera empregos, mas não saber quanto acaba sendo uma dificuldade maior, se tivesse esse dados seria mais fácil defender de ataques”, afirmou Balassiano.
Entram nessa conta toda a cadeia produtiva do Carnaval e os serviços a ele atrelados.
A hora pede mudanças na cadência do financiamento das escolas. E buscar apoio nas torcidas pode ser um caminho.
“Os programas de sócio-torcedor não deslancharam ainda, mas a saída pode ser por aí”, sugere.
E depois?
Mesmo diante do apagão de dados sobre o Carnaval, as escolas podem participar do esforço para a saída da crise. Justamente atendendo a uma demanda carente por entretenimento após meses de confinamento.
“Por uma questão de demanda reprimida, o setor de eventos tende a crescer bastante depois de quase uma no sem festas. Assim que for liberada, tende a se aquecer num curto prazo”, prevê Balassiano, lembrando que 90% dos turistas que vem pro Rio no Carnaval são brasileiros.
Por isso, o economista defende a realização dos desfiles, mesmo no meio do ano e menor.
“As escolas de samba podem ter uma importância muito grande para a economia da cidade no pós pandemia, e isso justifica ainda mais ter carnaval assim que acabar tudo isso”, completa.
Quando acontecer, Gabriel espera que o telefone volte a tocar com mais trabalho. A esperança, porém, diminui a cada notícia negativa.
“É uma tristeza muito grande. O Carnaval movimenta muito dinheiro e nós estamos nessa situação. Estamos ao Deus-dará, dependemos do Carnaval e não temos o Carnaval”, lamenta.
*Nome fictício. O nome verdadeiro não foi publicado a pedido do entrevistado
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Aydano André Motta: Hora de vestir a fantasia de barata para sobreviver ao apocalipse (e fazer carnaval em 2021) – Carnavalize
Ótimo texto. Me servirá muito para a produção do TCC que falará justamente da importância das escolas de samba para o Rio de Janeiro. Eu sou preciso ressaltar que o que as escolas de samba do Grupo Especial recebem da prefeitura não são subvenções, e sim um apoio financeiro. Essa terminologia é dada ao dinheiro concedido às escolas de samba dos grupos de acesso.
O Carnaval sempre contribuiu e muito com o desenvolvimento das regiões Brasil afora. No estado do Rio de Janeiro movimenta quase a metade dos oito bilhões indicados pelos institutos de pesquisa de 2018. De fato, o que governos e empresas devem pensar é em investimento pesado no segmento do Carnaval.
Nestes momentos de Pandemia tanto a iniciativa privada, quanto os governos municipal, estadual e federal tem quase obrigação em contribuir com o Mundo do Samba e suas populações criativas. Já se vão muitos anos que é o Carnaval fonte de renda de muitas famílias neste Rio de Janeiro.