Em 1991, o samba foi expulso do palco do Rock in Rio, no famoso show de Lobão com a bateria da Mangueira no Maracanã (relembre aqui). Em 2013, foi a vez do festival sofrer rejeição do povo do samba – só que sem chuva de latinhas. Naquele ano, a Mocidade Independente de Padre Miguel levou para a Marquês de Sapucaí um controverso enredo sobre o evento, promovendo um encontro de samba e rock que não caiu no gosto da tribo do Carnaval e resultou em um incômodo 11º e penúltimo lugar.
O anúncio do desfile se deu em setembro de 2011, na coletiva de lançamento da quarta edição do festival, que voltava após uma longa pausa de 10 anos. Haveria, portanto, tempo suficiente para preparar a apresentação, conseguir patrocinadores e fazer a comunidade “comprar” o enredo – missão que se revelaria uma das mais difíceis.
“Se fosse feito agora talvez não tivesse tanta rejeição como houve na época”, prevê o então carnavalesco da Mocidade, Alexandre Louzada, ao Setor 1, sobre seu “Eu vou de Mocidade com samba e Rock in Rio, por um mundo melhor”, como foi batizado o enredo.
Para colocar o Carnaval na avenida, Louzada conta que enfrentou diversos problemas financeiros. Havia a expectativa de patrocínios volumosos, principalmente do protagonista do desfile, o que não se concretizou.
“Foi um ano conturbado. O patrocínio não chegou e a gente fez o que pôde”, relembra o carnavalesco sobre aquele que seria o último Carnaval feito integralmente pela administração Paulo Vianna, no comando da escola desde 2004.
Na época, o Carnaval vivia o auge dos enredos patrocinados, alguns de gosto duvidoso, como o iogurte da Porto da Pedra do ano anterior. O assunto chegou a pautar a campanha para as eleições municipais de 2012, polarizada entre o candidato das escolas de samba, Eduardo Paes (então no PMDB), e Marcelo Freixo (PSOL).
A proposta do psolista poderia atingir diretamente as fontes de receita das escolas: condicionar a subvenção pública a enredos que tivessem relevância cultural.
“Isso é bem subjetivo. Quem pode determinar o que é cultural? Se o enredo não fosse considerado como cultural, a escola ficaria só com dinheiro do patrocínio. A repercussão entre as escolas foi péssima, e elas apoiaram em peso Eduardo Paes”, lembra o jornalista Victor Mey, autor do trabalho “Patrocínio, o enredo do meu samba: o caso do carnaval 2013”, sobre a busca por dinheiro pelas escolas de samba naquele ano.
A tribo do Carnaval acabou se dividindo: se as escolas apoiaram Paes em peso, a turma dos blocos colaram em Freixo.
Paes venceu o pleito, e a subvenção foi garantida: R$ 2 milhões, com uma primeira parcela de R$ 1 milhão paga ainda em 2012. A Mocidade ainda tinha, em tese, mais para receber de patrocinadores, incluindo do próprio Rock in Rio. Ou quase isso.
Entrou para o folclore do Carnaval que o festival não teria dado um tostão para o desfile. Não foi bem assim.
Oficialmente, a Mocidade recebeu R$ 1,8 milhão via Lei de Incentivo à Cultura, a Lei Rouanet – ou seja, patrocínio por meio de renúncia fiscal. De acordo com dados do Ministério da Cidadania (ex-Ministério da Cultura), foram R$ 1,25 milhão da Leader (por meio do braço de crédito da empresa), R$ 250 mil da Souza Cruz (fabricante de cigarros) e finalmente R$ 300 mil da Rock World, empresa que organiza o festival.
Louzada diz não ter sentido o impacto no barracão. “Para mim não chegou”, afirma o carnavalesco, campeão pela agremiação em 2017.
“A Mocidade é uma escola complicada, sempre com muitas dívidas e processos trabalhistas. Isso dificulta qualquer carnavalesco”, afirma o artista.
