Na história do Carnaval carioca, há dois personagens que acabaram escondidos com o passar dos anos, mas que foram decisivos para a criação dos desfiles das escolas de samba com são hoje. E ambos são protagonistas do mesmo momento mágico que marcou a revolução de uma agremiação em especial, cuja influência se alastrou e moldou a festa a partir de então. O ano é 1963. A escola é o Salgueiro. E os personagens são Arlindo Rodrigues e Isabel Valença.
Os dois são expoentes de uma história contada pelo pesquisador Leonardo Antan, autor do livro “Laroyê Xica da Silva!” (clique aqui para comprar), misto de tese de mestrado e ficção que conta a saga do célebre desfile de 1963 do Salgueiro, sobre a ex-escrava que se tornou nobre na Diamantina do século 18.
A saudação a exu no título tem uma explicação. Para Antan, as personalidades que interpretaram Xica da Silva o fizeram incorporadas pela “imperatriz do Tijuco”, tornada pombagira: Zezé Motta, Thaís Araújo e Isabel Valença – esta destaque do Salgueiro, fundamental no processo de popularização da personagem histórica.
“O imaginário que a gente tem que sobre Xica da Silva veio a partir desse desfile, não a partir do filme do Cacá Diegues ou da novela [da TV Manchete]. Claro que o filme e a novela potencializaram isso ainda mais. O Cacá fez o filme porque ele viu aquele desfile do Salgueiro, e ele diz que foi uma das experiências estéticas mais forte que teve”, diz Antan, que se consulta com Xica e de quem praticamente recebeu a ordem para escrever o livro.
A imagem de Isabel no desfile campeão de 1963, vestida como a dama Xica da Silva, com uma grande saia armada e peruca, entrou para a iconografia da cultura brasileira e lançou a destaque ao estrelato.
Esposa do então presidente do Salgueiro, Osmar Valença, Isabel virou uma figura pop do jet set carioca e ganhou as capas das grandes revistas da época, como “O Cruzeiro”. A popularidade foi tão grande que a primeira-dama salgueirense passou a frequentar eventos e bailes vestida como Xica.
Negra, chegou a ser barrada no Theatro Municipal – um mal disfarçado ato racista -, mas encontrou no então governador da Guanabara, o conservador Carlos Lacerda, um defensor. Liberada, se tornou a primeira negra a vencer o concurso de fantasias, vestida de “Rainha Rita”. Depois ganhou a Cinelândia embalada pela trilha do coro dos “súditos” cantando o samba salgueirense de 1963, de Noel Rosa de Oliveira e Anescarzinho.
“Apesar de não possuir grande beleza
Xica da Silva surgiu no seio da mais alta nobreza
O contratador João Fernandes de Oliveira
A comprou para ser a sua companheira
E a mulata que era escrava
Sentiu forte transformação
Trocando o gemido da senzala
Pela fidalguia do salão”
Trecho do samba do Salgueiro de 1963
“Esse desfile [de 1963] é perfeito para comprovar nossa máxima de que desfile de escola de samba é um evento artístico cultural mais importante do Brasil, porque ele faz isso, constrói uma personagem, revela para o Brasil uma história que a gente não conhece”, afirma Antan sobre Xica.
A imagem de Isabel é tão forte que, em 1965, no desfile sobre a História do Carnaval do Carioca, ela desfile como Xica – dois anos depois, a personagem já estava eternizada.
A conquista do Municipal por Isabel Valença carrega o simbolismo da vitória da cultura popular, além de marcar uma coincidência: o theatro foi o berço artístico de Fernando Pamplona, considerado o pai do Carnaval moderno, guia da revolução salgueirense, cuja força acabou, involuntariamente, “escondendo” Arlindo Rodrigues na turma que reinventou os desfiles. Tanto que o artista, verdadeiro criador do desfile de 1963, tem sua fama praticamente restrita à chamada “bolha do samba”.
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“Trazer o Arlindo para holofote é uma questão que eu me cobro muito, porque se fala muito pouco dele. E ele está sempre na sombra do Pamplona”, diz o autor, membro fundador do influente coletivo Carnavalize.
“A gente tem uma série de personagens que foram eclipsados ali, que ficaram na sombra do Pamplona. As figuras do Pamplona e do Arlindo são muito diferentes. Um era um homem hétero, de 1,80m de altura, voz de trovão e um poder narrativo muito forte. O Arlindo era uma figura de bastidores, discreta, que não queria palco ou visibilidade. Assim o Pamplona se torna um grande narrador”, explica.
A defesa de Antan busca fazer justiça com a memória de um dos maiores artistas brasileiros, oito vezes campeão do Carnaval. A primeira foi em 1960, no cultuado “Quilombo dos Palmares”, mas a obra que “fura a bolha”, afirma o autor, é “Xica da Silva”. Enredo que chegou a ser desprezado por Pamplona.
Curiosamente, a imagem mais marcante do desfile de 1963, Isabel Valença vestida de Xica, acabou associada muito mais a Pamplona do que a Arlindo. Não por acaso, na apresentação da São Clemente de 2015, sobre o ex-comentarista da TV Manchete, um carro alegórico tem como elemento principal a Xica de Arlindo.
A carnavalesca clementiana responsável pelo desfile foi justamente uma das pupilas de Pamplona, Rosa Magalhães, que, de volta à Imperatriz Leopoldinense, prepara um enredo sobre Arlindo para 2022 – ou quando houver Carnaval.
“A revolução salgueirense antes da ‘Xica’ não era tão forte. ‘Zumbi’ [‘Quilombo dos Palmares’, de 1960] não foi um estouro como muitos acham que foi. Quando a Rosa bota aquela alegoria ela está dizendo ‘Xica da Silva’ foi o grande filho da revolução, ela está reafirmando o que eu digo, que tudo vai para a conta do Pamplona. A Rosa poderia ter feito ‘Zumbi’, mas ela não fez porque sabe que ‘Xica’ foi muito mais importante”, afirma Antan.
Bela matéria.