Como uma fábula criada por avó fez Zeca Pagodinho virar “avô” de menina do Rio de Janeiro e supriu ausência na família

Julia Pagodinho e avó. Zeca Pagodinho
Dona Lena e Julia na época de “neta” do “vovô” Zeca – Acervo pessoal

Na primeira metade anos 2000, o pagode ainda reinava na indústria fonográfica do Brasil. Em um mundo sem streaming, Zeca Pagodinho figurava entre os cantores mais tocados nos rádios e que mais vendiam CDs. Agora, imagine descobrir, nessa mesma época, que um artista desse porte é da sua família. Mais: que é seu avô.

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Foi o que aconteceu com Julia Melo, aos quatro anos de idade. A menina descobriu, quando começou a frequentar o colégio, que os amiguinhos todos tinham dois avôs. Diferente dela, que só tinha um. Um dia Julia chegou em casa decidida a preencher essa lacuna. E perguntou a avó Lena, sem cerimônia: afinal, quem era esse avô misterioso?

“Ela dizia que eu tinha só um avô, que meu pai era ‘filho só da vovó’. Mas essa conta não fechava. Por que todo mundo tem dois e eu não?”, lembra Julia, então insatisfeita com a resposta.

Ela não se satisfez, e intensificou a frequência da pergunta. A insistência foi tanta que dona Lena perdeu a paciência e respondeu:

Seu avô é o Zeca Pagodinho!

Aí entrou o talento da dona Lena para a ficção.

“Ela sempre contava muitas histórias. E dessa vez ela inventou mais uma para explicar que eu era neta do Zeca Pagodinho. Não lembro dos detalhes, mas ela pediu segredo. Era para não contar a ninguém”, narra Julia.

O motivo, claro, era evitar escândalo na imprensa sobre o filho e a neta ignorados por Zeca, casado e pai de família. E enfim a equação estava resolvida com a fábula contada por Dona Lena.

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“Minha avó falava com muito carinho do Zeca. A gente sempre ouvia as músicas dele em casa. Ela morava em Caxias, e o Zeca, em Xerém [distrito do município da Baixada Fluminense]…”, enumera a hoje professora de Sociologia e História. Tudo se encaixava e fazia sentido na cabeça da menina.

Pai ausente e “boquinha de siri”

Por trás do conto inventado estava uma história, essa real, de mais um caso de abandono parental no Brasil. Moradora de Duque de Caxias, dona Lena viu o então companheiro se afastar um tempo depois do nascimento do menino, o pai de Julia.

Zeca Pagodinho tatuagem Cosme e Damião
Zeca ‘magrinho’ nos anos 80 – Instagram Zeca Pagodinho

“Mas ela [a avó] nunca fez questão que ele aparecesse também”, diz Julia, que na época não só acreditou no mentirinha contada por dona Lena, como se empolgou com a ideia de ser neta de um dos maiores sambistas da história do gênero. Desde que, claro, guardasse segredo. “A gente tinha esse negócio de ‘boquinha de siri”, recorda Julia sobre o código de silêncio. E o parentesco com Zeca era mais um caso enquadrado na “boquinha de siri”.

Avó e neta, aliás, desenvolveram uma cumplicidade firmada no samba. “Eu cresci com a minha avó falando muito do Zeca. Minha paixão pelas escolas de samba vem dela”, diz Julia, torcedora da Grande Rio.

Desfilante assídua da Mocidade, Dona Lena gostava tanto de Zeca que pegou gosto por cantar os sambas da Portela, escola do ídolo.

Junto dele no coração da avó, só Roberto Carlos. Tanto que hoje Julia especula: e se em vez de falar o nome de Zeca, saísse o do rei da Jovem Guarda diante da pergunta da insistente e curiosa netinha?

“Todo mundo pergunta isso”, diz Lena. “Sempre fui muito fã do Zeca, desde quando ele era magrinho”, completa a avó da Julia, que viu o ídolo a primeira vez em ação no Cacique de Ramos com a madrinha Beth Carvalho.

https://twitter.com/juliapagodinho/status/1619111851396063232

Lena conta que contou a mesma história sobre o “parentesco” com Zeca para outros netos, mas que a cascata pegou mesmo na Julia.

“Ele arrebata as pessoas com aquele jeito simples dele”, diz.

“Não é o Zeca”

Um dia, porém, o mundo da Julia caiu.

O pai ausente se reaproximou do filho, já homem feito. Até que chegou o momento de levar a neta para conhecer o avô, que, julgava ela, era Zeca Pagodinho.

“Eu olhava para aquele homem e só pensava: ‘ele não é o Zeca”, diz ela, que tentou apagar da memória que, por cerca de três anos, foi neta do ídolo. Até o dia em que Julia entrou na faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense (UFF) de Campos dos Goitacazes (RJ).

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Ao se apresentar para a turma, declarou sua paixão pelo samba e ganhou o apelido de “Julia Pagodinho”. Pronto. As memórias da infância voltaram à tona, e a jovem aproveitou o embalo para tirar uma onda com os amigos.

“Eu disse: ‘você sabe que eu sou neta do Zeca?’ Mas brincando!”, recorda Julia, que viu a piada sair de controle e ganhar a universidade. Na base da zoeira, manteve a versão. Inclusive no Twitter.

“Dias atrás um jornalista me procurou para perguntar sobre um projeto envolvendo o Zeca”, diverte-se.

Notada pelo “tio”

Foi na rede social inclusive que Julia foi notada pelo “tio” Luizinho, filho de Zeca.

“Eu postei que tinha ganhado da minha avó o LP do ‘Patota de Cosme’ [segundo álbum de Zeca], meu disco preferido”, narra. O tuíte viralizou e chegou ao herdeiro do sambista, que entrou em contato para convidar a “sobrinha” para conhecer o Instituto Zeca Pagodinho, em Xerém.

https://twitter.com/juliapagodinho/status/1617967199481888768

A visita deve acontecer depois do Carnaval, quando Zeca será homenageado no enredo da Grande Rio, justamente a escola da “neta”. Ela nunca esteve com o “avô” e nem poderá estar presente no desfile na Marquês de Sapucaí, no domingo de folia.

“A minha avó ficou nervosa [quando soube da aproximação de Luizinho], achou que eu ia ser processada”, diverte-se Julia, que agora pretende levar Dona Lena, hoje com 71 anos, para a visita a Xerém.

“Já fui a Xerém algumas vezes e não consegui encontrá-lo. Meu sonho é abraçar esse homem e a família dele. É o ‘avô’ da Julia. Espero que a Mônica não se incomode (risos). Acho que tem muitas Julias por aí que gostariam de ser neta do Zeca Pagodinho”, conclui Lena.

Romulo Tesi

Romulo Tesi Jornalista carioca, criado na Penha, residente em São Paulo desde 2009 e pai da Malu. Nasci meses antes do Bumbum Paticumbum Prugurundum imperiano de Aluisio Machado, Beto Sem Braço e Rosa Magalhães, em um dia de Vasco x Flamengo, num hospital das Cinco Bocas de Olaria, pertinho da Rua Bariri e a uma caminhada do Cacique de Ramos, do outro lado da linha do trem. Por aí virei gente. E aqui é o meu, o nosso espaço para falar de samba e Carnaval.

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