Com Joãozinho da Gomeia, Grande Rio prepara festa contra intolerância religiosa

Joãozinho da Gomeia – Reprodução

Difícil encontrar alguém na comunidade do samba que não tenha se surpreendido com a ida da dupla Leonardo Bora e Gabriel Haddad para a Grande Rio. Jovens representantes da nova safra de carnavalescos, os dois se destacaram na Acadêmicos do Cubango com enredos ligados à cultura popular, e se transferiram para uma agremiação marcada pela badalação em torno de artistas de televisão famosos.

A mudança já foi sentida logo no anúncio do tema do desfile de 2020: uma homenagem a Joãozinho da Gomeia, um pai de santo negro, gay e apaixonado pelo Carnaval – uma figura pouco conhecida atualmente e bem distante do perfil “pop” da escola de Duque de Caxias.

“Era um pedido da escola: ‘nós queremos mudar a cara, queremos seguir linha de enredos ligados à cultura popular'”, conta Bora em entrevista ao Setor 1.

Em conversa com o blog, Bora, autor de um livro sobre Rosa Magalhães (“A Antropofagia de Rosa Magalhães”, do selo Carnavalize), conta um pouco de como o líder religioso será apresentado na avenida. Será um enredo engajado, político, adianta o carnavalesco, mas cuja “arma” é a festa.

“Não somos nós que vamos declarar guerra à intolerância religiosa. Quem declara guerra é quem depreda um terreiro. Nós estamos fazendo festa”, promete o carnavalesco, citando os seguidos ataques aos centros de candomblé e umbanda. E o último deles aconteceu justamente em Duque de Caxias.

Leonardo Bora e o livro sobre Rosa Magalhães, de sua autoria – Divulgação

Leia a entrevista abaixo:

O enredo sobre Joãozinho da Gomeia marca uma mudança na linha de temas que a Grande Rio vinha apresentando nos últimos anos. Vocês que levaram isso ou a escola já tinha essa ideia?
Foi uma confluência de ideias. Quando eu e Gabriel (Haddad) recebemos o convite, que nos pegou de surpresa, num primeiro momento veio o pensamento: nossa linha vinha com enredos diferentes um pouco diferentes da que a Grande Rio vinha percorrendo. Já nas primeiras reuniões, isso foi deixado muito claro de ambas as partes. Era um pedido da escola: ‘nós queremos mudar a cara, queremos seguir linha de enredos ligados à cultura popular’, com linguagem mais emocional, miúda, cuidadosa no trato artesanal. E também havia interesse da nossa parte em dar seguimento a uma trajetória artística que a gente vem construindo desde a Intendente Magalhães e conseguiu intensificar na Cubango. Esperamos intensificar ainda mais no Grupo Especial.

Quando apareceu o nome do Joãozinho da Gomeia?
Era uma ideia que estava no ar, e foi sugerida por algumas pessoas da escola, inclusive a Luise Campos, nossa assessora. Gente da comunidade, torcedores e até pessoas que estavam distantes da escola começaram a mandar mensagens. Fomos abraçando a ideia e, a cada mergulho, descobríamos uma faceta mais interessante, em parceria com o Vinícius Natal (antropólogo que acompanha a dupla nas pesquisas). Vimos nos relatos de época, de jornais e revistas, por exemplo, que o Joãozinho aparecia, nas décadas de 1940 e 1950, mais de 200 vezes por ano, dá quase uma matéria dele por dia. Assim o enredo foi nascendo, produto dessa rede, desse diálogo permanente.

Pelo o que se sabe era um enredo pedido havia muito tempo.
Havia essa expectativa. Se há uma escola no Grupo Especial que tem uma legitimidade territorial para falar de Joãozinho da Gomeia é a Grande Rio. Mas as coisas também vão confluindo. Está sendo filmado um documentário sobre ele, estava em cartaz uma peça, que assistimos no Galpão Gomeia, em Duque de Caxias… É um personagem que vem sendo redescoberto. Entendemos que era o momento de reconectar a escola com essa matriz de enredos que ela apresentou na década de 1990. Muita gente fala em “resgate”, mas não é necessariamente isso. É uma mudança de olhar. Olhar para si próprio, aprender com isso e construir algo novo.