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O grosso do dinheiro do mecanismo apareceu só no início do ano. Segundo os registros do mecanismo de incentivo, as verbas da Rock World e da Leader – R$ 1,55 milhão somadas – foram liberadas em 17 e 18 de janeiro de 2013, respectivamente, portanto a menos de um mês do desfile, que aconteceu no dia 10 de fevereiro.
Fora do barracão, fazer a comunidade abraçar o tema foi outro desafio. Para piorar, o samba não era considerado dos mais inspirados e ainda tinha uma letra que poderia trazer problemas com o cumprimento do regulamento.
Nem tudo desafinou, lembra Louzada. O carnavalesco conta que, por causa do mote ambientalista do festival – “Por um mundo melhor” -, foi motivado a não usar plumas e apostar em materiais alternativos, sobretudo recicláveis.
Com isso, canudos de plástico, garrafas pet e acrílico assumiram o lugar que antes era das penas.
A alegoria que lembrava a lama da primeira edição do festival foi parcialmente coberto por mais de 300 calças jeans, todas doadas pela comunidade. Sobre a alegoria, cerca de 60 Freddie Mercury coreografados, mas na versão prateada, como personagem de voz fina do comediante Eduardo Sterblitch no extinto programa Pânico.
No último carro veio o idealizador e promotor do Rock in Rio, Roberto Medina (que esteve cotado para assumir a área comercial dos desfiles) acompanhado da filha Roberta. A dupla, de destaque na alegoria, desfilou cercada de artistas, todos atrações do festival, como Elza Soares, Marcelo Yuka, integrantes dos Detonautas e Ivo Meirelles – que em 1991 comandou a bateria da Mangueira no episódio das latinhas.
O “desastre” anunciado, porém, se confirmou, apesar do esforço de componentes e convidados ilustres – incluindo um animado Serguei, prestes a completar 80 anos de rock and roll, na comissão de frente. O figurino do roqueiro incluía uma camisa com uma explícita mensagem estampada: “Eu comi a Janis Joplin”. Na transmissão da Globo, narradores e comentaristas “censuraram” a frase no ar.
Um carro chegou a ficar travado em uma passarela na concentração, abrindo um preocupante buraco. A solução foi arrancar uma parte da traseira para ele passar, como contou uma testemunha ao blog.
“Houve muitos pontos positivos, como a inovação no material das fantasias. Hoje outros carnavalescos estão seguindo essa linha. Era uma proposta totalmente diferente dos moldes do Carnaval. Mas não me arrependo de ter feito. Foi uma experiência bastante gratificante”, conta Louzada.
Após um desfile de triste lembrança para os independentes, a escola esteve ameaçada de rebaixamento na apuração. Foram apenas duas notas 10: uma em Bateria, dada pelo jurado Cláudio Luiz Matheus, e outra em Fantasia, anotada por Emil Ferreira. Com 293,5 pontos, a Mocidade só ficou à frente da modesta Inocentes de Belford Roxo, com 291,1. (Veja o mapa de notas)
“Plasticamente, foi um julgamento com certo rigor, porque era uma estética totalmente diferente do que as escolas estavam acostumadas a fazer. Muitos já fizeram coisas inovadoras que não deram certo, como carro que ia explodir, mas mas não explodiu. Depois que faz aquela curva [na avenida Presidente Vargas] tudo pode acontecer”, analisa Louzada.
Entre desfile e Quarta-Feira de Cinzas, houve quem suspeitasse de uma infração ao regulamento: a Mocidade teria feito um merchandising da marca Rock in Rio no samba, o que é proibido, com previsto no artigo 26, parágrafo 8 do livro de regras daquele ano. O suposto desrespeito ao regulamento não ficou provado, e consequentemente não houve punição. Ainda assim, mesmo se perdesse o 0,5 ponto estabelecido como sanção, não sofreria risco de rebaixamento. Serviu ao menos para a Mocidade reagir a partir daquele Carnaval.
O festival faria as pazes com o samba em 2017, ao dedicar um espetáculo inteiro gênero no Palco Sunset. Na edição de 2019, a batucada foi escalada para o Espaço Favela.
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