Finda a tempestade de ideias da live do canal Ouro de Tolo, em que Pedro Migão recebeu Lucas Prata Fortes, o Caju, para debater a comunicação das escolas de samba, o YouTube me indicou a entrevista do presidente da São Clemente, Renato Almeida Gomes, ao canal Mais Carnaval. O algoritmo não poderia ser mais preciso, e não só pelo tema macro, o Carnaval, mas como os dois papos conversam entre si. Aliás, o primeiro funciona como uma resposta ao segundo.
Renatinho, como é conhecido o comandante clementiano, abre a entrevista confirmando que vetou críticas a Jair Bolsonaro no desfile de 2020, o “Conto do Vigário”, assinado pelo carnavalesco Jorge Silveira.
O motivo: não se indispor com Brasília, já que, afirma Renatinho, “quem manda na quadra é o Governo Federal”. Quadra, no caso, a usada pela escola para realizar seus eventos e ensaios, no Centro do Rio.
“Quem é o presidente? Vou dar porrada no cara que está me dando a quadra?”, questiona o dirigente, que informa ainda a participação da hoje secretária municipal de Assistência Social do Rio de Janeiro, Laura Carneiro, nos trâmites para que São Clemente continuasse no local.
(Em 2017, o espaço chegou a ser interditado em uma ação de reintegração de posse do terreno para a União)
Pouco antes, eu ouvia Migão e Caju soltarem, de graça, um manancial de ideias para gerar dinheiro para as escolas, numa mobilização de cérebros empenhados em bolar formas para que a maior manifestação cultural do Brasil seja remunerada como merece – suas instituições e artistas. Levando para a agremiação de Botafogo: para que a São Clemente gere sua própria receita, pague seus boletos, não dependa do poder público e tenha liberdade para criticar quem ela quiser.
Crise
Em 2017, abri o Setor 1 para realizar um velho desejo: cobrir Carnaval o ano inteiro, com atenção quase que exclusiva ao aspecto cultural, sobretudo música e enredo – e seus personagens. Deles eu tiraria minhas pautas para provar a tese de que desfile de escola de samba é a maior invenção do homem.
Isso foi em março. Em junho, o então presidente da União da Ilha do Governador, Ney Filardi, “furou” a imprensa e anunciou que o na época prefeito do Rio, Marcelo Crivella, surpreendentemente, reduziria a subvenção municipal destinada às agremiações pela metade: de R$ 2 milhões para R$ 1 milhão.
A surpresa era justificável. Meses antes, durante a campanha eleitoral, as escolas de samba apoiaram Crivella em peso, contra o psolista Marcelo Freixo. Numa cena promovida por acordos políticos suspeitos e dependência financeira, o bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus posou ao lado de dirigentes do samba e cantou Salgueiro 1971, clássico absoluto, do irresistível refrão “pega no ganzê, pega no ganzá”.
Mais do que a notícia em si, confirmada com orgulho dias depois pelo próprio Crivella, eu me espantei com a reação da cúpula do Carnaval. Na época, o presidente da Liesa, Jorge Castanheira, cravou: a redução de verba tornava a realização dos desfiles inviável.
Em outras palavras: o dirigente máximo da liga colocava o próprio Carnaval sob ameaça por causa de R$ 1 milhão a menos. Foi aí que o assunto começou a me coçar como jornalista. Como um acontecimento cultural do porte e tradição dos desfiles das escolas de samba, elemento fundador da própria cidade, poderia ser cancelado por causa de um R$ 1 milhão?
Na época conversei com muita gente para conhecer uma realidade que eu ignorava: o total estado de penúria das escolas de samba, com receitas quase que todas atreladas a um desfile, muito dependentes do poder público e torcendo pela aparição messiânica de um patrocinador – mesmo que bancando um enredo sobre extrato de tomate ou alguma subcelebridade que mal sabe onde fica Madureira.
Desde então, gastei parte considerável de tempo e energia cobrindo a economia do Carnaval. E sempre tentando responder a mesma pergunta central: como essa festa não se paga sozinha?
Tabu
Em seguida, descobri outro obstáculo: mais do que qualquer questão moral ou de costumes, dinheiro é o maior tabu do Carnaval. Raríssimas vezes consegui entrevistas francas sobre a origem da receita das escolas. E não estou falando do quase folclorizado patrocínio da contravenção. O bicho é outro: muitos dirigentes se negavam a falar até de projetos inscritos na Lei Rouanet. Informação pública, diga-se.
A dificuldade, porém, aumentou o apetite, e empenhei ainda mais energia e tempo no assunto. Tudo para entender e decifrar como uma festa que movimenta bilhões acaba dependente da vontade de um prefeito, de um governador ou do presidente da República, ao ponto de calar uma piada.
A resposta é complexa, do tamanho dos problemas, mas passa essencialmente pela gestão própria. E há gente criativa, genial, da porta pra dentro das escolas para resolver esse pepino.
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No meu mundo ideal, o mestre-sala Sidclei trocaria de carro todo ano, se assim quisesse, e passaria férias no exterior, gastando o dinheiro que um artista do porte dele merece receber. O mesmo vale para qualquer um que emprega o talento pessoal nas escolas de samba, esse milagre brasileiro.
No meu mundo ideal, Renatinho pode até abraçar o Bolsonaro, mas sem que o destino da São Clemente dependa do afago ao poder.
No meu mundo ideal, um artista como o Jorge Silveira, além de ser muito bem pago (em dia), teria a liberdade de sacanear o presidente da República. O mesmo que, dias depois do Carnaval, em meio a uma pandemia, comprovaria que a São Clemente, com Marcelo Adnet fazendo flexões e imitando arminhas com a mão, até pegou leve. E o Pinóquio do último carro poderia, sim, vir de faixa presidencial.
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