A comunidade está participando da pesquisa? Muita gente que conviveu com ele está procurando vocês?
Sim, e nós também estamos procurando as pessoas. Nos dias subsequentes ao lançamento do enredo, recebemos muita gente no barracão. O Carlos Nobre [biógrafo do Joãozinho], pesquisadores acadêmicos, Sandra da Gomeia (Seci Caxi), Museu Nacional, o Átila Bezerra, que fez a peça… São longas conversas, num campo mais institucional, mas informalmente ouvimos os relatos mais variados em Duque de Caxias. Houve uma feijoada com pessoas que estão um pouco afastadas da escola, que presenciaram o enterro do Joãozinho da Gomeia, que frequentaram a Gomeia… Ouvir esses relatos foi e está sendo muito enriquecedor. É um enredo que transita por essas zonas, às vezes conflitivas. O texto do Jorge Amado, que foi ogã da Gomeia em Salvador, diz uma coisa, mas os relatos de matriz oral dizem outra coisa, e a gente fica no meio do fogo cruzado, o que do ponto de vista da investigação acadêmica é incrível. Do ponto de vista prático, da condição de carnavalesco, de ter que materializar isso em fantasias e alegorias com um cronograma, é um pouquinho complicado, mas a gente gosta.

Joãozinho da Gomeia na capa da Revista O Cruzeiro – Reprodução/O Cruzeiro

Jack Vasconcelos contou que se deparava com várias versões sobre a história do bode Ioiô [enredo do Paraíso do Tuiuti em 2019], e que do ponto de vista do artista isso era muito enriquecedor. Isso acontece também com a pesquisa do Joãozinho da Gomeia então.
Óbvio. Há essa disputa de olhares. Nosso trabalho é um entre muitos. Como mexe muito com o emocional, gera essa ideia de proximidade que também é muito enriquecedora. As pessoas perguntaram: ‘por que vocês não mencionaram tal detalhe que é fundamental da vida dele na sinopse?’. Mas não tem como colocar tudo na sinopse. O Gabriel até brinca, que se for colocar todas as histórias fantásticas que orbitam essa personalidade, teríamos que fazer ‘Joãozinho da Gomeia – Parte 2’em 2021. A peça, por exemplo, dá muita ênfase ao Carnaval, o que é um detalhe da biografia dele extraordinário para nós. Ele foi um grande destaque, um grande folião. Já outros entrevistados tendem a minimizar a presença dele no Carnaval e valorizam mais a questão do Candomblé.

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Qual Joãozinho da Gomeia vocês pretendem apresentar?
A gente quer mostrar um personagem multifacetado, que está nessa encruzilhada cultural, e que justamente por isso subverte tudo. É o pai de santo que se traveste de Cleópatra ou vedete e vai para a avenida. Partimos justamente dessa interrogação. A cada dia surge mais um detalhe que faz a gente pensar e mudar o olhar. Dentro dessa grande interrogação que surge, a gente tem encontrado um grande mediador cultural, que circulava pelos espaços mais distintos. Ele recebia os presidentes da República, dava consulta para rainha Elizabeth II, e ao mesmo tempo o terreiro dele tinha um trabalho social ligado a regiões periféricas, em toda Baixada Fluminense. É óbvio que é um grande líder religioso e isso vai permear toda a narrativa, mas é uma religiosidade não institucionalizada, não presa a rótulos. No fundo a gente entende Joãozinho como essa grande interrogação, sobre o que é o Brasil, o que é o nosso panteão afro-ameríndio, sobre o que é pensar toda essa complexidade, que os nossos rótulos não dão conta. É preciso pensar outra epistemologia, e aí a gente vai ao encontro do que o [historiador] Luiz Antônio Simas escreveu sobre nosso enredo, que é justamente esse estilhaçamento das nossas certezas religiosas, nossas convicções científicas. O Joãozinho está nessa encruzilhada. Ele é a figura que transita pelo terreiro, que vira aldeia, e que vai pra rua, e a rua se transforma em espaço mítico. Tudo isso vai aparecer no desfile.

