O governador da Bahia, Rui Costa, não deixou margem para interpretação ao declarar: sem vacina contra o coronavírus, não haverá Carnaval em Salvador em 2021. Manifestação semelhante fez o prefeito da capital baiana, ACM Neto. E antes que se suspeite de uma articulação ensaiada com fins obscuros, é preciso dizer que os dois governantes estão em campos políticos antagônicos.
O que os une aqui é a preocupação real com a pandemia de covid-19 e chance concreta de cancelamento do próximo Carnaval. Ou no mínimo adiamento: folia fora de época é, inclusive, praticamente uma invenção baiana, pelo menos da forma como conhecemos hoje. Isso de uma festa movimentou cerca de R$ 1,25 bilhão somente em Salvador em 2020.
A declaração de Costa antecipa uma discussão que, ao que parece, está limitada aos bastidores das escolas de samba, dada a incerteza sobre o futuro. Mas é preciso falar do “elefante na sala” que se tornou a possibilidade de adiamento dos desfiles de 2021.
A Rádio Arquibancada tem ouvido alguns dirigentes do samba carioca, e a opinião generalizada é que, no momento, é impossível prever qualquer coisa. Certamente. Otimista, o diretor de Carnaval da Liesa, Elmo José dos Santos, garantiu: “se falarem que nós só temos dois meses [para preparar os desfiles], nós vamos trabalhar dentro desses dois meses. Vamos movimentar um grande Carnaval. Somos sambistas acima de tudo”.
O cálculo de Elmo leva em consideração o fator temporal: de fato, as escolas poderiam aprontar sem seus desfiles em prazos até mais apertados. Só a Mocidade Independente Padre Miguel, para ficar em um exemplo, já deu mostras de que é uma comunidade é capaz. Mas como?
Pra que dinheiro
A pandemia já está afetando a cadeia econômica do Carnaval: escolas com atividade social intensa nessa época ficaram sem a receita proveniente dos eventos em suas sedes e não sabem quando poderão abrir as portas novamente. As disputas de samba, que sozinhas movimentam um mundaréu de gente, devem sofrer profundas transformações, que atingiriam desde compositores, passando por produtoras de vídeo e estúdios, até chegar nos barraqueiros das portas das quadras. O Carnaval, quem é da tribo sabe, começa muito antes da concentração na Avenida Presidente Vargas ou no Anhembi.
Quem não tem patrono de mão aberta (algo cada vez mais raro) terá que contar com o poder público e a verba da venda dos direitos de transmissão da televisão. E o cenário aí também é pouco animador: os esforços orçamentários de governos estão severamente comprometidos com o combate ao coronavírus, e parece improvável, hoje, que se pense em investimento público nas escolas de samba. No Rio de Janeiro principalmente, onde o prefeito é declaradamente contra a ideia (pra não dizer contra o Carnaval) e, em 2020 cortou completamente a subvenção.
Sobrou o governo estadual, que costurou este ano, no estouro do cronômetro, um patrocínio de R$ 20,5 milhões da Refit para as agremiações do Grupo Especial, pagos após os desfiles. Para 2021 não há sinais ainda de que o aporte chegaria a tempo de viabilizar o trabalho nos barracões.
Nada ignorável também é o cálculo político que qualquer administrador público faria diante da possibilidade de investimento no Carnaval. Mesmo em São Paulo, onde Bruno Covas, simpático ao Carnaval ao ponto de aumentar a verba (chamada oficialmente de “cachê”) para as escolas.
A TV Globo, tradicional parceira, costuma adiantar a verba a partir do meio do ano. Mas se a empresa repetir no Carnaval as medidas em relação ao futebol, esse dinheiro não apareceria ainda horizonte. No caso da bola, a suspensão das cotas aos clubes deveria servir de alerta.
Samba agoniza, mas não morre
Sem dinheiro, sobra o samba. E aí cabe evocar o mestre Luiz Antônio Simas: há escolas que existem para desfilar e outras que desfilam porque existem. E a grossa maioria das agremiações tem mostrado que se enquadram no segundo caso. Quase todas têm se empenhado em reforçar redes de solidariedade e proteção social, algo que remete às suas origens. É belo e emocionante acompanhar as escolas redescobrindo suas outras vocações além do samba. A fabricação de máscaras é um cândido exemplo.
Se a pandemia passar logo, vamos pra rua. Caso contrário, talvez não valha a pena forçar a barra por um desfile no Carnaval com componentes distantes, pouco público (e queda na bilheteria, para falar da economia de novo) e temores – restrições tristes para uma época em que o bom é a pouca restrição e encontro de corpos. Definitivamente, covid não dá samba.
Diante do cenário, provavelmente seja a hora de se pensar não em cancelamento, mas adiamento dos desfiles – dois ou três meses, o futuro dirá. A paixão seguirá viva, ninguém duvida disso. De repente com dois meses para aprontar tudo como disse o mangueirense, mas de form segura. Sambista bom é sambista vivo e saudável.
Disse antes que os baianos praticamente inventaram o Carnaval fora de época, mas já esclareço: se não criaram, pelo menos abrasileiraram uma ideia francesa: vem do francês mi-carême, que significa “meio da quaresma”, o baianíssimo “micareta”. Talvez seja a hora de ouvir os baianos. De Carnaval fora da época eles entendem.
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