Acadêmicos do Cubango 2018 – Gabriel Monteiro/Riotur

Joãozinho era negro, gay, de religião de matriz africana, que enfrentava resistência dentro da própria comunidade do Candomblé…
Há quem diga que a ida dele para Caxias se deu pela perseguição que ele sofria em Salvador dentro do próprio Candomblé, além da perseguição estatal, o que é um aspecto confuso da biografia dele, já que ele depois se torna amigo do Getúlio Vargas.

Sim, e como é fazer um enredo sobre uma figura como Joãozinho nos tempos atuais? Que mensagem ou bandeiras a Grande Rio pode levantar com um desfile sobre esse personagem?
Uma grande mensagem de respeito à diversidade, o exercício máximo da liberdade, de ser quem se é. Uma grande mensagem em defesa da capacidade que o Joãozinho tinha de transitar por esses lugares tão distintos sempre de cabeça erguida, enfrentando esses preconceitos todos, rompendo com rotulações. É o pai de santo negro, gay, candomblecista que, diante de todos esses agentes do poder instituído, rompia todas as barreiras simbólicas. É uma forma de celebrar na avenida de maneira profundamente poética, porque nós acreditamos na articulação entre poética e política. A gente não acredita numa forma de fazer Carnaval que não seja isso. O Carnaval é político por si só, é da história. Nesse contexto de intolerância, de recrudescimento dos valores conservadores na sociedade brasileira, chancelados pelos governantes, a gente pretende levantar todas essas bandeiras com muita intensidade. E a figura do Joãozinho permanece atual.

É declaradamente também um enredo contra a intolerância então.
Esse aspecto é indiscutível. Não apenas porque nós, como artistas, nos posicionamos de maneira muito clara. Eu a Gabriel entendemos que é o mínimo que se possa esperar de alguém que tenha qualquer noção de direitos humanos. Não gosto muito de utilizar algumas expressões, porque dizem mais dos intolerantes do que da gente. Não somos nós que vamos declarar guerra à intolerância religiosa. Quem declara guerra é quem depreda um terreiro. Nós estamos fazendo festa, é o contrário. Na festa e na fresta que a gente se entende e se posiciona. O que o enredo quer passar é a ideia de autoafirmação dos nossos valores, das nossas matrizes religiosas, a nossas múltiplas identidades, e contra qualquer forma de intolerância, de preconceito, de cerceamento da liberdade, de imposição. O Joãozinho era essa grande figura libertária, que se insurgia, que não tinha medo das inúmeras polêmicas pelas quais passou e de enfrentar seus detratores. Era uma figura que não tinha medo de dizer para o jornalista: ‘pode colocar assim, que você viu um pai de santo travestido no Carnaval, porque é isso mesmo e eu me entendo com os orixás’. É uma liderança cuja vida fala de homofobia, intolerância religiosa e racismo, incluindo racismo epistêmico. Tudo isso aparece no desfile, porque continua aparecendo na forma como a sociedade brasileira se configurou historicamente.

Romulo Tesi

Romulo Tesi Jornalista carioca, criado na Penha, residente em São Paulo desde 2009 e pai da Malu. Nasci meses antes do Bumbum Paticumbum Prugurundum imperiano de Aluisio Machado, Beto Sem Braço e Rosa Magalhães, em um dia de Vasco x Flamengo, num hospital das Cinco Bocas de Olaria, pertinho da Rua Bariri e a uma caminhada do Cacique de Ramos, do outro lado da linha do trem. Por aí virei gente. E aqui é o meu, o nosso espaço para falar de samba e Carnaval.

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